É do colo do pai que mais tem saudades. Aos 74 anos, Violante Saramago Matos decidiu escrever sobre o homem e o pai que foi José Saramago. “De memórias nos fazemos” (ed. Esgotadas) é um livro cheio de histórias da sua relação “cúmplice” com o pai. Em entrevista à Renascença, a autora, bióloga de formação, revela que o livro é também um “tratado de pedagogia infantil” sobre como educar uma criança.
Não se recorda de “grandes conversas” com o seu pai, mas de José Saramago não esquece os ensinamentos que por vezes eram passados num olhar, num gesto ou mesmo em silêncio. No ano do centenário do nascimento do Nobel da Literatura, Violante explica porque ouso escrever estas memórias, mas também ilustrar este livro com pinturas suas. Filha de um escritor e da artista plástica Ilda Reis, Violante Saramago Matos diz de si que é “o prédio da esquina de duas ruas. Uma que é um Prémio Nobel da Literatura, outra que é um Prémio Europeu das Artes”.
"De Memórias nos Fazemos". É um livro escrito a olhar para dentro, para as suas histórias com o seu pai?
Foi, mas foi também uma preocupação em trazer para fora o pai e o homem. Há a ideia em algumas pessoas que uma coisa é o que é escrito, outra coisa é quem escreve.
Do meu ponto de vista não corresponde à verdade. Quem escreve transporta-se sempre para o que escreve, porque senão a escrita não tem verdade.
E isso acontecia com o seu pai, José Saramago?
Evidentemente que é uma escrita romanceada ou de ensaio. Mas se quem escreve não se transporta no essencial para dentro do livro, o livro não é sólido e falha qualquer coisa. Acho que havia um conhecimento muito grande, bastante significativo, do escritor, do pensador, mas não havia do homem, do pai, em particular.
Quis completar essa lacuna?
De certa maneira este livro é quase um tratado de pedagogia infantil, porque no fundo é através destas memórias que aprendi com ele e fui crescendo.
Aprendeu com José Saramago a escrever? Recorda no livro que no seu tempo de Liceu, quando lhe pediram uma redação sobre Goa, ele deu-lhe as ferramentas para a escrever.
Exato! Quando me pediram a redação era uma miúda de 12 anos. Evidente que não sabia nada. Ele pergunta-me com toda a calma, sem sequer ler aquilo que eu tinha escrito, o que é que eu sabia de Goa? E eu disse, com o maior descaramento possível, e a maior inocência, que se calhar não sabia nada.
Então ele, perguntou-me 'Como é que escreves sobre uma coisa de que não percebes nada?!' E a verdade é que isto ficou! Ficou mais do que qualquer pequena oferta que tivesse sido feita, porque nunca mais fui capaz de escrever nada sem estudar.
Acho que havia um conhecimento muito grande, bastante significativo, do escritor, do pensador, mas não havia do homem, do pai, em particular.
Posso ter uma opinião disparatada em relação à realidade das coisas, mas resulta sempre de algum pensamento ou estudo. E isso aprendi há uns sessenta anos bem medidos!
São essas pequenas grandes memórias que agora partilha?
Não posso dizer que me tenha esforçado muito para as ir buscar, porque são coisas com que lido mais ou menos de uma forma sistemática no dia-a-dia. Não de uma forma consciente, mas se procuro ser integra, séria, há razões para isso lá atrás.
Se procuro ter respeito pelos outros, há razões para isso que estão lá muito, muito atrás. Isso foi efetivamente aquilo que acabei por aprender e aquilo que me pareceu que era importante complementar - em particular neste ano do centenário - uma outra visão que é a da pessoa que foi pai, que me ensinou. Por isso digo que é um tratado de pedagogia infantil, de como se cria e educa um filho.
Nem sempre esses ensinamentos lhe eram transmitidos de forma obvia. Diz que nem sempre falavam, havia outras formas?
Sim. Eu não me lembro de grandes e prolongadas conversas com o meu pai. Lembro-me mais depressa de pequenas notas, de pequenas chamadas de atenção, do gesto, do olhar, da expressão, porque devo dizer, eu desde miúda tinha uma cumplicidade com o meu pai muitíssimo forte.
Para além da relação pai e filha, que à partida é uma relação sadia, havia de facto esta relação de cumplicidade, entendimento e conhecimento. A gente sabia pelo olhar, pela expressão e pelo gesto o que cada um estava a pensar.
Muitas vezes, durante o processo de crescimento, quando apareciam perguntas a resposta não era ‘sim’, ‘não’, ‘é preto’, ‘é branco’, ‘é cinzento’ ou ‘é vermelho’, ou ‘vai por ali’ ou ‘vem por aqui’.
Eu não me lembro de grandes e prolongadas conversas com o meu pai. Lembro-me mais depressa de pequenas notas, de pequenas chamadas de atenção, do gesto, do olhar, da expressão, porque devo dizer, eu desde miúda tinha uma cumplicidade com o meu pai muitíssimo forte.
