O dinheiro não chega no Serviço Nacional de Saúde (SNS), porque “a estratégia está ausente do Orçamento do Estado”, lamenta Agostinho Xavier Barreto, da direção da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH).
Em entrevista à Renascença, o diretor de ambulatório do centro hospitalar de São João, no Porto, defende mais autonomia para os hospitais e responsabilização da gestão.
Agostinho Xavier Barreto espera que o Governo não avance para a dedicação exclusiva para segurar os médicos no SNS e, em contrapartida, aposte em salários por desempenho e em dar melhores condições de trabalho aos clínicos.
Este ano vamos ter o maior Orçamento de sempre para a Saúde, mais de 12,5 mil milhões de euros, são mais 700 milhões do que no ano passado, mas parece que não chega. Qual é o problema?
O problema é que o financiamento tem de ser acompanhado por uma estratégia, por medidas concretas que resolvam problemas concretos e, portanto, esse tipo de estratégia de política está ausente do Orçamento do Estado.
Quando nós olhamos para o documento percebemos que a questão, por exemplo, do modelo para acompanhamento de doentes crónicos está ausente, a questão da integração de cuidados com o sector social está ausente, não existe uma medida concreta para essa integração de cuidados, a questão até do modelo de organização da urgências que tem sido muito discutido se devemos ou não ter equipas dedicadas, se o acesso à urgência deve ser referenciado ou se deve ser um acesso livre a todos os doentes, que é uma discussão importante, está ausente do Orçamento.
A própria questão da valorização do trabalho dos profissionais, por exemplo, pagando em função do desempenho está ausente deste documento e, portanto, há uma série de questões que são prementes, que importava discutir numa altura em que se está a atribuir financiamento para políticas públicas e essa discussão está completamente ausente do Orçamento e, portanto, dinheiro, por si só, não resolve os problemas.
Há greves anunciadas por vários setores da Saúde, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes operacionais. Acha que todos têm motivos, há razões de facto para estarem descontentes com a atual situação?
Eu não me queria pronunciar sobre exigências sindicais. O que posso dizer é, numa apreciação geral, existe aqui uma falta de estratégia, existe uma falta de rumo, existe uma falta de medidas concretas para resolver o problema do Serviço Nacional de Saúde e que eu acredito que essa ausência seja desmotivadora para os profissionais do sctor.
Mas nota isso no dia a dia, enquanto administrador hospitalar?
Claramente que sim. Claramente, existe uma insatisfação generalizada nos vários grupos profissionais, nós estamos aqui só a falar dos médicos, dos enfermeiros e dos farmacêuticos, mas se falar com assistentes técnicos ou técnicos superiores a insatisfação é a mesma.
É natural que alguém que está há 10, a 15 ou 20 anos com o mesmo salário e sem nenhuma progressão, sem nenhuma evolução na sua carreira, esteja insatisfeito. É natural que alguém que todos os dias trabalha com imensas dificuldades, por exemplo, porque tem equipamentos obsoletos, que obriga muitas vezes até a enviar o doente para o exterior para fazer exames ou fazer determinados procedimentos no exterior porque não os consegue fazer no seu hospital, é natural que as pessoas estejam insatisfeitas com a forma como estão a trabalhar.
A satisfação naturalmente que depende do salário, mas também depende muito das condições de trabalho, e nestas várias dimensões existem razões para insatisfação e isso nota-se no dia a dia.
Essa falta de condições também está na origem da saída de médicos? Em setembro tínhamos menos 700 médicos no SNS do que em janeiro, mas em contrapartida há muitos milhões de horas extraordinárias que são feitas todos os anos. O que se passa, porque é que o SNS não consegue fixar os médicos?
Por um lado, porque existem más condições de trabalho em muitos casos e, por outro lado, porque existe uma questão salarial. O privado paga bastante melhor, paga às pessoas em função do seu desempenho, em função daquilo que fazem, medidos em número de dados ou de outros indicadores.
Se nós queremos ser concorrenciais com o setor privado, claramente, temos que começar a pensar neste tipo de metodologias de retribuição, até para conseguir distinguir aqueles médicos ou profissionais de saúde que têm um melhor desempenho, porque são esses que nós queremos reter no SNS. Esta é a principal diferença entre o sector privado e o setor público.
