Ana Beatriz Cardoso é presidente da Associação Ser Mulher, que hoje está à frente da que foi a primeira casa abrigo em Portugal, criada em 1995 pelas irmãs adoradoras, em Évora. Numa altura em que a violência doméstica continua a ser notícia, com casos praticamente diários, muitos deles mortais, esta responsável veio conversar com a Renascença e com a agência Ecclesia sobre o trabalho da instituição, o que está a ser feito e o que é preciso mudar no combate a um fenómeno que “é absolutamente transversal” na sociedade portuguesa. A “reparação do dano” em relação às crianças deve ser uma prioridade.
A Associação Ser mulher foi criada para dar continuidade ao trabalho que as irmãs adoradoras iniciaram há 25 anos, quando abriram a primeira casa abrigo do país, em Évora. O antigo Lar de Santa Helena agora já não se chama assim, mas no concreto como é que funciona? Que tipo de ajuda é que asseguram às vítimas?
Quando o Lar Santa Helena começou a trabalhar no apoio às vítimas de violência doméstica foi a primeira casa abrigo em Portugal, portanto nessa altura o apoio dado às vítimas, e que hoje em dia ainda mantemos, é através do acolhimento. O acolhimento que prestamos inclui o apoio social, apoio jurídico e apoio psicológico no período de seis meses, que pode ser prorrogado.
As vítimas que acolhemos podem vir acompanhadas dos filhos, podem inclusivamente ser filhos maiores (de idade) que tenham algum tipo de deficiência, como já tem acontecido.
E quantas mulheres é que acolhem? Qual é a capacidade?
A capacidade que tínhamos, já do tempo em que a resposta era assumida pelos irmãs, era para 25 utentes, mas não são só as mulheres, são elas e os respetivos filhos, que as acompanham.
A nossa resposta neste momento não é só ao nível do acompanhamento. No tempo das irmãs já tínhamos iniciado alguns projetos em que prestávamos atendimento também a utentes externas - e fizemo-lo durante muitos anos até –, e às que deixavam a casa abrigo. Mesmo depois de deixarem a casa abrigo continuam a ser apoiadas enquanto utentes externas da instituição. Isso era uma matriz das irmãs, elas faziam questão em continuar a dar apoio continuado, como também apoio externo numa ótica, ou como estrutura de atendimento, por assim dizer: utentes que nunca eram encaminhadas para a casa abrigo, mas a quem dávamos esse apoio, independentemente do acolhimento.
Utentes que procuravam ajuda para o problema concreto que tinham?
Exatamente. Este ano, ao abrigo de uma candidatura que fizemos ao POISE (Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego) vamos novamente prestar esse apoio em sete dos 14 concelhos do distrito de Évora.
"A questão da reparação do dano em relação às crianças tem de ser assumida como absolutamente fundamental"
E o apoio que recebem do Estado é suficiente?
Pois, essa questão... foi precisamente pela insuficiência de apoio financeiro que as irmãs acabaram por cessar esta resposta, até porque nos últimos anos era a própria Congregação que acabava por sustentar a resposta, e não a ajuda que o Estado nos concedia.
Infelizmente continuamos a ser das entidades que prestam este tipo de apoio que têm a ajuda mais baixa do país, vamos apresentando projetos e candidaturas para tentar alargar a nossa própria atividade. A verdade é que mesmo para a resposta que seria necessário dar às vítimas de violência doméstica, as equipas estão subdimensionadas. Porque, como comecei por vos dizer, o número de vagas neste tipo de instituições não é só para as mulheres, é também para os respetivos filhos.
Que têm de ter uma atenção especializada?
Exatamente. Se consultarmos os dados das sinalizações que são feitas para as CPCJ (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens), e os processos de promoção e proteção das crianças, vemos que a quantidade de situações que aparecem resultantes de violência doméstica é muito significativa.
Uma das coisas que tem sido possível concluir, no que à nossa atividade concerne, é que em situações em que há reabertura de processos nas CPCJ – há um processo, esse processo encerra-se, e anos mais tarde é reaberto – é que tendo sido iniciado uma primeira vez devido a violência doméstica, a nova sinalização que é feita mais tarde já não é por violência doméstica, mas por insucesso ou abandono escolar. Ou seja, a questão da reparação do dano em relação às crianças tem de ser assumida como absolutamente fundamental.
Isso é esquecido, até no tratamento mediático destes casos, de que as vítimas também são as crianças?
