No dia em que era suposto começar a 17ª edição do IndieLisboa, esta quinta-feira, com a cerimónia de abertura do Cinema São Jorge, o festival apresenta simbolicamente grande parte da programação da edição 2020 que, em virtude da pandemia global, foi adiada para o final do Verão: de 25 de agosto a 5 de setembro, nas salas habituais: São Jorge, Culturgest, Cinema Ideal e Cinemateca Portuguesa.
Num momento em que os festivais de cinema se dividem, e alguns até se contradizem, sobre a forma como existir em 2020, uns cedendo ao formato digital outros assumindo que, não sendo possível existir da forma como os conhecíamos nem sendo possível adiar, mais vale cancelar, Mafalda Melo, da direção do Indie, reafirma que esta edição quer proporcionar uma “experiência física e coletiva” dos filmes, num festival “se possível com convidados” e com debates que exponenciem o pacto do coletivo em sala. Mesmo que se trate de um coletivo preparado para observar medidas de segurança; mesmo que em salas menos povoadas; mesmo que o mundo nos continue a parecer um local vigiado.
Tendo o programa (consulte aqui na íntegra) sido delineado antes da entrada em cena da covid-19, Mafalda enfatiza, no entanto, que a particularidade desta edição, as suas coincidências e a coesão que diz existir entre as diferentes secções, por exemplo “entre os filmes recentes e as retrospetivas” de cineastas e momentos do passado, ficará ainda enfatizada pelo que nos acontece agora. Com o foco e a atenção que saberemos conquistar neste estado de suspensão estaremos mais recetivos ao vigor revolucionário e anti-colonialista, às personagens e histórias que lutaram contra a invisibilidade, que constituem uma das coerências desta edição.
“São filmes que foram revolucionários na sua época, que nos trazem ecos da História e do cinema” e “ver estas vozes negras em contexto de pandemia, contexto esse em que percebemos quem são os pobres e os ricos no mundo, percebemos que a História é a mesma” e valorizamos de outra forma o impulso revolucionário.
Mafalda refere então essa linha que “aproxima culturas e dá voz a movimentos que vem marcando a História”. É o que se pode traçar entre as retrospetivas da obra do senegalês Ousmane Sembène (feminismo, luta de classes, a brutalidade do colonialismo, contraponto à visão europeia da produção cinematográfica e do mundo), da celebração dos 50 anos da secção Fórum do Festival de Berlim com alguns dos títulos exibidos na primeira edição em 1971 (reação à política dos tempos abordando as lutas anti-coloniais, os direitos das mulheres e direitos LGBTQ) e, na secção Silvestre, o foco sobre a franco-senegalesa Mati Diop, que a edição 2019 de Cannes consagrou com o Grande Prémio do Júri (a Atlantique, primeira longa). Para além deste épanouissement de uma cineasta de 37 anos, o desabrochar do seu lirismo que poderá finalmente ser sentido em sala, porque até aqui tem sido um exclusivo Netflix, serão mostradas as curtas Liberian Boy, Mille Soleils (que venceu em 2013 a competição internacional de curtas e era uma homenagem a Touki Bouki do seu tio Djibril Diop Mambéty, cineasta senegalês), Big in Vietnam e Snow Canon.
O IndieLisboa anuncia, hoje, a competição internacional, este ano composta por 12 longas e 31 curtas, com títulos como o senegalês Baamum Nafi / Nafi's father, de Mamadou Dia, Eyimofe/This Is My Desire, de Arie Esiri e Chuko Esiri, da Nigéria, que confirmam a forte presença africana, os espanhóis Luis López Carrasco (El Anõ del Descubrimiento), sobre a EXPO'92 e a outra Espanha que não era visível nesta exposição, e Lois Patiño (Lúa Vermella), a argentina Jazmin Lopez (Si yo fuera el invierno mismo), num filme com direcção de fotografia do português Rui Poças, ou ainda L'Île aux oiseaux, de Maya Kosa/Sergio da Costa, a dupla luso-suíça autora do belíssimo Rio Corgo, que venceu em 2015 a competição nacional do Doclisboa.
Na secção Silvestre, estão entre os 17 selecionados filmes de Matías Piñeiro, Bruno Dumont (Jeanne, a continuação da experiência com o musical e com a personagem de Joana D'Arc, depois de Jeanette, l'Enfance de Jeanne D'Arc), Days, de Tsai Ming-Liang, Uppercase Print, de Radu Jude, o brasileiro Todos os Mortos, de Caetano Gotardo/Marco Dutra, que confronta a memória da colonização e da escravatura, ou State Funeral, Sergei Loznitsa, deslumbrante devolução à vida das imagens e dos sons a que o bielorusso Sergei Loznitsa teve acesso, a partir dos arquivos da ex-URSS, de material em grande parte inédito do funeral de Estaline - 600 caixas de filme, entre 30 a 35 horas que vários operadores de câmara registaram por todo o território soviético, nas fábricas e nas ruas.
State Funeral aproxima-nos dos rostos e dos gestos, da dor e da histeria quer da massa coletiva, quer dos seus líderes. A preto e branco e a cores, isso por vezes “acontecendo” dentro de uma mesma sequência ou espraiando-se por planos captados por diferentes operadores e de ângulos diferentes – o que faz surgir pequenos espetáculos de laboriosa harmonização, resultado de um trabalho épico de pesquisa.