Importar o modelo que as Unidades de Saúde Familiar (USF) têm neste momento seria uma possibilidade, uma solução?
Claramente que sim. Da mesma forma, se olharmos para o modelo dos Centros de Responsabilidade Integrada, que já existem em vários hospitais, que é um modelo semelhante, em que os profissionais recebem em função daquilo que fazem, percebemos que as pessoas estão muito mais satisfeitas e têm menos tendência a sair e, portanto, é um modelo que faz todo o sentido no nosso entender e que importa generalizar.
Deixe-me também falar da questão da autonomia, porque também é relevante: os hospitais não têm autonomia para contratar profissionais médicos para além daquilo que está previsto no âmbito dos concursos centralizados do Ministério da Saúde. O que é que está a acontecer agora? Se, porventura, um hospital investir cinco ou seis anos a diferenciar um médico, dentro da especialidade, numa área especifica, até dando formação a esse profissional em centros de referência internacionais, esse hospital não consegue reter esse médico, porque esse médico é obrigado a concorrer a um concurso nacional centralizado e pode ser colocado em qualquer outra parte do país. E, portanto, todo o investimento, toda a estratégia de desenvolvimento de recursos humanos, o investimento que se colocou naquela pessoa em concreto, perde-se.
Aquela vaga que é aberta por um hospital é ocupada por outra pessoa que vem de outro hospital, que não tem esta diferenciação, que não tem esta competência que nós procuramos e a pessoa que nós formamos e que tem esta competência vai parar a um hospital que não precisa dessa competência. É um contrassenso total. Não faz sentido absolutamente nenhum.
Mais, as pessoas depois de fazerem contrato, colocados através desse concurso centralizado, podem depois rescindir contrato e fazer contrato com o privado. Até esse objetivo do concurso centralizado acaba por ser desvirtuado. O que depois resulta, quando olhamos para a ocupação de vagas, é que cerca de um terço das vagas em muitos concursos têm ficado vazias. O que faria sentido era que os hospitais tivessem autonomia para que conseguissem definir uma estratégia de desenvolvimento dos seus recursos humanos médicos e outros a médio e longo prazo. Perceber em que áreas é que nós vamos ter de nos diferenciar, em que áreas é que temos de dar uma resposta acrescida aos nossos doentes e é nestas áreas que nós vamos formar profissionais com competências muito especificas.
As urgências continuam a depender muito dos tarefeiros, das empresas de prestação de serviços. Falou da possibilidade de haver equipas para fazer urgências, isso poderia ser uma solução?
Claramente que sim. Mas o caso das urgências é absolutamente paradigmático porque discute-se tudo à volta dos serviços de urgência, discute-se por exemplo a questão das horas extra, de permitir que os médicos façam mais horas extra assumindo que isso é uma coisa normal, quando não é, as horas extra deviam ser uma exceção e não uma regra. Nós não devíamos completar escalas logo de início com horas extra, isso não faz sentido nenhum.
Portanto, à volta dos serviços de urgência discute-se tudo menos o essencial. É que nós temos muitas urgências, como disse, garantidas por tarefeiros e temos ao mesmo tempo o interesse quer das direções desses serviços de urgência, quer de profissionais médicos em agregarem-se como equipas dedicadas a 100% às urgências, mas não existe essa tomada de decisão de definir claramente que os serviços de urgência se devem organizar desta forma. Quando nós já temos em Portugal serviços de urgência com equipas dedicadas e com bons resultados.
Mesmo quando um tarefeiro ganha dez vez mais do que um médico desse hospital?
É natural que nós também defendemos isso num quadro de autonomia e de responsabilização dos conselhos de administração que pudessem ser definidos contratos e incentivos específicos para os contratos do serviço de urgência.
Eu nem sequer estou a dizer que os contratos teriam de ser exatamente iguais aos contratos dos médicos das restantes áreas ou das restantes especialidades. É natural que tivessem de ser contratos diferentes, com outro tipo de incentivos, com outro tipo de condições, mas seria certamente melhor do que termos tarefeiros a receber o que estão a receber, sendo que o mais importante nem é o pagamento, mas sim o termos uma equipa coesa, sólida que permite garantir resposta no serviço de urgência coerente e consistente ao longo do ano.