As vítimas também são as crianças. Até porque se nós perguntarmos, na maioria das situações, quem é que testemunhou, quem é que vivenciou tudo? Foram as crianças. As crianças estão lá, e não poucas vezes também funcionam como uma arma de arremesso, ou como o escudo protetor da própria mãe. São elas que se metem entre o pai e a mãe durante as discussões. Na maioria das situações em que há homicídios, as crianças estão lá, testemunham. Quem cuida do trauma destas crianças?
E cuida-se do trauma destas crianças?
Dever-se-ia cuidar...
Vamos dar um exemplo concreto: se a mãe morre e o pai é preso, o que é que acontece a estas crianças?
Essa é uma questão com que todos temos que nos preocupar, não só nas situações em que as mães acabam por morrer, sendo assassinadas, como também em todas as outras situações. O tempo das crianças não é o nosso tempo, que estamos aqui, três adultos. Há crianças que têm quatro anos de idade e para elas a violência é a história da vida toda, é a forma que elas conhecem de viver.
O governo está a estudar a melhor forma de articular a comunicação entre os tribunais criminais e os tribunais de família, para evitar casos, como tem acontecido, em que os filhos acabam por ficar à guarda dos agressores. É uma mudança importante?
Muito importante, e todos os compromissos que tem havido são absolutamente fundamentais, porque o combate à violência doméstica exige múltiplas medidas: exige uma mudança de cultura, exige o conhecimento efetivamente do que é que é a violência doméstica. Porque a violência doméstica não é só a violência física, é também a violência psicológica, é o isolamento das vítimas.
Vou dar um exemplo, que acontece muitas vezes: as vítimas são colocadas em situações em que não têm qualquer tipo de apoio ou suporte para irem trabalhar, porque quando chegam a casa, a casa está toda desarrumada e os maridos ou companheiros, agressores, dizem 'estás a ver, vais trabalhar, no teu trabalho ninguém te considera', ou é sempre visto como 'então, mas se vais trabalhar e tem de se pagar a creche, porque é que não ficas aqui em casa?'. Ou seja, o seu direito a ter um trabalho, a ter um salário, é subalternizado.
Uma medida como haver creches gratuitas até aos três anos de idade é uma medida que acaba por contribuir para o empoderamento destas mulheres. Há um conjunto de outras medidas que têm um impacto direto na vida das famílias, na vida das mulheres, mas que também contribuem para diminuir este problema.
Tem-se pensado só a questão da intervenção em crise, mas falta uma visão de conjunto que ajude a atenuar as causas, que muitas vezes estão ligadas a estas questões?
Sim. Um outro exemplo: a estratégia nacional prevê a territorialização do apoio às vítimas de violência doméstica, é isso precisamente que iremos agora iniciar. O que é que isto significa? Que o apoio dado nas estruturas de atendimento às vítimas de violência doméstica em vez de ser dado só nas capitais de distrito passe a ter uma base concelhia, que os próprios municípios sejam envolvidos nisto. Isto é uma mudança de paradigma extraordinariamente importante. Estamos aqui a envolver novos atores, estamos a criar redes ao nível local, ao nível das mais variadas vilas, em todo o território nacional. É trabalho que já se está a fazer.
"A relação em que há violência doméstica é uma relação de poder assimétrica: aquilo que o agressor espera da vítima é submissão, uma ausência de vontade"
Existe uma Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica, mas as instituições funcionam de forma articulada?
As articulações, por regra, dentro das entidades que fazem parte da Rede Nacional, incluem as estruturas de atendimento, as casas de acolhimento de emergência e depois as casas de abrigo. Ou seja, não há uma mulher que vá diretamente para uma casa de abrigo. E estas entidades, entre si, articulam-se.
O último relatório anual de segurança interna, do ano passado, dava conta de mais de 26 mil denúncias por violência doméstica. Ora, não há 26 mil mulheres em casas abrigo, nem 10 por cento, há muito menos do que isso. Ou seja, a solução para a maioria destes casos não é - e ainda bem - o encaminhamento para a casa abrigo, conseguem-se encontrar outras soluções. Agora é necessário, mesmo nas situações que não vão para a casa abrigo, fazer uma avaliação de risco, garantir uma aplicação atempada das medidas de proteção da vítima, e até de contenção do próprio agressor. É necessário também aplicar planos de segurança, e encontrar outras alternativas para as mulheres que querem sair de casa, através de boas políticas de habitação social, por exemplo.
