Há falta de conhecimento sobre demência, nomeadamente por parte dos profissionais de saúde, e de uma estratégia conjunta, da Saúde e da Segurança Social, que "faça diferença na vida das pessoas", defende a psicóloga Isabel Sousa, em entrevista à Renascença.
Isabel Sousa e Gabriela Álvares Pereira apresentaram o livro "Viver com Demência", lançado pela Ordem dos Psicólogos, um contributo para conhecer melhor esta síndrome que afeta pelo menos 200 mil portugueses - número que poderá duplicar nas próximas décadas - e ajudar a combater o estigma e a falta de informação sobre a demência.
Isabel Sousa destaca a importância de famílias e doentes pedirem ajuda numa fase inicial do diagnóstico ou dos primeiros sintomas e mostra-se preocupada com a situação nos lares.
A psicóloga admite que a pandemia foi um acelerador de demências e fala da Estratégia da Saúde na Área das Demências, aprovada em 2018, mas que ainda está a sair do papel.
Qual é o objetivo deste livro e como é viver com demência?
Com este livro nós quisemos contribuir para uma visão diferente do que é a demência, uma visão mais positiva. Nós não queremos dourar a pílula, viver com demência não é fácil, mas também não precisa de ser um pesadelo como frequentemente achamos e como frequentemente é veiculado pelos meios de comunicação.
Qual é o nível de conhecimento da população sobre a demência?
Nestes últimos 10 anos, que são os anos da minha experiência, eu tenho assistido a um crescendo da literacia nesta área. Ainda assim, tanto em Portugal como de uma forma geral em todo o mundo, essa literacia ainda é muito reduzida.
Ao contrário daquilo que seria de esperar, que os profissionais de saúde tivessem mais literacia nesta área, o que encontrámos na literatura é que isso não é verdade. Dois terços da população ainda têm muito desconhecimento em relação à demência, acreditam que a demência faz parte do envelhecimento, quando essa é uma das questões chave: a demência é provocada por doenças que afetam o cérebro, não faz parte do envelhecimento, ainda que a idade seja o maior fator de risco para desenvolver demência, mas além disso, mesmo entre os profissionais de saúde ainda existem esses equívocos que existem na comunidade.
O aumento da consciencialização e da literacia são, de facto, um dos fatores no qual as sociedades devem investir para que haja menos estigma e preconceito associado a este tipo de doenças.
As famílias estão um pouco entregues à sua sorte ou há apoios?
Existem alguns apoios. Não existem todos os apoios que seriam necessários, mas existem alguns apoios. Aquilo que percebemos com este livro, e ainda associado ao estigma, é que muitos familiares não procuram ajuda atempadamente.
Muitas vezes as pessoas não sabem que existem apoios e que um dos primeiros passos para que este processo de cuidar de uma pessoa com demência acarrete menos sobrecarga é pedir ajuda numa fase inicial. Aquilo que percebemos, segundo o relato dos familiares, é que com o diagnóstico de demência não vem a informação de como é que a doença vai evoluir, como vai ser o futuro e como é que podem programar e planear os cuidados no futuro. Nesse sentido é muito importante essa ajuda desde o início, com informação, para reduzir a incerteza em relação à doença e ao futuro.
Além disso, é preciso também - a Associação Alzheimer Portugal tem esse apoio - uma intervenção um bocadinho mais personalizada: à medida que os desafios e as necessidades vão surgindo, haver um profissional de referência que vá orientando os cuidados e que os vá ajudando a navegar por este caminho, orientando com estratégias para lidar melhor com a doença e com a prestação dos cuidados, mas também informando sobre os recursos disponíveis na comunidade e que podem ajudar a reduzir a sobrecarga e na prestação de cuidados.
Nesta questão das demências há fatores que não podemos controlar, mas é possível, de alguma forma, prevenir ou atrasar o desenvolvimento da doença?
Em 2017, uma comissão da revista Lancet lançou um relatório em que alertava para fatores de risco que são modificáveis. Em 2020, houve uma atualização desse relatório e a comissão diz que cerca de 40% das demências podem ser prevenidas ou, pelo menos, atrasar o início dos sintomas se se combaterem alguns fatores de risco, e identificaram 12 fatores de risco.
