O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) afirma que a Igreja “não está acima da lei” e que se as vítimas de abuso sexual interpuserem processos que levem ao pagamento de indemnizações, será seguida a lei.
“Indemnização é um termo jurídico, chega-se à indemnização através de um processo jurídico. Se alguém puser um processo, vai seguir a lei. A lei diz que quem é responsável por um mal praticado são as pessoas que o praticaram. Agora, o que nós dizemos é que ninguém vai ficar sem ajuda para aquilo que é justo e para a sua vida”, afirma José Ornelas, em entrevista conjunta à agência Lusa e à agência Ecclesia.
“O que nós vamos fazer é disponibilizar ajuda. E é por isso que não pomos [a questão] em termos jurídicos. Se for em termos jurídicos, é evidente que vai haver um processo e é evidente que nós não estamos acima da lei”, explicou o prelado, acrescentando que “as pessoas que foram abusadas em ambiente de igreja, ou por pessoas da igreja, têm e vão ter a ajuda necessária”.
Para José Ornelas, a ação da Igreja Católica em Portugal no campo dos abusos sexuais, com a criação da Comissão Independente, cujo trabalho foi apresentado em 13 de fevereiro, com as comissões diocesanas e, agora, com o Grupo VITA, “é uma iniciativa que foi julgada absolutamente necessária na época em que vivemos, com o objetivo de permitir conhecer a realidade em que vivemos e concretamente na Igreja”.
“A nossa perspetiva era de conhecer, para melhor intervir. (…) Eu dizia desde o início: pior do que aquilo que possa vir a conhecer-se é não [se] conhecer o que temos”, afirma o também bispo de Leiria-Fátima, convicto de que foi dado, com a Comissão Independente, “um passo muito significativo” em direção a esse conhecimento, “porque foi feito por pessoas competentes, pessoas que tinham capacidade para o fazer, que planearam muito bem, seja a constituição da equipa, seja a metodologia seguida. E permitiu também organizar e articular todo esse esforço técnico com a realidade das dioceses, concretamente, não só com a busca de eventuais casos de abuso, mas também com o recurso aos arquivos diocesanos”.
Quanto aos números apresentados pela comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht em 13 de fevereiro - 512 denúncias validadas das 564 recebidas, levando a uma extrapolação para a existência de um número mínimo de 4.815 vítimas nos últimos 72 anos -, José Ornelas é perentório:
“Eu não posso dizer (…) se são muitos ou poucos. Eu só sei é que qualquer um é um drama”.
Já sobre as críticas ao relatório da Comissão Independente, inclusive por parte de alguns membros da Igreja, o bispo diz poder “entender o desconforto de pessoas que dizem: bom, porque é que a Igreja é que tomou ela a iniciativa de destapar esta caixa de Pandora?”, mas manifesta-se contra essa ideia.
“A verdade é mais significativa e mais importante, sobretudo quando queremos atuar sobre a realidade (…). Mais, era importante, particularmente, porque estamos a tratar de pessoas, de pessoas sobre as quais foram cometidas injustiças muito graves. E ir ao encontro destas pessoas só poderia ser assim”, sublinha o presidente da CEP, explicando que a constituição da Comissão Independente quando já existiam as comissões diocesanas se deveu à necessidade de “quebrar o gelo”, permitindo a aproximação das vítimas.
Segundo José Ornelas, “as pessoas diziam: eu não gostaria de me manifestar perante uma comissão onde está um meu vizinho, ou uma minha vizinha”.
“Isto não tira nada da competência dessas pessoas [que integram as comissões diocesanas de proteção de menores]. (…) Mas, para esta fase, era muito importante, para quebrar este gelo, que tivéssemos alguém de fora que garantisse o anonimato” e que esta primeira fase decorresse num ambiente de “discrição em relação às vítimas”.
Abordando a polémica surgida com a inclusão de nomes de alegados abusadores já falecidos nas listas entregues pela Comissão Independente às dioceses, o líder da CEP garante que “não foi por desleixo, nem por falta de atenção que eles lá figuram. [A inclusão de] a maior parte destas pessoas já falecidas [nas listas] tem a ver com o facto de as vítimas estarem vivas e, portanto, [foram incluídas] por uma questão de justiça para com estas pessoas”.
Quanto ao Grupo VITA, apresentado na quarta-feira, coordenado pela psicóloga forense Rute Agulhas, José Ornelas assegura que “não é a continuação da Comissão Independente (…), porque essa era uma comissão de estudo e, portanto, era uma comissão totalmente independente”.
“Agora, esta faz parte do processo operativo que se segue às conclusões do estudo, do relatório feito, das recomendações e daquilo que nós próprios fomos vendo com o processo que está a fazer a Igreja”, diz.
“Entramos num processo operativo, e este grupo vai ter uma parte muito significativa de intervenção, nos próximos dois três anos”, que passa por “preparar a Igreja para estar atenta, acolher casos eventuais que vão acontecendo, tratá-los convenientemente, ir ao encontro destas pessoas [vítimas] e dos outros que vêm do passado. Mas, também, e sobretudo, preparar tipos de prevenção, de formação de pessoas, sobretudo dos agentes que estão em contacto com crianças”, explica o presidente da Conferência Episcopal.
O objetivo passa, ainda, por “montar um sistema que fique na igreja” para o acompanhamento destes casos, com a opção a ir no sentido de “uma organização preferentemente laical e competente”.
Confrontado com a questão do rombo que os casos de abuso terão provocado na credibilidade da Igreja Católica em Portugal, José Ornelas diz desconhecer, tendo em conta o muito “fumo” que houve “nos media”, considerando que “também houve muita desinformação no meio disto tudo”.
No entanto, “esses casos existiram e não fechamos os olhos, não olhamos para o outro lado e temos de melhorar o nosso sistema. Não é que a Igreja seja [uma instituição] que tenha mais abusadores que outras situações... Agora, é duplamente grave”, reconhece.
“E não me preocupa o escândalo, preocupa-me que tenham existido esses casos. É isso que me preocupa. A credibilidade vem daí. Não é de se fazer conhecer, é de existirem e, agora, ter a coragem de chamar as coisas pelo nome e de agir. Não é falta de credibilidade. Quando eu posso dizer ‘errei’, isto não me tira a credibilidade”, afirma José Ornelas.
“O pior seria eu cometer uma asneirada e continuar, para me defender, a encobri-la ou, simplesmente, dissimulá-la”, enfatiza o presidente da CEP, reeleito para um segundo mandato neste mês de abril.