A impressão que dá é de uma dupla injustiça, porque em casos muito extremos acabam por ser as vítimas que têm deixar tudo para trás...
Exatamente. Mas nem sempre é possível que a solução seja feita de outra maneira. O ideal seria sempre que elas não tivessem de sair da sua casa. O ideal seria não haver casas abrigo, como é óbvio.
Uma das noções com que se fica, por parte da opinião pública, é que há muitos casos de denúncias, mas que, efetivamente, depois acabam por não ter o seguimento devido. Há muitas pessoas sinalizadas, junto das autoridades, que acabam por cometer os crimes… São situações que deveriam preocupar a sociedade, de uma forma mais amplas?
Eu acho que sim, sem dúvida. Temos de perceber que a violência doméstica não é só aquele ato individual, mas muitas das vítimas, quando chegam às esquadras, o que relatam foi o que aconteceu na noite anterior. Quando se fala dos entendimentos entre as várias entidades que compõem a rede nacional de apoio às vítimas, sabemos que quem dá apoio tem de elaborar um relatório; nesse relatório de encaminhamento, a própria legislação exige às equipas técnicas que refiram algo extraordinariamente importante, a história da vitimização. Muitas vezes, os próprios tribunais tendem a ver a situação como aquela circunstância, aquele dia…
Um episódio.
Aquele episódio, exatamente. E não olhar para a história da vitimização, como é que começou. Isso está diretamente com a definição deste fenómeno, do que é a violência doméstica. Nunca acompanhei uma situação, nunca acolhemos uma senhora que tenha dito ‘ele bateu-me uma vez’, ou ‘ele deu-me uma sova e aquele ato caiu do céu, naquele dia, pela primeira vez’. Não, tudo se vai construindo.
A relação em que há violência doméstica é uma relação em que há uma relação de poder assimétrica. Aquilo que o agressor espera da vítima é submissão, uma ausência de vontade; muitas das opiniões são criticadas, porque ela não sabe nada, ela não vale nada. No relato que fazemos, e que ajudamos as senhoras a fazer, relativamente à sua própria história, acabamos por nos dar conta de que os insultos são, todos eles, muito semelhantes. As desconsiderações são todas elas muito iguais…
Há um padrão, não é?
Há padrões: ‘não vales nada’, ‘não serves para nada’, ‘o que é que tu sabes disso?’, ‘o que seria de ti sem mim?’, ‘aqui quem manda sou eu, eu é que sou o chefe de família, eu é que se’. Há muito estas ideias de que eles é que mandam em casa. Há ideias que já foram há muito ultrapassadas, até na nossa legislação, e que resultam ainda do sistema anterior ao 25 de Abril – que era a figura do chefe de família, o poder paternal como sendo dos homens – e que nós, ouvindo estas mulheres, apesar de nada disto estar já consagrado na legislação, isto tudo é o que elas ouvem diariamente.
Em termos de lei, a violência doméstica é hoje um crime público, e essa foi certamente uma mudança importante…
Uma conquista importante.
Contribuiu para que haja mais casos denunciados?
Eu estou em crer que sim. Aliás, o crime de violência doméstica aparece, ao longo dos vários relatórios anuais de Segurança Interna, como sendo o segundo ou o terceiro crime com maior número de participações. O que acontece, muitas vezes, é que há até denúncias que não são feitas pelas vítimas, são feitas por vizinhos, por outras pessoas.
Portanto, em termos sociais há maior sensibilidade para a questão?
Há maior sensibilização para a questão, o que é fundamental.
Também há uma maior exposição mediática. Esta divulgação dos casos (nos media) tem mais aspetos negativos ou positivos, para quem está no terreno?
Eu acho que tem, na minha opinião, mais pontos positivos, na medida em que tem contribuído para dar visibilidade ao fenómeno. Permite-nos hoje estar aqui, a discutir, a explicar-vos as coisas que estas mulheres ouvem e que fazem com que elas nos cheguem com a autoestima baixíssima, sentindo elas que são as culpadas de tudo. Tanto assim que uma das coisas que nós lhes dizemos é: ‘a senhora não é culpada’.
E podemos perguntar-nos: como é que uma vítima chega e é ela que se sente culpada? Mas é verdade, são anos, muitas vezes a ouvir dizer que não sabe fazer nada, que não é capaz de fazer nada… Nós devemos agradecer à Comunicação Social a divulgação, o empenho, e que nos convidem.
