A longa carreira militar do General António de Spínola nas fileiras do regime do Estado Novo culminou no cargo de Governador Militar da Guiné, por convite direto de Salazar, em 1968. Durante mais de cinco anos, entre maio desse ano e julho de 1973, comandando a estratégia, os homens e os recursos no mais difícil palco da guerra colonial portuguesa, Spínola reforçou o seu inigualável carisma, exibindo, em Bissau ou no mato, as botas altas, o pingalim, as luvas brancas e o monóculo que lhe compunham a figura. Ao mesmo tempo, lutando embora pela defesa do ultramar português, compreendeu o que em Lisboa Marcelo Caetano não via, ou não queria ver: que o integrismo militar já não servia para o “Vietname português” e que o futuro estava em montar uma solução autonómica e federalizante para as províncias ultramarinas, com vista a uma hipotética Comunidade Lusíada. Quando, da metrópole, lhe sabotaram os esforços de abertura de vias negociais com o inimigo (através de Léopold Senghor), Spínola zangou-se com o status quo e renunciou a ser reconduzido no cargo, regressando a Lisboa.
Marcelo Caetano quis mantê-lo ocupado e, sobretudo, comprometido com o regime. Convidou-o, sem êxito, para ministro do Ultramar em novembro de 1973; e só conseguiu fazê-lo Vice-Chefe do EMGFA em janeiro de 1974. Por essa altura, o General andava discreto e muito concentrado na redação de um livro - um misto de ensaio de estratégia e de manifesto político com apontamentos autobiográficos. Graças à proteção do CEMGFA (General Costa Gomes), o manuscrito, intitulado «Portugal e o Futuro», escapou às malhas de uma censura já enfraquecida e a 22 de fevereiro de 1974, com a chancela da Arcádia, inundou as livrarias portuguesas, numa 1.ª edição de 50 mil exemplares, reimpressa nas semanas e meses seguintes até aos cerca de 250 mil exemplares. O livro de Spínola foi um verdadeiro terramoto político e a “luz-verde” dada ao MFA para avançar para o derrube do moribundo regime marcelista.
Spínola declarava escrever por “imperativo moral”, e a tese central da obra ficou célebre: “Podemos assim chegar à conclusão de que, em qualquer guerra deste tipo, a vitória exclusivamente militar é inviável”. Ou seja: com a indisputada autoridade de quem comandara a guerra colonial durante anos no terreno, o mais prestigiado vulto das Forças Armadas dizia, para todos lerem, que o integrismo ultramarino caetanista era um beco-sem-saída, e que para desatar o “nó górdio” militar-colonial, tinha o país de encontrar uma solução política. Assim, se o regime já não podia resolver a guerra, teria de derrubar-se o regime para resolver a guerra. A mensagem era tão clara e desafiadora que Marcelo correu a Belém, depois de uma noite de insónia a ler a prosa de Spínola, para apresentar a demissão a Américo Tomás. O almirante-presidente foi lacónico e taxativo: “Ninguém sai; se o barco for ao fundo, vamos todos”.
O resto da história, até à madrugada de Abril, é conhecida. Spínola e Costa Gomes foram exonerados e a remanescente elite militar convocada para um encontro em São Bento, cujo fito era mostrar ao país a vassalagem das FA ao presidente do Conselho. A coisa entrou no imaginário popular como a “brigada do reumático”. Dois dias depois, a 16 de março, deu-se a tentativa de golpe das Caldas da Rainha, que serviu de ensaio-geral para afinar táticas. Caetano achou que escapara (por ora) ao vendaval spinolista. Ao final da tarde de 25 de Abril, perante o triunfo do MFA, compreendeu que não - e pediu para entregar o poder ao autor do «Portugal e o Futuro», no fundo a autoridade oculta que o deixara sem chão e que empurrara os capitães para a rua.