O verão traz de volta ao país muitos emigrantes portugueses. De Norte a Sul há festas e romarias, quase sempre em honra de um Santo, mas a fé e a devoção são realmente importantes? Ou é a dimensão profana que acaba por se impor?
Foi este o mote para a conversa com Rui Ferreira, assessor da Cultura na Câmara de Braga, com formação em património e turismo cultural. Ao longo da sua carreira, o investigador tem centrado muito do seu trabalho na área do património imaterial, com atenção especial às áreas da antropologia urbana e da sociologia da religião, um interesse que a passagem pelos jesuítas também ajudou a consolidar.
Em entrevista à Renascença, Rui Ferreira diz que não consegue “separar a religiosidade da parte festiva e profana”, porque se complementam. E se quem vai ao Minho no verão “sabe que vai ouvir foguetes a toda hora”, e que “basta andar 50 quilómetros para encontrar festas e romarias”, isso também prova que "há uma dimensão da fé muito presente nos minhotos” e que não há “indiferença religiosa”.
Para o investigador, a religiosidade popular devia ser mais estudada a nível académico, e menos menosprezada pela Igreja, que deve também saber aproveitar a valorização do seu património, em termos turísticos e culturais, porque tudo contribui para fortalecer a fé das pessoas.
Nas festas populares de verão, a fé é realmente importante ou há um lado mais popular, mais festivo, que se impõe?
As pessoas participam neste tipo de práticas e manifestações com várias motivações, mas a raiz é religiosa, e a religiosidade está presente um pouco por todo o país, com uma vitalidade admirável. Mas, não podemos querer ler as festas e as romarias apenas à luz da questão da religiosidade, até porque elas são muito mais do que isso.
A religiosidade acaba por ser sempre um mote para o encontro, para o convívio, para a celebração, e nestes casos, nas festas de verão, muitas pessoas que passam o ano todo fora do país aproveitam este momento para reviver as suas raízes e a sua identidade.
Eu não consigo separar a religiosidade da parte festiva, da parte mais profana, porque acho que tudo isso compõe a identidade das comunidades.
No caso dos emigrantes, que não dispensam a festa na aldeia, ou peregrinar a Fátima, em Agosto, podemos dizer que a fé continua a ser fundamental na ligação que têm a Portugal, à terra natal?
Sim. Certamente sentem diferenças assinaláveis na vivência da fé no local em que se encontram a trabalhar durante o ano. Há uma ânsia de retomar uma forma de estar e uma forma de experimentar a fé, que pode ser um pouco até mais afetiva, mais cativante, não apenas pelo contexto, que obviamente apela às raízes, mas particularmente pelas diversas formas e manifestações da religiosidade, que eu entendo que no nosso país têm especificidades muito próprias, e que por isso mesmo, se calhar os emigrantes até vêm com mais intensidade, porque sentem essa ausência durante 11 meses, e depois, durante o mês de agosto, podem experimentá-las. E, por isso mesmo, eles também são os grandes catalisadores deste tipo de fenómenos.
E isso também mostra que não se perdeu a identidade cristã, nestas comunidades?
As estatísticas até podem mostrar recuos e avanços em alguns âmbitos, mas a minha experiência diz-me que não vivemos num tempo de indiferença religiosa, do ponto de vista daquilo que são as manifestações e as práticas, bem pelo contrário. Se falarmos nos grandes eixos urbanos estamos a falar do turismo, que por conseguinte fala de economia. Há até uma tentativa de valorização das manifestações da religiosidade, e falo aqui no caso de Braga, mas também dos meios mais pequenos, nas pequenas comunidades, nas aldeias, nas vilas. O que se nota, pelo menos aqui, no entre Douro e Minho, é uma efetiva vitalidade. E convém dizer que também as questões ligadas à valorização do património cultural imaterial, e nós estamos numa fase de evidente valorização…
Está a referir-se ao caso do Santuário do Bom Jesus, que foi classificado como património da humanidade?
É muito importante para Braga. É um reconhecimento que sabíamos que mais tarde ou mais cedo teria que acontecer, dado o relevo do complexo monumental, mas ainda estamos a falar do património monumental, património construído. Quando falamos de manifestações e práticas estamos na dimensão do imaterial, e Portugal tem tido o reconhecimento de muitas práticas. Por isso, neste tempo em que a comunidade, não apenas os políticos, ou as instituições políticas, mas a própria sociedade civil se tem debruçado sobre o património cultural e imaterial, e em que as manifestações religiosas ocupam um espaço que é fulcral no nosso país, mesmo para quem não tem uma relação de fé assinalável na sua vida, há uma tendência para valorizar esse tipo de fenómenos. Por isso, não diria que estamos num período de menor envolvimento na dimensão da religiosidade popular.
Para a própria Igreja é uma oportunidade para perceber a natureza desses fenómenos, que depois têm, obviamente, a parte mais convivial, de lazer, que é natural nas festividades religiosas. Não podemos separar constantemente o sagrado daquilo que nós designamos de profano, porque faz parte do mesmo fenómeno, a vivência do religioso implica também essa dimensão. A festa deve ter a procissão, a Eucaristia, a parte da romaria, em que as pessoas se dirigem à capela, fazem a sua promessa, mas depois tentamos excluir o resto, que também faz parte da festa, e que também cativa as pessoas à vivência religiosa. Tudo contribui para uma vivência mais profunda do fenómeno, e portanto temos aqui uma oportunidade única, porque a sociedade civil está mais aberta à relevância das manifestações de religiosidade popular, para aprofundá-las, para incentivar à seleção a partir delas, e perceber o que é que para as pessoas é relevante em cada uma das manifestações.
