Eu sei que estamos todos preocupadíssimos com o termos reentrado na lista “negra” do Governo inglês e com o fim dos 1800 voos previstos para o Algarve que já não virão por causa de uma dúzia de casos descobertos da variante “nepalesa”, muito provavelmente trazida pelos próprios britânicos. Questões de vida ou de morte (económica e física). Mas, deixem-me falar-vos do que pode ser ainda mais importante: a lei 21/27 de 17 de Maio, que ninguém conheceria não fosse a edição de 29 de Maio do Público dedicar-lhe três textos de diferentes opinadores a desancá-la, e bem.
Não menosprezo o esforço de mais uma meia dúzia de escribas igualmente bem informados. Tanto mais que eu faltei à primeira chamada, sem alibi que me valha, mas aquela edição de Sábado é esmagadora. Trata-se de uma daquelas leis que só não gerou unanimidade parlamentar porque o PCP, os Verdes a IL e o Chega se abstiveram. Note-se que ninguém votou contra. E a abstenção talvez nem sequer se tenha devido ao facto de acharam logo que as respetivas “narrativas” podiam ser facilmente vítimas do lápis azul subtilmente criado para o futuro.
Neste caso, até o Presidente que é um conhecido “picuinhas” parece ter assinado de cruz. Ele que adora descobrir este tipo de notícia e ser o primeiro a passar um belo raspanete, associado a uma ainda melhor lição de história, acabou traído pelo sono no dia em que lhe aterrou na mesa de despacho um documento tão anódino quanto o título fazia antever: Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na era Digital.
Para não ter falado antes e mais cedo só tenho um casamento que dia 29 me encheu o dia de deliciosas futilidades e deixou o Público por abrir. Como não tenho por hábito ler o Diário da Républica, coisa que levei anos a aconselhar todos os meus alunos da Universidade Nova a fazer, porque passam por lá muitos escândalos que geralmente escapam à concorrência, apenas posso fazer um Mea Culpa. Mas, como mais vale tarde do que nunca, cá venho com atraso juntar a minha voz a quem já desancou no diploma e exigiu a sua revisão imediata. Não há desculpas. Somos o povo que somos. Temos os partidos que temos, e a história que tivemos, e antes emendar do que chorar lágrimas de crocodilo depois.
Primeiro: não compro a narrativa de que a coisa nasceu em Bruxelas e nós mais não fizemos do que adequar à ordem jurídica nacional uma carta de direitos protetora de todos os europeus consumidores de redes sociais e conexas e que em caso algum pode assemelhar-se à velha Censura. Pode, pode.
Pesquisando na legislação europeia sobre a matéria o que se encontra é a ausência total de qualquer diretiva (que se imporia por direito à legislação nacional dos Estados, tornando-se de transposição obrigatória). Tudo o que existe é o Plano de Ação Europeu Contra a Desinformação, saído do Conselho Europeu de Dezembro de 2018, visivelmente inspirado na reação à intervenção Russa nas eleições Americanas. Um Plano para evitar a repetição do mesmo tipo de intervenções estrangeiras tendentes a manipular, da mesma forma, as eleições europeias previstas para o ano seguinte. Nesse plano, reconhecendo o risco de associações espúrias de forças pró-russas a algumas forças políticas extremistas e anti-europeias, encontram-se várias expressões e conceitos agora vertidos para a lei nacional, designadamente a admissão de estruturas independentes dedicadas a fazer o fact-checking de notícias e opiniões baseadas em óbvias e menos óbvias manipulações, sempre difíceis de detetar.
Cada país comprometia-se então a por em prática um plano idêntico para fomentar e incentivar a literacia mediática dos respectivos eleitores, evitando a manipulação das eleições e do discurso mediático minado por potências ou algoritmos gerados no exterior da União, com uma grande preocupação económica para evitar a viciação da concorrência em matérias de publicidade, comércio e consumo. A versão portuguesa de 2021 está muito longe deste contexto original. Bruxelas pode ter culpa de muita coisa, mas deste aborto legislativo não tem. Pelo menos, a culpa total.
As fake news e o seu combate fazem parte das prioridades da União e neste ponto não há nada a dizer. São uma luta legítima e de apoiar. Os observatórios independentes aconselhados nesse plano (muitos na dependência de universidades ou entidades privadas ) não me parecem ter nada a ver com o conceito de pequenas “ERCsinhas” criadas nacionalmente e mandatadas para atribuir uma espécie de selos de qualidade a algumas publicações, por mais digitais que se apresentem (artigo 6- nº6 “ o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública). Não me parece a mesma coisa.
