A tolerância religiosa é uma marca de Portugal e vai ser também da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), garante o padre Peter Stilwell.
Em entrevista à Renascença, o diretor do Departamento de Relações Ecuménicas e Diálogo Interreligioso do Patriarcado de Lisboa - e responsável por esta área também na JMJ - diz que um dos momentos mais simbólicos será a plantação de árvores, em Belém, em representação das principais famílias religiosas. A iniciativa até partiu da Universidade de Lisboa, mas será “um marco” da semana com o Papa.
Antigo reitor da Universidade Católica de Macau, Stilwell reconhece que o atual fenómeno migratório pode fazer alterar as coisas. “Estamos a assistir a uma transformação da sociedade” e é importante valorizar a religião como “fator de integração social”.
A Jornada Mundial da Juventude é apresentada como um evento católico aberto a todos. Também é assim do ponto de vista religioso, aberto a outras religiões?
É, embora muito claramente seja uma iniciativa da Igreja Católica com o Papa, portanto, as outras confissões religiosas sentem o interesse de uma grande movimentação de jovens por causa da religião, mas não se veem muito envolvidas…
Que tipo de envolvimento é que haverá, de colaboração e de presença das outras confissões religiosas?
Por exemplo, a comunidade Ismaili ofereceu um conjunto de voluntários; a comunidade muçulmana, judaica, a ismaili e a comunidade hindu abriram os seus lugares de culto para poderem ser visitados pelos jovens peregrinos. Evidentemente, quando se diz ‘visitados’, é mais como que uma experiência para serem visitados mais tarde por escolas, como já têm sido no passado, mas com um milhão de peregrinos não dá para entrar na sinagoga ou na mesquita, temos de ter um processo de as pessoas se inscreverem para fazer uma visita.
Depois, o Movimento dos Focolares (católico) organiza o Canto pela Paz, em que convida grupos corais de diversas tradições religiosas para cantarem num festival, faz parte do Festival da Juventude.
Temos a Comunidade de Taizé, de base protestante, embora também com alguns membros católicos, que vai ocupar a igreja de São Domingos (Rossio) durante os dias todos da Jornada, para fazer os seus tempos de oração, etc.
E temos uma comunidade francesa, também vocacionada para o diálogo com as outras comunidades cristãs, que se chama Chemin Neuf (Novo Caminho), que vai ocupar a basílica da Estrela e trabalhar de mãos dadas quer com a comunidade Anglicana de língua inglesa, quer com a comunidade Lusitana - que faz parte da comunhão Anglicana -, na Igreja de St. Georges, que fica no cemitério dos ingleses, do outro lado do Jardim da Estrela. Aquela zona da Estrela vai estar ocupada por gente de várias confissões cristãs.
A Igreja Anglicana vai aproveitar a semana da JMJ para promover uma atividade de formação, com dois arcebispos anglicanos - um de Inglaterra e o outro penso que é responsável pela Igreja Anglicana na Europa. Em termos de grande presença dos jovens, se contarmos com o tal milhão de que se fala, será bastante marginal…
Mas está presente, é uma dimensão que não foi esquecida.
Há uma iniciativa interessante que nasceu da Universidade de Lisboa, que é a de plantar seis árvores no Jardim Botânico Tropical, em Belém. Seis árvores que representam as seis grandes famílias religiosas: o taoísmo, hinduísmo, Budismo, o judaísmo, o cristianismo e o Islão.
Gostaríamos que o Papa também cruzasse com as árvores e as pessoas que as vão plantar, e pensamos que no dia 2 de agosto será possível realizar esse momento, já que o Papa vai estar nos Jerónimos. Vamos ver como é que isso se concretiza.
A árvore do cristianismo será, naturalmente, a Oliveira?
É uma Oliveira para o cristianismo, e uma Oliveira para o Judaísmo, e vêm de Israel. Foi a Embaixada de Israel que trouxe essas duas Oliveiras.
