O presidente da Fundação Eugénio de Almeida (FEA) diz que a instituição não se quer substituir ao Estado, a quem pede que “cumpra o seu dever”, mas as crescentes necessidades da comunidade, em consequência da pandemia, levaram à decisão de abrir uma nova fase de acesso ao Fundo Financeiro Extraordinário (FFE) criado em maio de 2020.
Apesar do momento ser de “esperança e relançamento”, o arcebispo D. Francisco Senra Coelho, em entrevista à Renascença, antevê um novo período de dificuldades para os cidadãos com o fim das moratórias.
O FFE apresenta um conjunto de propostas que visam apoiar, financeiramente, agregados familiares e organizações do sector social. Mantém-se a cozinha social que já distribuiu quase de 31 mil refeições desde que começou a funcionar, na cidade de Évora. Dos 600 mil euros iniciais, a FEA tem ainda 365 mil euros para distribuir.
A Fundação Eugénio de Almeida (FEA) criou em 2020, um Fundo Financeiro Extraordinário (FFE) para apoiar a comunidade em tempo de pandemia. Decidiu, agora, abrir uma nova fase de acesso. Antes de mais seria bom recordar que instrumento é este?
É uma resposta que procuramos proporcionar a Évora, não só a cidade, mas a toda a região de Évora, no campo social, apoiando a comunidade a superar os impactos socioeconómicos da pandemia. Pretendemos que as pessoas venham ter connosco e apresentem as suas situações, verdadeiramente de necessidade, em que vivem e que está a afetar a sua autonomia, a sua independência de vida. Gostaríamos de chegar a todas as pessoas que precisam, sobretudo aquelas que se enquadram naquilo a que chamamos a pobreza envergonhada. A FEA, com a sua tradição humanista, quer ter um olhar atento a todos. Somos, por isso, convocados a assumir, com maior intensidade, o compromisso na área social.
Esse compromisso materializa-se, então, na abertura desta nova fase de acesso ao FFE. Quer isto dizer que, decorrente da pandemia, as necessidades da comunidade cresceram?
A partir do nosso Observatório Social e de um estudo feito em colaboração com a Universidade de Évora, detetámos situações muito preocupantes. Além disso, fruto do nosso trabalho com outras instituições, como a Caritas diocesana, a Refoof, a Cruz Vermelha ou a Santa Casa da Misericórdia de Évora, só para citar algumas, tomamos conhecimento da existência de carências de vária ordem, nomeadamente em termos de alimentação, com uma procura acrescida. Face a uma situação de “não resposta”, digamos assim, a FEA decidiu iniciar, na sua Enoteca da Cartuxa, o funcionamento de uma cozinha social temporária para ajudar os mais vulneráveis, fornecendo 200 refeições por dia, o equivalente a mais de 6.000 por mês. Desde maio do ano passado, altura em que foi criada, posso dizer-lhe que a nossa cozinha social já serviu 30.921 refeições.
A cozinha social é, de resto, uma das propostas no âmbito do FFE e que volta, nesta nova fase de acesso, a ser equacionada e ajustada?
Sim. Este é um aspeto que eu chamaria de “montra”, porque é o mais visível, imediato, e de um pragmatismo total que tem a ver com a sobrevivência. Mas por trás desta “montra”, há outras propostas, no âmbito do FFE, que sentimos necessidade de recentrar, como que visitando a nossa oferta, e lembrar algumas que são prementes neste momento.
Está a falar do Apoio Social de Emergência?
Sim, é outra das propostas. Este Apoio Social de Emergência visa apoiar agregados familiares que tiveram uma quebra de rendimento, igual ou superior a 50%, sendo atribuído um apoio pecuniário pontual, de acordo com as condições sociofamiliares. Esse apoio pode ser de 150 euros, por exemplo, mas pode ter, também, prestações de nível intermédio e chegar aos 250 ou 350 euros, e em casos mais exigentes, aos 450 euros, o que não quer dizer que não possamos ir além deste valor, se tivermos conhecimento de um caso que precise de maior ajuda. Nós não temos uma filosofia de muros, de arame farpado, nós temos uma filosofia de caminho e de humanização.
E é nessa filosofia que se insere a outra oferta, a do Apoio às Organizações Sociais?
Sim, o Apoio às Organizações do Terceiro Setor. Eu gostaria de chamar a atenção para esta possibilidade, porque é muito rica. Primeiro, vai ao encontro de instituições que estão muito aflitas e que são as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). Segundo, é um trabalho integrado que nos dá a possibilidade de ajudar situações concretas. Visa apoiar, de forma excecional e temporária, organizações sem fins lucrativos, do Alentejo, que atravessam dificuldades financeiras com a prevenção, adaptação e combate à pandemia, designadamente na aquisição de equipamentos de proteção. Não queremos que descurem a segurança por falta de recursos.