Por isso, acho que este universo vasto de festas populares em Portugal, em que há um Santo, há manifestações religiosas muito evidentes, e há acima de tudo o convívio, a procura da identidade, tudo isso tem de ser caro à Igreja porque é, efetivamente, no encontro e no convívio que as comunidades crescem na amizade, na entreajuda, na busca de sinergias, e tudo isso patrocina aquilo que é mensagem cristã.
O Minho, como já referiu, é uma zona especial no país, no que diz respeito à vivência da fé, e no caso particular de Braga, têm as festas do São João e também a Semana Santa.
Braga tem esses dois momentos especiais, as festas de São João com uma dimensão bastante significativa, que vem do século XII, mas particularmente a Semana Santa. E não podemos separar a Semana Santa do Bom Jesus do Monte, duas expressões, entre outras, que temos na cidade, do imaginário da Paixão de Cristo, que se enraizou aqui de uma forma muito evidente e que mobiliza a cidade há séculos.
A Semana Santa é vivida e experimentada de uma forma intensa pelos bracarenses e, por ter essas peculiariedades, acaba por atrair muita gente que quer viver essa quadra connosco. Temos cada vez mais pessoas interessadas em estar aqui, a perceber a Semana Santa de Braga. Temos um rito que também tem as suas práticas mais originais precisamente durante a Semana Santa, o rito Bracarense, mas também temos as manifestações de rua, os cerimoniais, as procissões, que são momentos únicos de vivência da fé, e também o Lausperene quaresmal, que é uma tradição que mexe com quase todas as comunidades paroquiais e com todas as confrarias da cidade.
No caso das romarias, quem vem ao Minho durante o verão sabe que vai ouvir foguetes a toda a hora, que vai ouvir música em qualquer lugar, e ver umas decorações garridas nas aldeias por onde passa, porque o Minho é festa, e a festa revela-se particularmente neste tempo e, de facto, é a nossa identidade. Uma romaria do Minho faz parte da identidade do minhoto, e quem gosta desse tipo de momentos conviviais basta percorrer 50 km que vai encontrar inúmeras festas e romarias por onde passar, portanto acho que isso nos torna especiais.
E os minhotos têm orgulho nessas tradições?
Bastante. Aliás, falou dos emigrantes, como sabe tivemos em alguns períodos grandes surtos de emigração, este é o momento do seu regresso, e isso nota-se no quotidiano de todo o Minho. Mas, acima de tudo acho que a romaria, com essas características todas especiais, que não se verificam noutras regiões do país, acima de tudo mostra, por um lado a espiritualidade - não diria só religiosidade, mas a espiritualidade -, uma dimensão de fé muito presente nos minhotos, que na Romaria se verifica de uma forma muito clara. E depois esta capacidade de, depois de um ano inteiro de trabalho, e às vezes de grande sacrifício, ter este momento de festa, de sorriso, de convívio com os demais, de esquecer conflitos que existam. Por isso é que eu não consigo separar, não consigo dizer que a vivência do religioso é apenas quando fazemos uma procissão ou quando estamos na Eucaristia. Todas as características da festa, este esbater de barreiras, este esquecer de conflitos, esta alegria autêntica, tudo isso vai de encontro aquilo que é a mensagem cristã, e esse é um grande ganho das festas e romarias que por cá continuam a ter uma força impressionante.
Se olharmos para a Europa, podemos dizer que Portugal, e no caso concreto toda a região do Minho, é ainda um oásis nesta vivência da fé?
Acho que sim. Aliás, quando optamos pelo caminho do individualismo, do fechamento, do não estar em comunidade, acho que somos pessoas mais tristes, mais afastadas da felicidade que todos buscamos na vida. Por isso, o cristianismo concede-nos esta, não diria vantagem, mas esta possibilidade de podermos voltar-nos para os outros e procurar uma felicidade mais autêntica. As festas e romarias geralmente têm um motivo religioso, mas para lá do motivo religioso e da dimensão mais eminentemente litúrgica, convida-nos a estar com os outros, a pôr de lado as divisões, e tudo isso só pode ser um contributo positivo para a sociedade, para as comunidades mais pequenas e para todos nós, no nosso mais profundo íntimo. E mesmo aquelas pessoas que não têm fé acabam por tirar proveito daquilo que é, na prática, na sua base, um acontecimento de fé.
A religiosidade popular merecia mais atenção?
O tema da religiosidade popular é ainda pouco trabalhado a nível académico, e como sabemos o trabalho académico é que permite, muitas vezes, ir mais longe no aprofundamento e até na revisão das próprias práticas. Graças a esta questão do património cultural imaterial, a este desejo da própria sociedade civil e dos políticos de o aprofundar, acho que podemos tirar um grande ganho. E oxalá também as instituições da Igreja, que se dedicam a estas áreas, possam também perceber a oportunidade que aqui se lança para se darem passos em frente, porque as práticas evoluem, como a sociedade evolui, porque é dinâmica, não fica no passado, e acho que temos aqui uma oportunidade de chegar a este âmbito da sociedade civil, e de perceber que os cristãos podem tirar mais proveito desta vivência religiosa.