Pandemia e stress pós-traumático. “Preparem-se para a incerteza” no regresso ao trabalho
02-09-2021 - 17:38
 • Sandra Afonso

Com cerca de 70 artigos científicos publicados e uma vasta experiência na melhoria da performance no desporto de alto rendimento e em ambiente corporativo, o professor de fisiologia José Soares alerta que não há fórmulas mágicas para escapar aos efeitos da pandemia, que se podem traduzir em stress pós-traumático. As vitaminas e os banhos de sol só servem para fazer figura nas redes sociais.

“Preparem-se para a incerteza!”. O aviso é feito aos trabalhadores pelo professor catedrático José Soares, neste regresso ao trabalho e às empresas para quem tem estado em teletrabalho.

Em entrevista à Renascença, o professor de fisiologia da Universidade do Porto diz que, de uma forma geral, as empresas estão hoje mais empenhadas no bem-estar dos funcionários. Mas ainda existem as que só se interessam pelos resultados, enquanto outras não têm capacidade para fazer melhor.

O professor critica ainda os empresários que fazem figura à custa da exploração dos colaboradores, mas não alinha em queixas de “bullying” corporativo, um termo que não reconhece. Habituado a dar “workshops” e implementar programas em grandes empresas, deixa ainda dicas para quem quer melhorar o desempenho profissional.


Setembro, para a maioria das pessoas, é o mês do regresso ao trabalho, este ano para muitos é também o regresso às empresas, depois do teletrabalho imposto pela pandemia. Tem sugestões para facilitar esta transição?

Tenho trabalhado com inúmeras empresas das mais diferentes áreas e, neste momento, aquilo que se percebe é a incerteza. A minha sugestão é: preparem-se para a incerteza, para quando chegarem ao trabalho, principalmente aqueles que podem fazer teletrabalho.

Preparem-se para não saberem quantos dias é que vão ter que ir ao escritório, não saber qual é a sucessão desses dias, não saber se é possível fazer o trabalho todo remoto, não saber se é possível fazer o trabalho todo presencial, e talvez este seja o maior fator perturbador.

Ainda ontem estive num grande grupo económico português e estávamos a falar exatamente sobre isto. Ninguém tem certezas de como é que isto vai ser, podem ter trabalho para a próxima semana ou para as próximas duas semanas e de um momento para o outro mudar outra vez.

Qual é o impacto desta incerteza nos trabalhadores?

O impacto é o que se está a ver. É o aumento da ansiedade, dos fenómenos depressivos, é o aumento do consumo de substâncias aditivas. É o que já está descrito. A incerteza que hoje vivemos não vem apenas do trabalho, é também a incerteza relativamente à pandemia, sobre o estado de saúde dos familiares, o ambiente económico, etc…

Nós estamos a pagar e vamos continuar a pagar durante algum tempo um preço muito alto e, por isso, não se tem falado de mais nada, que não seja da saúde mental. O que acontece, e particularmente nos mais vulneráveis e nos que têm problemas adicionais (porque uma coisa é trabalhar em casa com uma divisão exclusiva para esse efeito, outra é estar em teletrabalho no mesmo espaço que o resto da família), há pessoas que sofrem muito mais do que outras. Hoje, o consenso geral é que isto está a ter um impacto muito grande na saúde mental.


Como é que os trabalhadores se podem proteger?

Essa é a pergunta "one million dolars", se soubesse estava milionário! Ontem pediram-me para arranjar um psiquiatra para uma pessoa amiga, as consultas dos profissionais que conheço, as mais próximas, são para novembro!

Não há fórmulas mágicas, essa ideia de que vou fazer isto, vou fazer aquilo, são coisas para o Facebook, Linkedin, Instagram ou qualquer outra rede social. A realidade é muito mais dura. Há pessoas que vão, e que já estão, a sofrer com isto. Já se fala muito do stress pós-traumático quando sairmos deste ambiente, que é uma coisa que acontece em ambientes altamente traumáticos, como a guerra. Pessoas que vão sentir o impacto ao longo da vida.

