O Chefe do Estado-Maior da Armada e da Autoridade Marítima Nacional, o Almirante Gouveia e Melo, alerta para o aumento de redes criminosas de tráfico de droga a sul do país, fruto de uma mudança legal espanhola que empurra traficantes para águas e costa portuguesas.
Em entrevista à Renascença, Gouveia e Melo aponta a necessidade de melhorias legais para que se consiga fazer justiça quando os traficantes são detidos, para não serem libertados sem depois comparecerem a julgamento. Defende ainda um aperto legal para afastar as embarcações do tráfico das águas portuguesas.
O Chefe do Estado-Maior da Armada revela ainda que o tráfico de droga por via marítima movimenta milhares de milhões de euros e que, em média, passam mais de quatro mil toneladas de estupefacientes por ano do sul da Península Ibérica para o norte da Europa.
Dados da Autoridade Marítima revelam que só nos primeiros dois meses deste ano foram apreendidas mais de 16 toneladas de droga, o mesmo valor intercetado por via marítima em todo o ano passado.
Têm sido muitas as notícias e comunicados sobre apreensões de droga nas águas a sul do país. O mediatismo corresponde ao aumento da criminalidade?
O fenómeno do tráfico de droga por via marítima no sul do país já existia há muitos anos. No entanto, face a algumas mudanças legislativas do lado espanhol, o tráfico desviou-se bastante para Portugal. Usa agora a zona sul como zona de desembarque para o tráfico que é destinado à Europa, particularmente do norte. Estamos a ter maior incidência desses fenómenos.
As redes marroquinas e espanholas estão agora a envolver portugueses e isto gera um fenómeno de desestruturação junto das áreas mais vulneráveis da sociedade e até alguma desestruturação eventual das próprias autoridades.
O que revelam os dados de 2021 e 2022 em matéria de tráfico?
Tem havido um aumento progressivo do tráfico de haxixe através da região sul de Portugal.
Com o esforço que a Marinha fez nos últimos tempos, só num mês apanhou o equivalente às operações do ano passado. Isto tem duas componentes: o aumento do tráfico e o aumento também da fiscalização.
As redes marroquinas e espanholas estão a envolver portugueses e isto gera um fenómeno de desestruturação junto das áreas mais vulneráveis da sociedade e até das próprias autoridades.
Há mais apreensões de embarcações ou as operações são mais ao nível da dissuasão?
Temos apreendido bastantes embarcações, muitas abandonadas. Quando os traficantes estão em risco, atiram droga para o mar e fogem numa ou outra embarcação para Marrocos ou para o estreito de Gibraltar. No entanto, temos apreendido mais e elas são retidas por nós e usadas, por ordem judicial, para combate a este tráfico.
As embarcações não são reclamadas, porque são usadas numa atividade ilícita. Os donos não podem dizer que as estavam a usar, são embarcações que não estão registadas, sem bandeira, acabam por ficar do lado das autoridades e são-nos muito úteis.
São também mais sofisticadas?
Têm mais resistência estrutural, mais motores e mais rápidas. Há dez anos davam 40 nós e agora dão 70 nós, mesmo com mar alto. Têm mais sistemas de navegação, de comunicação satélite para coordenarem desembarques e a rede tem logística própria.
[Há] um conjunto de embarcações que servem de tanques para atuarem mais junto da costa e depois há as embarcações que servem de lebre e andam a entreter as autoridades, a desviá-las dos sítios do desembarque.
Seguem muitos traficantes a bordo?
Os traficantes das embarcações de apoio e lebre são dois a três no máximo.
Já nas que levam a droga são quatro a seis tripulantes, porque levam carga, que exige força e meios para descarregar para terra.
E que detenções fizeram?
Temos detido muitos nas embarcações com droga. Outros acabam por deitar a droga para o mar e outros conseguem ainda fugir, mas depois têm avarias e são apanhados em barcos com combustível a bordo.
Todos são apresentados ao sistema judicial português.
Fica satisfeito com o desfecho dos processos da justiça que envolvem estes traficantes?
A justiça tem as suas competências e regras e nós não nos podemos imiscuir. Nós somos o poder executivo e iremos fazer sempre a nossa parte com ânimo.
Mas dá-nos a sensação de alguma ingenuidade na forma como os traficantes conseguem enganar a justiça. Às vezes não será ingenuidade, é a necessidade de a justiça garantir o máximo de condições às pessoas que são acusadas para se defenderem. A justiça para ser justa também tem de garantir isso. O poder judicial é órgão de soberania e julgará sempre sem pressão nossa.