É completamente diferente termos um conjunto de pessoas desagregadas que vêm ali prestar uma horas ou termos uma equipa constituída como tal. E é isto que nós defendemos. E esta questão, volto a dizer, está ausente da proposta do Orçamento do Estado.
O Conselho de Ministros prepara-se para aprovar, esta quinta-feira o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde que, segundo o primeiro-ministro, incide sobre as carreiras dos profissionais de saúde. O que é que devia mudar, o que é que devia constar neste novo estatuto?
Eu não conheço esse anteprojeto do Estatuto, não sei o que está a ser discutido. Em termos de carreiras, acho que o importante é tornarmos o SNS atrativo começando por criar boas condições de trabalho, começando por dotar os hospitais dos equipamentos, dos recursos de que necessita para as pessoas conseguirem a trabalhar e isso é importante para a satisfação dos profissionais, mas, para além disso, discutindo também a questão da retribuição em função do desempenho que nos parece ser um ponto importante a discutir nesta questão dos recursos humanos nos próximos anos.
Para além disso, a questão da autonomia e responsabilização da gestão. É absolutamente fundamental que os hospitais e os seus conselhos e administração tenham autonomia para tomar decisões de investimento, tenham autonomia para fazer contratações e que depois, naturalmente, sejam responsabilizados pelos seus resultados. Se não forem competentes, se não forem diligentes, têm de ser responsabilizados e isso, infelizmente, não tem acontecido. Isso iria exigir também uma maior exigência na nomeação dos conselhos de administração.
Há outras duas questões que nós gostaríamos que estivessem presentes: que é a necessidade de envolver mais os doentes na tomada de decisões do SNS, na definição do que deve ser o Plano Nacional de Saúde, na definição das apostas estratégicas dos hospitais, tem-se falado muito até da participação dos doentes nos conselhos consultivos dos hospitais, e dos agrupamentos de centros e saúde, o que infelizmente não tem acontecido. Não só entendemos que haveria muito a ganhar com uma maior participação dos doentes na tomada de decisões e na gestão das instituições.
Para além disso, a integração de cuidados entre o SNS e o setor social. Continuamos a ter graves problemas de integração, continuamos a ter muitos internamentos sociais, doentes que estão internados com alta clínica, porque não têm vaga num lar ou numa unidade de cuidados continuados. Temos situações mais extremas de pessoas que internamos e em quem investimos muito e depois mandamos para o seu domicílio onde não tem condições e habitabilidade, nem dinheiro para comprar medicamentos. Portanto, esta questão da integração entre o setor de saúde e o setor social é cada vez mais importante e era importante que o estatuto do SNS reforçasse a necessidade de promovermos esta integração.
O Orçamento também prevê o regime de dedicação exclusiva para os médicos. O que acha desta possibilidade?
A dedicação exclusiva poderá fazer algum sentido, sendo que nós entendemos que o mais importante é que as pessoas se sintam atraídas para trabalhar no SNS e não temos a certeza de que isso seja garantido através da dedicação exclusiva.
Entendemos que isso seria mais facilmente atingido se definirmos retribuições em função do desempenho, se criarmos condições de trabalho para os profissionais. O que importa é que os profissionais nas 35 ou 40 horas que estejam a prestar no hospital estejam a trabalhar de forma empenhada, que estejam satisfeitos com aquilo que estão a fazer e de uma forma produtiva e consistente contribuam para nós atingimos os nossos objetivos. O que fazem para lá dessas 35 ou 40 horas semanais em que estão no SNS no meu entender não é tão relevante.
Entendemos que esse empenho é mais facilmente atingido através, por exemplo, de uma retribuição definida em função do desempenho do que através da dedicação exclusiva. Aliás não faltam estudos internacionais a demonstrar que a dedicação exclusiva não se traduz em melhor desempenho nem se traduz em maior produtividade.
E esperemos que não seja contraproducente, se nós, por exemplo, fossemos para uma situação em que obrigássemos os profissionais a aderir à dedicação exclusiva, fossem quais fossem esses profissionais, o que provavelmente iria acontecer é que muitos iriam abandonar o SNS. Espero que não caminhemos para essa ideia de que podemos obrigar as pessoas a dedicar-se exclusivamente ao SNS que é uma ideia completamente desfasada da realidade.