Isto não é: “tome vitaminas ou apanhe muito sol que vai resistir a tudo!” Não há nenhuma fórmula que não seja tentar mitigar o impacto dos efeitos negativos, através das estratégias que cada um pode encontrar. Eu tenho as minhas: estar o mais possível com pessoas que conheço, com a família, estar fisicamente ativo. Mas o ambiente é altamente disfuncional.

Os trabalhadores que se mantiveram nas empresas estão igualmente vulneráveis?

Restringirmos tudo isto ao trabalho remoto até é um bocadinho ofensivo, porque há muita gente para quem este tema não existe, sequer, e são essas pessoas que nos mantêm a todos. Estão nos supermercados, na logística, nas construções, na indústria. Sem elas não tínhamos sobrevivido a isto!

Muitas vezes não nos apercebemos de que há muitas empresas que têm um nível de diferenciação muito grande, mas depois há ali um conjunto de colaboradores, e é uma mancha relativamente grande, a quem o trabalho remoto não lhes diz respeito porque não o podem fazer, ganham um salário muito baixo, têm muito más condições, não têm condições, têm problemas familiares e nós estamos praticamente a falar do trabalho remoto. Claro que o trabalho remoto é um problema, mas não é transversal à sociedade.


E como podem as empresas ajudar os trabalhadores nesta fase?

Eu divido as empresas em três grupos. Umas estão significativamente preocupadas com o bem-estar dos colaboradores, e essas estão a fazer coisas: estão a discutir o melhor modelo para a pessoa, se é o modelo remoto completo, se é ir à empresa todos os dias, se é ir uma vez por mês, estão preocupados em ter meios de apoio à saúde mental, dar cursos às pessoas para gerirem melhor a sua vida do ponto de vista económico.

Depois há o que chamo de empresas indulgências: não se interessam nada com os colaboradores, exigem cada vez mais, as pessoas já não sabem distinguir a vida pessoal da vida profissional, são emails às 18h00, às 22h30, são reuniões intermináveis e depois fazem “workshops” sobre saúde mental, como se fosse uma indulgência!

O terceiro grupo de empresas estão a titubear, estão a ver o que é que isto vai dar, vão experimentando, muitas vezes não têm recursos suficientes para dar estes benefícios aos colaboradores, e nestas enquadram-se também empresas que não podem fazer trabalho remoto.

O tecido empresarial nacional segue uma cultura protetora para com os funcionários?

Tenho que ser otimista, porque quem me contrata está no primeiro grupo. São pessoas que fazem parte de organizações que genuinamente estão preocupadas com as pessoas e pedem-me ajuda, seja para formações ou implementar programas de bem-estar, saúde mental, o que quer que seja.

Também já contactei com outras empresas que a única coisa que fazem é contratar um “workshop”, sobre a saúde mental, o impacto do stress e da fadiga na performance ou na produtividade das pessoas e pronto, cumpriram com o seu dever.

Percentagens não sei. Tenho trabalhado mais diretamente com empresas do primeiro grupo, perceberam que a produtividade do colaborador vai muito para além disso.

Ainda subsiste muito no país a ideia de que quanto mais tarde o funcionário sai, mais bem visto fica perante as chefias?

De uma forma geral ainda temos muito essa cultura, mas não somos só nós! Não é só em Portugal! Não vou agora estar a referir, mas qualquer pessoa saberá de quem é que eu estou a falar, há muitos conhecidos, líderes, que escrevem livros, que são referências internacionais, que os trabalhadores trabalham em condições péssimas! Em condições praticamente desumanas, para terem lucros verdadeiramente vertiginosos.

Aliás, veja o que aconteceu a todo o nosso online e para acontecer esse boom houve pessoas que tiveram que trabalhar incessantemente.