A questão do isolamento social é muito importante, em termos de prevenção, quando participamos em atividades com outras pessoas da família ou na interação com outros. Hoje em dia as Universidades Sénior e outras atividades que promovem o envelhecimento ativo e saudável contribuem para a prevenção da demência.
As pessoas que vivem em lares têm, muitas vezes, poucos estímulos. Que avaliação faz da situação nos lares neste plano das demências?
No caso destes ambientes menos menos estimulantes, há várias razões para isso. Do que eu sei, muitas vezes o principal fator para que não exista tanta estimulação e que os lares e as unidades residenciais não sejam um ambiente estimulante, é a falta de recursos e, muito frequentemente, a falta de recursos para proporcionar atividades às pessoas.
Da minha experiência destes últimos 10 anos, há muito mais procura de formação e há muito mais interesse por parte dos técnicos que trabalham nas instituições para proporcionar às pessoas ambientes mais estimulantes. Acho que ainda não é suficiente.
O que se pode pode fazer mais? Se a principal razão é a falta de recursos nas instituições que são comparticipadas pela Segurança Social, na minha opinião tinha que haver uma revisão dos acordos de comparticipação para que as instituições tivessem mais recursos para proporcionar melhores cuidados aos aos seus utentes.
Nos lares e fora dos lares, a pandemia foi um acelerador de demências?
Eu não tenho dados, mas a minha perceção foi que sim. Tanto nas instituições, como nos domicílios, os quadros de demência foram acentuados, por estas razões também que eu estava a falar da prevenção. As pessoas ficaram isoladas em casa, com muito menos contactos com outras pessoas. Muitas pessoas com demência, que ainda viviam no domicílio, deixaram de ir aos centros de dia, deixaram de ter os apoios em termos de estimulação cognitiva. Sim, isso acentuou o declínio cognitivo.
Também tivemos conhecimento de muitas situações de pedido de ajuda de pessoas que não tinham ainda sintomas e que a pandemia e o isolamento veio trazer à tona. São só dados da minha perceção, mas há estudos que estão a ser feitos sobre o impacto da pandemia na doença.
Há uma estratégia da Saúde para as Demências, aprovada em 2018. Já saiu do papel?
Pelo que eu sei, a estratégia está numa fase de sair do papel. No âmbito da estratégia foi pedido às administrações regionais de saúde para elaborarem os seus planos regionais e esses planos regionais já terão sido aprovados e estão em fase de implementação. Em termos de medidas concretas, coisas concretas que podem fazer face ou que já estarão em vigor para fazer face às necessidades reais e aos desafios que as pessoas enfrentam, não tem conhecimento que já estejam coisas acontecer e nesse sentido.
A estratégia é uma coisa ótima. Até há muito pouco tempo não tínhamos estratégia nenhuma, não havia políticas em Portugal direcionadas especificamente para a demência, mas sabemos que o processo de implementação das políticas é muito lento e que os recursos são muito escassos. É ótimo que haja a estratégia, é pena que ainda não esteja implementada ao ponto de fazer diferença na vida das pessoas.
E o que pode ser melhorado nesta estratégia que ainda está a sair do papel?
Esta é a estratégia da saúde para as demências e os reais problemas ou os desafios das pessoas com demência e dos seus cuidadores, no terreno, não se resolvem todos havendo só uma estratégia da saúde.
Esta estratégia deveria ser uma estratégia integrada e conjunta da Saúde e da Segurança. Muitas pessoas com demência estão em unidades residenciais, em lares, que são do setor social ou da Segurança Social. Para haver medidas que realmente vão ao encontro de todos os desafios que as pessoas enfrentam, esta estratégia deveria ser conjunta da Saúde e da Segurança Social.
A psicóloga Isabel Sousa é especialista em psicogerontologia e neuropsicologia, com experiência de mais de dez anos de trabalho de pessoas com demências e cuidadoras na Associação Alzheimer Portugal. Atualmente, colabora na iniciativa "Café Memória" da Alzheimer Portugal.