Na conversa prévia a esta entrevista referiu-nos que há ‘subtilezas de linguagem’ nas notícias, que quase sempre se incidem na vítima, o que ajuda a desculpabilizar o agressor. Qual deve ser o papel da Comunicação Social?
É importante a divulgação, é importante estarmos aqui a falar hoje e outras vezes, sobre esta temática. Mas é importante não desculpabilizar o agressor, dizer: ele estava embriagado, estava desempregado, tinha muitos ciúmes…
Também é importante não arranjar razões para justificar o comportamento.
E isso acontece, na sua opinião?
Acontece. Acontece muitas vezes desculpabilizar o agressor ou culpabilizar a própria vítima, como se as pessoas não tivessem direito a querer uma vida nova, a querer até romper com aquela relação.
É importante também não chamar a isto um crime passional, não colocar a tónica no ciúme. Quantos de nós não conhecemos pessoas que romperam as relações amorosas que tinham? E por causa disso não resultaram mortes, não tem de haver mortes. Todos nós temos direito à autodeterminação, como temos direito a viver sem violência. Aliás, um dos lemas da nossa Associação, que vinha já do tempo das irmãs, é uma frase muito conhecida da filósofa Hannah Arendt: ‘Viver sem violência é um Direito Humano’. Temos de seguir isto, é um direito humano para todas estas mulheres, para todos os homens, evidentemente, e para os filhos, para todas as crianças.
A Associação mantém a ligação aos princípios fundadores que as irmãs Adoradoras deixaram neste seu trabalho?
Sem dúvida. Aliás há algumas práticas da nossa organização que ainda resultam do que vínhamos assistindo e fazíamos no tempo em que as irmãs estavam connosco, como o facto de mantermos uma relação de grande familiaridade. A nossa instituição, não é possível visitá-la, mas tenta aproximar-se o mais possível de casas, para não ser uma mera instituição, apesar do nome ‘lar’, dado pelas irmãs, não tem nada que se compare com um lar…
Por outro lado, as irmãs seguiam o carisma da fundadora, Santa Maria Micaela, que era precisamente estar junto das mulheres, viver os problemas com as mulheres e junto delas. E as irmãs seguiam a teoria da libertação, que é, nem mais nem menos do que o empoderamento das mulheres, algo que na nossa atuação se pretende: sermos uma ajuda, um caminho para a saída desta relação violenta, mas com dignidade, garantindo que se sai tendo o sustento assegurado, um lugar para viver e saírem com treino de competências e reforço de autoestima, que é feito durante o período de acolhimento.
A Igreja, através da sua estrutura, dos bispos e dos padres, devia ser mais interventiva na luta contra a violência doméstica? Ajudaria?
Eu acho que sim, ajudaria. Nós mantemos ainda uma relação estreita com as irmãs, e eu recordo ainda os muitos quilómetros que eu e a irmã (Júlia Bacelar) fizemos por este país, para cima, para baixo. Nas muitas conversas que mantínhamos, verdadeiramente inspiradoras, uma das coisas que dizíamos é que seria tão bom fazer campanhas nas igrejas, à porta das igrejas… porque para muitas mulheres só era possível sair para ir à Missa.
A irmã Júlia sempre teve uma grande preocupação com as mulheres rurais. Há muitas mulheres para quem o isolamento torna mais difícil deixar a relação violenta, fazer a denúncia e tomar consciência de que aquilo que estão a viver é uma relação em que há violência doméstica.
Sabemos que este é um fenómeno transversal na sociedade, mas notou alguma evolução particular ao longo dos anos relativamente às idades, sexo ou condição social das vítimas?
O fenómeno da violência doméstica é absolutamente transversal. Temos dado apoio, ainda que possa parecer estranho, a mulheres licenciadas. É transversal às mais variadas classes. Aliás, uma das ideias que é preciso combater é a ideia de que a violência doméstica só atinge as mulheres mais pobres. Não é verdade, é transversal. As mulheres das classes mais altas têm muito mais dificuldade em denunciar, porque a vergonha é maior; muitas vezes, a violência que prepondera é violência psicológica, grandes proibições, grande assédio…
O que temos vindo a verificar é que há mais vítimas cujo agressor não é o seu companheiro, o seu marido - os agressores são os filhos ou, inclusivamente, os netos.
Mulheres mais idosas?
Mulheres mais idosas. E também em que os agressores não são as pessoas com quem mantinham relações de intimidade, mas os seus próprios descendentes. É a violência dentro da família.