Eu tenho uma boa ideia dos portugueses, não acho que sejam menos respeitosos relativamente aos colaboradores. Claro que há pessoas menos respeitosas, como há em todo o mundo. É só abrir o jornal e ver o que acontece a grandes empresas que são consideradas referência e vejam como tratam os trabalhadores mais desqualificados.

Antes desta crise um estudo de uma consultora mundial sobre o mercado laboral português (Hays, 2019) concluiu que uma percentagem significativa dos trabalhadores não estava satisfeita no emprego e queria mudar. Esta percentagem poderá ser agora maior?

A minha impressão é que as coisas melhoraram significativamente. Porquê? Porque as pessoas perceberam, em situação de crise, que há pessoas que estão muito desprotegidas. Eu estou sistematicamente a receber convites para falar nesta perspetiva: nunca como agora é necessário apoiar os nossos colaboradores, nunca como agora é importante que as pessoas percebam a importância da empresa ter uma elevada capacidade produtiva, mas isto só é possível se as pessoas estiverem equilibradas e nós temos que lhes dar ferramentas.

Se me perguntar, da minha experiência, isto está melhor. As pessoas estão a sofrer mais, mas, por causa disso, as empresas estão a fazer mais para que as pessoas sofram menos.

Por outro lado, têm sido notícia episódios de “bullying” corporativo e funcionários que se dizem perseguidos e pressionados pelas chefias.

Eu tenho muita dificuldade em definir o que é “bullying”, ainda não percebi, sinceramente, o que é, numa definição. Por exemplo, há uma definição para o “burnout”. Mas pode ser ignorância minha, admito isso.

Tudo o que seja maltratar as pessoas, falta de respeito, desconsiderar, não estou a ver que seja de agora! Não é de descartar a hipótese de termos um chefe imbecil! Ou um tipo completamente “workaholic” que acha que na vida o único objetivo é o trabalho e obrigar que todos os outros, que estão abaixo dele, tenham exatamente a mesma perspetiva da vida.

Admite, assim, que possa existir este chamado “bullying” no trabalho?

Acredito que haja isso que se chama “bullying”, que presumo que seja qualquer coisa relacionado com tratar mal as pessoas e esse tratar mal é uma coisa qualitativa, não é quantitativa. Para mim "tratar mal" pode ser uma coisa completamente diferente do que é para si. Mas não consigo balizar exatamente o que é o “bullying”.

Acho que se vulgarizaram muito os termos. Mesmo o “burnout”, que de um momento para o outro foi completamente vulgarizado! Se perguntar, a maioria das pessoas não sabe dizer nem o que é o “burnout”. “Ah, estou cansado!” Cansado, não é “burnout”!. As pessoas falam de “bullying”, então o que é “bullying” e o que não é “bullying”?

Se me diz que há maus tratos aos colaboradores das empresas, claro que há! Mas, não sei se é de agora. Da minha experiência, nunca vi tanta preocupação com os funcionários como agora.

Fala muito de performance, já utilizou o termo nesta entrevista. Como se distingue da produtividade?

Ao ouvirem esta entrevista, as pessoas vão dizer: "este tipo disse umas coisas que têm interesse", ou não, "foi uma perda de tempo estar a ouvir o José Soares a falar". Isso mede a minha produtividade nesta entrevista.

Outra coisa é a performance, é muito mais global. Eu, para falar consigo, tenho que estar bem, senão não vão sair as palavras adequadas, vou-me esquecer de alguns exemplos, se calhar, se estiver com um nível de stress muito alto vou ser demasiado agressivo nas expressões, vou ser demasiado assertivo, menos paciente. Tudo isto são sinais e sintomas de stress.


No livro "RELOAD - Menos stress. Melhor performance.", desconstrói a performance em 4 “Rs”.