Para o Islão é uma tamareira, porque as tâmaras são usadas durante o Ramadão para quebrar o jejum.
Temos duas Ficus diferentes da Índia, uma que é própria do Estado indiano, é a árvore da Índia, e a outra é uma Ficus Religiosa - tradicionalmente considera-se que foi debaixo de uma árvore daquela espécie que o Buda teve a sua iluminação, portanto, está ligada ao Budismo.
Curiosamente, o taoísmo tem várias árvores possíveis, mas acabou por se escolher um Pessegueiro. Todos os anos era enviado um pêssego de um pessegueiro especial para o imperador provar.
É um simbolismo importante que vai ficar ali, é bom que as pessoas também aprendam a observar?
A Jornada será o quê, cinco ou seis dias? Mas as árvores estarão lá 40 anos, vão ter placas a indicar qual é o significado, quem é que as ofereceu e qual foi a ocasião da sua plantação. Será um marco da Jornada Mundial da Juventude durante muito tempo.
Falou do envolvimento de muçulmanos no voluntariado da JMJ.
Sim, muçulmanos xiitas, da comunidade Ismaili. Eles têm uma dinâmica de voluntariado e de serviço à comunidade em geral que é muito forte, e quiseram estar presentes, ofereceram-se e ficámos muito contentes por eles poderem participar e colaborar.
Ao nível de envolvimento na preparação da Jornada, isto é o mais evidente?
É o mais evidente. O que acontece é que estas comunidades têm o mesmo desafio que a comunidade católica tem em Portugal, que é: a juventude é solicitada por muitas coisas, quando chega à idade universitária, muitas vezes muda de local e desintegra-se da sua sociedade de raiz, perde também a sua prática religiosa.
Quer a comunidade judaica, quer a comunidade muçulmana, quer a comunidade hindu têm a mesma questão: como é que se mantém a dinâmica de ligação à fé?
O facto de haver uma grande ‘movida’ de jovens na cidade, não por causa de música, mas por causa da religião, é um despertar, mostra que a religião, afinal, faz parte do quotidiano da nossa existência.
Tem havido estudos que mostram que há, de facto, uma sede de espiritualidade na juventude.
Sim, existe, isso para mim não levanta dúvidas. A questão é como é que ela se integra naquilo que são as tradições e as práticas religiosas.
Há um sentimento religioso difuso, mas como é que ele depois se educa, se trabalha? Muitas vezes fica entregue a coisas que se veem na televisão, ao sentimento de ligação com a natureza, coisas desse género, que são, sem dúvida, um acesso ao sentimento religioso.Mas as grandes tradições religiosas são um património de caminhada espiritual e de transformação interior que é pena que não sejam saboreadas por mais gente.
Tem de se olhar para o pós-Jornada? É um desafio para a Igreja Católica em Portugal não deixar que isto termine a 6 de agosto?
É verdade. Ainda outro dia, quando o senhor Patriarca lançou essa questão nos serviços do Patriarcado, como é que vamos canalizar estas energias e este trabalho, que no caso de Lisboa têm sido mais prolongados do que em outras Jornadas, porque a JMJ foi adiada um ano por causa da pandemia, portanto as pessoas estão a trabalhar há mais tempo. Essa energia como é que se vai investir?
Na altura chamei a atenção de que os jovens deixam de ser jovens, e que é preciso lembrar que tendo feito esta experiência de amadurecimento, há todos os serviços e trabalhos que a Igreja tem que precisam de rejuvenescimento, nova energia, novas pessoas, e que era importante todos os movimentos e obras da diocese estarem atentos a isso.
Se calhar, os velhos modos de funcionar - porque em alguns casos os responsáveis já estão envelhecidos - precisam de refrescar a maneira de funcionar, a maneira como se projetam na sociedade e podem lançar mão de gente que fez esta experiência da Jornada.
Estamos a olhar para a diocese de Lisboa, que vai acolher a JMJ, mas isso será assim no resto do país, no resto das dioceses, aproveitar esta dinâmica que se criou?