A maior parte das vezes ele levava-me por uma série de círculos, por pequenas conversas, por ‘olha repara’, ou por não dizer nada, e de repente a lição estava dada.
Há algum momento em particular que recorda desses ensinamentos do pai José Saramago?
Há uma cena que me lembro muito bem. Eu adorava a praia e na saída, decidi um dia fazer uma birra daquelas monumentais, porque não queria ir para casa. Eles não me ligaram nenhuma, porque provavelmente já eram horas de ir para casa e viemos embora.
Eu sempre a chorar, como se me tivessem roubado o mundo e arredores, e a minha vida acabasse ali porque tinha saído da praia! Acontece que passamos por um ringue de patinagem, o meu pai para, olha para mim, manda-me olhar para o ringue e vejo uns miúdos da minha idade a arranjarem o cimento, de pá de trolha na mão, e calei-me!
Nunca mais andei de patins. Era desta maneira que as lições me ficavam marcadas.
Sente que escrever é para si uma "ousadia", sendo filha de um prémio Nobel da Literatura? É preciso desprendimento para escrever?
No meu caso, é difícil pintar e é difícil escrever! E não digo isto como figura de estilo. Digo isto como sentimento real. Eu sou o prédio da esquina de duas ruas. Uma que é um Prémio Nobel da Literatura, outra que é um Prémio Europeu das Artes.
E nesta esquina o prédio só tem duas soluções. Ou se deixa de pintar de um lado pelo Prémio Nobel e pelo Prémio Europeu, ou então procura ter uma identidade, procura ser.
Não renegando, não rejeitando. Eu não matei nem pai, nem mãe para chegar onde cheguei. Esta ideia de que ‘– Ah, sim, é preciso matar o pai ou a mãe!’ Não é nada preciso matar o pai ou a mãe.
É preciso assumir que eles são os nossos pais, que eles tiveram uma importância do ponto de vista cultural fabulosa, extraordinária; que me deram uma educação que eu pensava na altura que era normal, mas que efetivamente não era normal.
No meu caso, é difícil pintar e é difícil escrever! E não digo isto como figura de estilo. Digo isto como sentimento real. Eu sou o prédio da esquina de duas ruas. Uma que é um Prémio Nobel da Literatura, outra que é um Prémio Europeu das Artes.
Só vim a perceber isso bastante mais tarde e que tinha a obrigação de aprender e usar as ferramentas que me ensinaram. É exatamente isso que faço na minha vida, quando pinto, quando escrevo, quando falo com os meus filhos, quando falo com o meu marido, quando estou com os meus netos, é exatamente isso que faço.
É ser eu a partir de circunstâncias particulares que é ter um pai e uma mãe que tiveram este peso e esta importância do ponto de vista do panorama cultural português.
Este livro tem um registo de vários episódios soltos das suas memórias, ao mesmo tempo vai cruzando esses episódios com alguns dos livros do seu pai. A pandemia ajudou a ter tempo para escrever?
Eu escrevo sempre sobre o que sinto, como aliás fiz nos meus dois livros anteriores. Um deles foi escrito a propósito da pandemia. "Escritas da Pandemia com Caneta e Pincel" resulta da pandemia, da pressão, da alteração radical das nossas vidas.
A situação da pandemia, a obrigação de ter de ficar em casa, leva-nos muitas vezes a olhar para coisas de uma forma diferente, coisas que em outras circunstâncias não repararíamos, mas que por força das circunstâncias, nos prendem mais a atenção e sobretudo nos prendem a atenção no sentido do passado, presente e do futuro.
Foi reler alguns dos livros de José Saramago?
Sim, reli muita coisa dele. Não reli todos, mas muita coisa dele. Aliás este livro tem três ou quatro notas sobre alguns livros. Houve outros que gostaria de ter incluído, mas que, de facto, não consegui incluir, pela simples razão que isso me obrigaria a dilatar o tempo em que estava combinado apresentar o livro. Caiu por exemplo o Levantado do Chão.
Mas não há dúvida, há um peso sempre que está presente quando se escreve e quando se pinta, mas é um peso que aprendi a que não me limitasse, não me coibisse de fazer este tipo de intervenção porque gosto. Pode ser útil para se poder conhecer o homem que escreve, que se criou e formou ao longo dos tempos.
Ninguém nasce escritor, nem ninguém nasce serralheiro. Há pessoas que nascem com o pé descalço, que fazem um curso de serralharia, passam para uma atividade editorial e que depois, passados muitos anos, chegam ao Prémio Nobel.
Da mesma forma que há meninas que dificilmente iam à escola, mas que os pais tiveram a lucidez e capacidade de as por na escola, vão aprendendo a desenhar e que de repente se tornam numa extraordinária pintora e gravadora. Isto tudo aprende-se, e eu fui tento a sorte de sair destas duas pessoas e podendo ir crescendo com aquilo que eles souberam, me quiseram e foram capazes de me ensinar.
Do que é que mais tem saudades do seu pai?
.... de me sentar ao colo dele!