O primeiro R é o da Recuperação ("Recover"): um dos segredos da performance elevada é eu conseguir recuperar. Pedi para termos esta entrevista a esta hora, porque tive uma reunião antes e vou ter outra exatamente a seguir. O que é que vai condicionar a minha performance? É a rapidez com que vou recuperar desta conversa e da reunião que vou ter a seguir, que é para mim importantíssima, e depois tenho outra. A recuperação faz-se ainda entre os dias: é eu estar aqui a falar consigo depois de ter tido uma noite péssima. A recuperação é um fator decisivo entre os atletas, doentes e mundo corporativo.

O segundo R é aquilo que chamei o Reabastecer (“Refuel”): conseguirmos utilizar melhor o combustível durante o dia, e isso passa muito por uma alimentação equilibrada, adequada, sem exagero nem dietas exageradas. As pessoas não podem estar 5, 6, 7 horas sem comer, ainda que haja dietas que sugerem esse tipo de padrão alimentar, do qual eu discordo.

O terceiro é Repensar ("Rethink”): repensar a forma como nós encaramos, inclusivamente, a nossa personalidade. Com esta ideia de que tudo é possível mudar, que podemos ser mais felizes, mais positivos, etc… é relativamente mais tranquilizador se olharmos para isto e repensarmos que, muito provavelmente, a chamada neurodivergência é muito mais comum. Há pessoas que são intrinsecamente pessimistas, ou individualistas, e não é por isso que deixam de ser úteis. Vale a pena pensar este modo que adotámos de que tudo é possível mudar, eu não oiço amanhã um orador motivacional e deixo de ser pessimista, isso não é possível!

O último é Reenergizar (“Reenergize”): vem de diferentes coisas, pode ser as pessoas terem tempo para si, para relaxar, o que quer que seja. No meu caso, o que valorizo mais é o exercício, é ser fisicamente ativo. Gasto energia para depois ter mais energia.

Com a pandemia há agora ainda mais necessidade de aplicar estes 4 “Rs”?

O que é que a pandemia trouxe? As pessoas começaram a dormir mal, começam a recuperar pouco. Começam-se a alimentar mal, porque ou têm reuniões incessantes ou não têm tempo para se alimentar. Começam a ter uma perspetiva muito negativa da vida, nesta questão do repensar. E tornaram-se mais sedentárias, e isso acaba por ter um impacto muito grande, não só na performance, mas também no bem-estar das pessoas.

Nesta altura ainda há muitos portugueses de férias, que conselhos tem para aproveitarem da melhor forma esta pausa?

Cada um tem que encontrar aquilo que lhe agrada mais e aquilo que é mais adequado ao seu estado de espírito, à sua personalidade, às condições em que está, por isso é impossível fazer uma fórmula para toda a gente.

Para mim, por exemplo, aquilo que eu mais gosto de fazer nas férias é o que normalmente se chama o "dolce fare niente". Oscilo entre o não fazer nada, o direito à preguiça, com coisas que me agradam, sendo fisicamente ativo, o exercício para mim é o melhor coadjuvante terapêutico para a minha saúde mental. Mas admito que há pessoas que é exatamente o contrário, tempo de férias é o direito à preguiça total e inclui não me preocupar com alimentação ou correr, quero é estar de papo para o ar, a carregar as baterias para o ano que aí vem.

As pessoas têm que encontrar a fórmula mais adequada para o seu estilo de vida, mas há aqui uma regra que considero decisiva: as pessoas têm que encontrar tempo para cuidar delas. É aquilo que eu chamo o princípio da máscara de oxigénio, ou seja, para cuidar dos outros tenho primeiro que cuidar a mim. No avião, quando há uma despressurização, primeiro colocamos a máscara em nós e só depois na criança! Muitas vezes o que acontece é que nas férias as pessoas acabam mais cansadas do que quando estão a trabalhar, porque não respeitaram o princípio da máscara de oxigénio. Respeitar este princípio parece uma coisa jocosa, mas não é, nem tão pouco egoísta, é muito altruísta!