Sim. Temos uma população envelhecida, é a conclusão de todas as avaliações, e a juventude que há é, hoje em dia, muito mais diversificada, porque ao nível da universidade há gente que vem do estrangeiro, a trabalhar há gente que vem pela imigração, que já não tem uma integração cristã, muitos deles são muçulmanos, outros hindus...
Estamos a assistir a uma transformação da sociedade, mesmo em termos deste fator religioso que é um fator importante em termos de integração social, de motivação e de sentido ético, e é importante que a nossa juventude católica aprenda a viver nesse mundo plural de uma forma criativa e dialogante, que é o que tem sido o desafio lançado pelo Papa Francisco.
E Portugal, na sua opinião - já que é responsável por esta área das relações ecuménicas e pelo diálogo interreligioso no Patriarcado de Lisboa – está a saber lidar com a chegada de mais pessoas de outras confissões religiosas, de outras culturas?
Em termos de Lisboa, a relação entre as comunidades religiosas, felizmente, é muito boa. Já desde os anos 1980, em que as diversas tradições religiosas se juntaram, por exemplo, para terem voz nos meios de comunicação públicos, conseguir um espaço na rádio e na TV, foi o momento em que se começou a abrir esta ponte.
Depois, nos anos 1990, houve um período em que as comunidades já se começavam a afirmar de uma forma mais visível, e felizmente a diocese de Lisboa, que era onde sobretudo se fazia sentir essa mudança demográfica, quer o D. António Ribeiro, quer sobretudo depois o D. José Policarpo, tiveram um papel importante na abertura a outras religiões.
Houve um grande encontro no ano 2000, em que o D. José Policarpo convidou a Comunidade de Santo Egídio e, juntamente com a Fundação Mário Soares, houve o encontro ‘Oceanos de Paz’, que teve um impacto importante em termos de comunicação social, mas mais importante, diria eu, foi ter sentado as várias comunidades que estão em Lisboa à volta de uma mesa, ver como é que participavam e a maneira de colaborarem, criando laços de amizade. Porque penso que é sobretudo aí que há eficácia do diálogo interreligioso.
Claro que há sempre uma reflexão em termos das doutrinas, em termos de tradições, essa questão é importante, mas mais importante do que isso é o descobrir que a pessoa que vem de outra tradição é boa gente, com princípios éticos, com vontade de colaborar e de intervir na sociedade.
E tivemos a sorte em Portugal de os líderes dessas religiões - e estou a pensar nos mundos muçulmano e hindu - terem um núcleo central que veio de Moçambique, e que tiveram oito ou nove gerações de ligação com a cultura portuguesa. Quando começaram a implantar-se nos anos 1960, aqui em Lisboa, implantaram-se não como cultura estranha, tinham uma religião que era diferente da maioria, mas em termos de cultura eram portugueses.
Isso facilitou muito, claro.
A comunidade judaica não se diferencia a não ser dentro da sinagoga. Com a comunidade muçulmana, da Mesquita Central, aconteceu a mesma coisa. Depois, à medida que veio imigração de outros países - por exemplo do Paquistão, do Bangladesh - tinham como base essa comunidade que culturalmente estava integrada, e podia fazer a ponte entre aquilo que era a vivência de fé, ou a distinção daquilo que é a vivência de fé com aquilo que é cultura e que pode ser alterada.
Na sua opinião, este é um dos fatores que justifica que, de facto, em Portugal haja uma convivência tão pacífica comparando com outros países europeus?
Sim. Há um trabalho de bastidores entre as pessoas, de amizade entre os líderes, que tem ajudado a que as comunidades possam atenuar momentos de choque - que houve uma vez ou outra, como quando o cemitério judaico foi vandalizado, e as várias comunidades solidarizaram-se em torno da comunidade judaica.
Houve outros momentos de alguma tensão mediática com a comunidade muçulmana, mas isso resolveu-se sentando à mesa, conversando e resolvendo o problema.