Faz sentido Portugal olhar para o crime de tráfico de droga e regular estas embarcações?
Faz sentido, porque este tráfico mexe milhares de milhões de euros. Não são milhões, estamos a falar de mais de quatro mil toneladas que passam por ano no sul da Península Ibérica para o Norte.
Se não fizermos nada que dificulte este tráfico, ele vai-se apoderando das partes mais frágeis da sociedade, comunidades piscatórias, pessoas com dificuldades na vida e se associam a estas redes de tráfico e vão desestruturando a sociedade, incluindo as próprias autoridades, face à capacidade monetária que estas redes têm.
As redes podem ser perigosíssimas se a situação se complicar em termos de conflitos. Falamos da guerra híbrida (conceito inventado pelo general Gerasimov, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas, que dirige o combate na Ucrânia e inventou o conceito), em que um Estado pode utilizar todos os mecanismos, incluindo o crime, para desestruturar os outros estados.
"Este tráfico mexe milhares de milhões de euros. Não são milhões, estamos a falar de mais de quatro mil toneladas que passam por ano no sul da Península Ibérica para o Norte [da Europa]."
Temos de ter cuidado para que o Estado português não se fragilize perante uma atividade que tem condições para nos desestruturar profundamente.
Estamos a falar na necessidade de penas mais pesadas?
Não são as penas mais pesadas que vão resolver o problema, mas por exemplo: a proibição de estas embarcações poderem operar nos nossos portos; proibição de estas embarcações poderem ser feitas em território nacional; proibição de libertação destes agentes quando são apanhados, em vez de os libertarmos antes do julgamento, porque nessa altura embarcam noutra embarcação e voltam para a terra natal e nunca ninguém sabe mais deles.
Termos medidas que sejam realmente eficazes para depois os levarmos até ao julgamento final, para que não desapareçam a meio do processo como tem acontecido. O reforço de todo este complexo legislativo ajudará certamente a combater este fenómeno.
Quais as características dos detidos?
Temos apanhado sobretudo cidadãos espanhóis e marroquinos, gente nova e de meia-idade, os organizadores [são] mais velhos e os mais operativos [são] mais novos. Temos conhecimento de cidadãos portugueses também envolvidos, as redes estão a recrutar na parte mais frágil da sociedade.
Estamos a preparar-nos para enfrentar no futuro soluções mais complexas de tráfico, como sejam embarcações telecomandadas.
Há mais costa portuguesa além do Algarve. Devemos começar a olhar para outros portos?
A história diz-nos que a costa a oeste também é usada até à Galiza. Muitos destes grupos têm origem na Galiza, chamamos os galegos, indivíduos que faziam tráfico de tabaco há muitos anos, que continuam envolvidos nestas redes de tráfico de droga, levam produtos para o norte da Europa e também desestruturam essas sociedades com grande risco.
Ultimamente, têm acontecido fenómenos anormais no norte da Europa ligados ao tráfico de haxixe com muita violência.
Como funciona a cooperação entre entidades?
Tem sido muito boa, envolvendo a Marinha, a Autoridade Marítima e, essencialmente, a Policia Judiciária. A Força Aérea tem sido essencial na vigilância dos passos e das embarcações.
Os meios que tem são suficientes?
Nós temos os meios que o país decidiu atribuir pelo governo eleito. A minha obrigação é fazer o máximo com o que tenho. Quem julgará se são suficientes, ou não, é o poder político.
Temos pessoas muito esforçadas e de quem tenho muito orgulho, pessoas extraordinariamente corajosas e dedicadas. São patriotas, que têm um sentido de dever e entrega extraordinários.
"Nós temos os meios que o país decidiu atribuir pelo governo eleito. A minha obrigação é fazer o máximo com o que tenho. Quem julgará se são suficientes, ou não, é o poder político."
A Marinha e Autoridade Marítima olham para o mar de forma holística, tudo no mar tem que ver connosco e entregamos a atividade ilegal aos agentes que têm competência de ação.
Não faria sentido que a Marinha encontrasse migrantes, pesca ilegal, poluição do mar e dissesse "isto não é nosso". O navio faz tudo o que tem que ver com o Estado português no mar e está sempre atento, garantindo a segurança.
Quais são as prioridades para este ano no narcotráfico?
O mundo está num momento crítico. A Marinha atua dentro da NATO, a segurança alargada e cooperativa são prioridade, mas a segurança das nossas águas é a primeira prioridade, assim como a segurança do nosso território.