Já que fala em recursos, muitas instituições estão a braços com a falta de recursos humanos, mas este FFE prevê também apoio financeiro para contratar trabalhadores?
É mais uma oferta, sim. Trata-se do Apoio à Contratação de Trabalhadores para Equipamentos e Cuidados de Saúde a Apoio Social. Muitas das IPSS estão a ir ao mealheiro, à almofada, porque não conseguem fazer frente à circunstância, mesmo com todos os apoios prometidos que tardam em chegar. Há muitos projetos que estão a ser anunciados pelas entidades governamentais, mas não estão a ser concretizados. Nós temos, agora, esta possibilidade de conceder cerca de 10% do valor global da contratação dos trabalhadores abrangidos por medidas de apoio concedidas pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), podendo ser apoiados até cinco trabalhadores por organização. Ou seja, aquela parte que cabe à instituição pagar, perante o acolhimento na instituição de agentes profissionais provenientes do IEFP, a FEA colabora com 10%.
São apoios que, certamente, vão contribuir para ultrapassar alguns dos impactos provocados pela pandemia. Considera que o Estado está a cumprir o seu dever?
O Estado tem de cumprir o seu dever pois recebe os impostos e os apoios europeus. Nós queremos estar do lado do cidadão, naquilo que o cidadão não consegue atingir mesmo com o apoio que lhe é devido do Estado. O apoio do Estado, embora se insira no ministério que também tem a designação de Solidariedade, é um apoio devido e de justiça. São muito elevados os impostos que a sociedade paga, dos mais elevados da Europa e do mundo. Portanto, quando falamos do apoio do Estado, não estamos a falar de uma ajuda caridosa, mas sim do cumprimento de um dever que, embora solidário, é devido. Com estas medidas de apoio financeiro, nós estamos junto dos cidadãos, dos que têm cartão de cidadão, número de contribuinte e a quem não chegam os apoios anunciados. Mas estamos próximos, também, através da presença física, da presença humanizante…
Como, por exemplo, o voluntariado?
Sim, através do voluntariado. Há pouco falávamos da cozinha social. Nós não queremos entregar um kit de alimentação para o dia e dizer apenas “bom apetite” ou “até amanhã”. Precisamos de ouvir as pessoas, de escutar, e quando for necessário, usar a palavra.
No fundo, uma relação de afeto…
Exatamente. O afeto é criativo. Na cozinha social, por exemplo, temos um grupo de 30 jovens voluntários que prestam apoio na distribuição das refeições, humanizando esta resposta da FEA. Queremos estar mesmo com as pessoas, na complementaridade da sua cidadania, sem substituir o Estado nos seus deveres. O nosso projeto não é assistencialista, mas promocional, promover a pessoa, e no dia em que a pessoa não precisa de nós, é o dia em que concluímos a nossa missão.
Como é que o cidadão concreto pode vir ter convosco?
Em primeiro lugar, através das instituições que já referi nesta entrevista ou então através do nosso Observatório Social. Nós preferimos trabalhar com as instituições, pois são elas que estão no terreno e têm a experiência e o conhecimento das situações.
Quando foi constituído, em 2020, este Fundo Financeiro Extraordinário tinha uma dotação de 600 mil euros. Para esta nova fase de acesso, houve algum reforço?
Continuamos com o mesmo montante. Desses 600 mil euros, 100 mil foram para evitar que os funcionários da FEA, no primeiro confinamento, fossem para layoff. Neste momento, retirando o que foi aplicado nos últimos meses por força dos apoios já concedidos, temos ainda 365 mil euros para distribuir. A hora é de esperança e de relançamento, mas é também de cautela, pois aproxima-se o fim das moratórias, por isso estamos a adivinhar um novo momento de dificuldade para muitas famílias portuguesas.
Que mensagem quer deixar neste momento?
Não é fácil dirigir a minha palavra a pessoas que estão a sofrer pelos mais diversos motivos, em consequência da pandemia. Eu prefiro dizer que quero muito estar com elas, como arcebispo de Évora e, por inerência, como presidente da FEA. Quero dizer, dentro do que me é possível, tudo farei para contribuir para minorar o sofrimento das pessoas, sem nenhuma demagogia e muito menos hipocrisia. Os horizontes são complexos, mas é preciso manter a esperança. Dizer que gostaria que ninguém se sentisse só, pode ser a síntese da minha mensagem.