António José Seguro acusa "partidos tradicionais" e o socialismo democrático de "falta de rigor" na gestão dos dinheiros públicos
24-05-2021 - 16:16
 • Susana Madureira Martins

O ex-líder do PS interveio numa apresentação da nova biografia de António Guterres, tendo criticado o actual estado da esquerda. Seguro defendeu que "a ausência de comportamentos éticos" e a "falta de respostas" está a provocar o deslaçar da coesão social e a dar espaço aos extremismos.

Já ia a meio a apresentação da biografia autorizada de António Guterres, "O mundo não tem de ser assim", no Centro de Acolhimento a Refugiados da Bobadela, quando um dos autores do livro, Filipe Domingues, abordou António José Seguro sobre "a erosão dos partidos da esquerda democrática europeia nos últimos anos".

O autor do livro de resto alertou os jornalistas que iria fazer a pergunta ao ex-secretário-geral do Partido Socialista (PS) sobre "o que é que a esquerda democrática pode fazer hoje para travar o crescimento da extrema direita aqui à porta?".

Ora, face à pergunta, que de espontânea teve pouco, António José Seguro evitou falar no caso concreto português, mas "admitiu que há uma "dupla erosão, uma erosão específica dos partidos do socialismo democrático, da social democracia e há uma erosão geral dos ditos partidos tradicionais", onde obviamente cabe o PS.

E, a partir daqui, o ex-dirigente socialista, que depois de ser arredado da liderança do PS em 2014 por António Costa se dedica agora ao ensino universitário, desfiou diversas críticas, a primeira das quais sobre a crise das democracias.

Seguro defende que "infelizmente, o que acontece é o recuo que as democracias estão a ter e quando se julgava que o regime democrático era a organização última a que almejavam todas as comunidades humanas, verificamos, de facto, que há um recuo, a quarta vaga democrática não se verificou, mesmo com a expectativa da primavera árabe".

E o ex-líder socialista coloca a questão "e porquê?" e dá a resposta a si próprio, referindo que "as democracias não estão a responder aos problemas das pessoas como as pessoas desejam e quando isso acontece as pessoas enviam naturalmente a responsabilidade para quem está à frente dos governos"

E surge nova pergunta com resposta de Seguro: "quem é que está à frente dos governos? Os ditos partidos tradicionais", com a plateia da Bobadela a não esquecer nunca que é António Costa o primeiro-ministro de Portugal e líder de um partido fundador da democracia e por isso "tradicional".

Segundo Seguro "como não há solução desses problemas concretos associados a fenómenos de má gestão de serviços públicos, significa que se abre um campo de desilusão, de desafectação e aí emergem outro tipo de partidos".

No rol de críticas ao andamento das democracias e de quem as dirige, o antigo líder do PS refere que "o socialismo democrático sempre foi alternativa" e foi alternativa "quando foi fiel aos seus valores e aos seus princípios, foi alternativa às propostas liberais do ponto de vista económico e à privatização de serviços públicos sempre que soube actualizar as suas propostas , sempre que soube combater as desigualdades e sempre que soube na frente e na liderança dos governos pugnar por mais justiça, quer ao nível do Estado de direito, quer ao nível de criar coesão social".

Seguro conclui que "há hoje nas sociedades actuais um desenlaçar da coesão social e se quisermos dessa classe média", ou seja, tira-se daqui que o socialismo democrático deixou de ser alternativa por culpa própria, com o ex-dirigente do PS a apontar como é que se podia ter evitado tudo isto e sobretudo evitar que os ditos "partidos tradicionais" abrissem a porta aos extremismos.

Entrando no campo dos "ses", António José Seguro aponta que se se tivesse "cuidado com o fortalecimento das instituições da nossa democracia, em ter comportamentos éticos que sirvam de exemplo ao conjunto da sociedade, rigor na gestão dos dinheiros públicos e resposta aos problemas concretos das pessoas, sobretudo os mais vulneráveis, os extremismos e outros partidos novos não teriam possibilidade de se alimentar e de crescer".

E isto tudo sem Seguro nomear nenhum líder actual ou anterior do "socialismo democrático" ou, muito simplesmente, sem falar do ex-primeiro-ministro José Sócrates, também ex-secretário-geral do PS ou do actual chefe de governo e líder socialista António Costa. Mas a atribuição de responsabilidades está, obviamente, implícita nesta conversa.

Este foi o segundo evento público em menos de um mês em que Seguro participou, ambos com críticas mais ou menos implícitas aos dirigentes europeus e ao actual estado das democracias, com o ex-líder socialista a esquivar-se de ambas as vezes a explicar se isto é um regresso à política. Desta feita, na Bobadela, garantiu que tinha de ir fazer um exame aos seus alunos da Universidade, alegando pressa para não falar aos jornalistas.

Guterres "monolítico" ou "persistente e tenaz"?

Para António José Seguro, a segunda opção, sem dúvida. Um Guterres "monolítico" só existe mesmo na cabeça de quem não o conhece, garante aquele que foi secretário de estado e ministro adjunto do o ex-primeiro-ministro e actual secretário-geral das Nações Unidas.

Na apresentação da biografia autorizada "O mundo não tem de ser assim", Seguro relevou "a preocupação" de Guterres "com as pessoas e em particular com os mais vulneráveis, esteve na definição das suas prioridades, quer no governo, quer na presidência da União Europeia, quer na sua ação enquanto jovem, isso esteve sempre presente".

Numa intervenção com tantas críticas ao actual estado das democracias e dos que as dirigem, Seguro só teceu rasgados elogios ao ex-primeiro-ministro português e "o modo inteligente como trata os assuntos sensíveis".

Seguro recuou ao drama diplomático entre Timor Leste e a Indonésia nos anos 90 do século passado para dar o exemplo da "abordagem" que Guterres "fez ao presidente Suharto [presidente da Indonésia por altura das negociações com vista à independência de Timor], em que ele [António Guterres] aproveitou uma oportunidade quando menos se esperava, ele interpela-o directamente, apresentando uma sugestão com benefício mútuo, sabendo que isso é que poderia desbloquear como desbloqueou o resultado final".

Contrariando a ideia geral de um dirigente indeciso, hesitante, que apenas aposta no diálogo, António José Seguro explica que Guterres "nunca procurou a vitória pela vitória, procurou a solução para o problema o que significa que compreende a posição do outro, não deixa o outro encurralado, encontra uma solução que resolve um problema, mas não coloca o que está numa posição que tem de ceder mais encostado à parede", concluindo com um "é muito bom".

Para Seguro o actual secretário-geral das Nações Unidas "é uma pessoa que busca sempre o compromisso, busca sempre a solução, é determinado, tenaz e persistente", acrescentando que "onde muitas vezes as pessoas vêem um beco sem saída, ele encontra uma solução", garantindo que "isso deve-se à sua grande capacidade de compreensão, da sua cultura, do seu conhecimento, ele é uma pessoa sempre de conhecer, ávido de conhecer".

De fora desta conversa ficou a forma gelada como António Guterres em 1991 se referiu à derrota do seu camarada de partido Jorge Sampaio nas Legislativas contra Cavaco Silva nessa pouco compreensiva e sibilante frase: "Estou chocado com este resultado."