A simples referência à ERC que temos (já aqui o referi várias vezes) causa-me alguns calafrios, mas não é tanto por aí que vejo na nova lei uma perversa criação de mecanismos censórios que a história dos 48 anos que antecederam os últimos 45 nos deviam tornar particularmente atentos para nunca os voltar a permitir.
Note-se que a Censura é uma filha da mãe desconhecida e de um pai incógnito porque nunca foi apresentada de outra forma que não fosse uma espécie de auto-criação que começa numa simples ordem de polícia para acabar embrulhada numa declaração de amor à liberdade de expressão na constituição de 33, sem abdicar, mesmo aí, do linguajar republicano de 1911 de modo a aparecer sempre disfarçada de uma forma sempre “indesejada e transitória” da proteção dos consumidores de informação maleficamente distorcida, manipulada, e da boataria inútil ou mesmo da pérfida mentira.
Os pais mais extremosos sempre a rejeitaram e nunca foi vista por ninguém que a recomendasse senão como um mal terrível, mas provisóriamente necessário. Imposição de tempos extraordinários inevitável para os mais acérrimos defensores da liberdade. Salazar, por exemplo, não hesitou em confessar, numa entrevista a António Ferro, ter sido “vítima” dela e ter chegado a sentir uma tal revolta que o levou a ter “pensamentos revolucionários”. Sugeria depois com alguma perversidade a alternativa da auto-regulação, mas nunca com a promessa que mesmo essa institucionalização da “autocensura” implicasse o fim da Censura em si.
Pena o presidente do Conselho não ter concretizado os assomos “revolucionários” através da abolição do lápis azul. Também Carmona afirmara, noutro encontro com um jornalista, “coisa alguma repugna mais o meu espírito liberal do que a censura à Imprensa ”acrescentamdo “ mas os boatos falsos, as notícias tendenciosas desorientam o espirito, provocam agitação. É preciso evitá-los. O Governo não receia a crítica. Deseja-a até. Mas a crítica dos factos reais e não dos imaginários; a crítica nobre, elevada, serena”. Além disso garantia que só extraordinariamente seria mantida. A excecionalidade durou quase meio século.
Sabemos o que se passou depois. E não adianta fingir que a nova lei não trás os mesmos ovinhos de serpente. Liberdade absoluta. Mas, voltamos ao artigo sexto (agora nº 2), “considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora ,(…) e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”. No que visa as eleições vá lá, mas oque são “processos de elaboração de políticas públicas e bens públicos”.
Pequeno exemplo: vejamos, ao acaso, o título de um jornal digital recente “MAI desmente a insidiosa mentira sobre a PSP”. Cabrita dixit. E se Cabrita decidisse ao abrigo da nova lei impor, a torto e a direito, a sua preciosa “verdade” sobre todas as políticas que envolvem o seu polémico Ministério, raramente coincidentes com a verdade aceite pela maioria da comunicação social sobre as mesmas matérias, ou considerar que o relato sobre manifestações de divergências das suas políticas entre actores sobre a sua alçada, ou críticas às suas preciosas reformas eram, afinal, susceptíveis de “causar prejuízo público” (se calhar as imagens dos desacatos no Porto ou dos adeptos sem máscara, à molhada, nas celebrações da Champions contribuíram para a saída de Portugal da lista verde britânica…). Quem poderia mostrar a verdade inconveniente?
A pretexto do Plano Europeu é óbvia a originalidade nacional. Subscrevo por isso as palavras de António Barreto sobre os perigos de criação de uma nova censura, que com a anterior ou melhor, as anteriores, comunga da mesma “bondade”, querer proteger os leitores menos informados da mentira e da manipulação que sem o escrutínio de entidades públicas, mandatadas para a nobre função de os proteger, não conseguiriam expurgar o mundo dos jornais (neste caso aplicável aos jornais digitais e às maléficas redes) de os fazer cair no engodo da mentira e da desinformação.
Não sei porquê, prefiro sempre o risco de ser ocasionalmente enganada à garantia de que o Governo nunca se engana e a oposição raramente tem dúvidas. Duas coisas que justificam a aprovação de leis como estas. Se foram apenas bons motivos que inspiraram o legislador não haverá de custar-lhe alterar meia dúzia de linhas e tornar-nos, a todos, mais descansados.