Felizmente temos uma realidade multirreligiosa, mas pacífica.
Estou a lembrar-me também do trabalho que existe ao nível da Saúde, com o grupo de trabalho interreligioso que tem assumido posições conjuntas em relação aos temas mais fraturantes, como a eutanásia…
Sim. Temos uma Comissão de Liberdade Religiosa criada pelo Parlamento, que avalia as candidaturas por parte de novas comunidades religiosas que queiram ser reconhecidas em termos legais, e avalia também as questões de liberdade religiosa, se há ou não acesso a apoio espiritual por parte de presos, de pessoas que estão nos hospitais.
Existe um grupo de trabalho de diálogo interreligioso coordenado pelo Alto Comissariado para as Migrações, que existiu numa forma anterior, desapareceu e depois foi restaurado. Hoje em dia reunimos uma vez por mês e avaliamos aquilo que se passa. Por exemplo, durante a pandemia, como é que as comunidades estavam a reagir às restrições que o Governo colocava, como é que as aplicavam? Porque sofriam-nas de maneiras diferentes. Houve um momento em que as pessoas não podiam passar de concelho ou distrito, isso para a Igreja Católica não fazia grande diferença, porque as paróquias são geograficamente dentro dos distritos, já para outras comunidades, como as igrejas protestantes evangélicas, têm de se deslocar para ir ao culto semanal.
Outra coisa foi essas comunidades colocarem os seus espaços de culto, as suas sedes, à disposição do Governo para a vacinação. Ou quando houve crise de imigração, a mesquita central abriu as suas portas para acolher o fluxo de migrantes do Afeganistão. Portanto, as comunidades colaboram no apoio social à comunidade em geral.
Portugal, deste ponto de vista, é exemplar?
Julgo que sim, daquilo que conheço, e conheço alguma coisa. Felizmente temos uma forma de laicidade do Estado que respeita o facto de a sociedade não ser laica. O Patriarca D. António Ribeiro repetia muitas vezes, no início dos anos 1980 - depois da nossa Constituição estar a começar a ser aplicada, e havia um movimento às vezes de laicidade agressiva, talvez olhando para França - e o D. António Ribeiro repetia ‘o Estado é laico, mas a sociedade não é laica, a sociedade é plurireligiosa’. E o Estado respeitou isso.
Neste momento, por exemplo, a Assembleia da República está a promover um conjunto de colóquios sobre a liberdade religiosa, vai promover uma exposição sobre a liberdade religiosa, em outubro/novembro, porque a primeira lei de liberdade religiosa foi antes do 25 de Abril, mas não correu lá muito bem, não foi muito bem aceite. Mas uma das grandes conquistas sentidas pelas confissões religiosas, no 25 de Abril, foi o facto de a liberdade religiosa ser inscrita na própria na própria Constituição portuguesa.
E a lei que temos de liberdade religiosa é equilibrada?
Levou tempo. A Constituição é de 1975 e a lei é de 2001. Também por tensões internas, nem todos entendiam a liberdade religiosa da mesma maneira. Deve-se em grande parte a Vera Jardim e a José Sousa Brito, que foi quem redigiu o texto, o terem introduzido na lei uma série de princípios que se estavam a tornar consensuais através das próprias religiões.
No Concílio Vaticano II, a Igreja Católica fez uma grande reviravolta no seu entendimento da liberdade religiosa e assumiu um conjunto de princípios que hoje em dia são consensuais, através das várias religiões, e que continuam a evoluir.
Olhando para a realidade atual e para o que se passa noutros países, receia que em Portugal as condições sociais se possam agravar por causa da imigração, e que esta tolerância que temos possa ser afetada de alguma forma?
Eu julgo que é uma área de atenção importante, até porque uma parte dessa imigração não se faz para Lisboa, onde as sedes das principais comunidades religiosas se encontram. Faz-se para zonas que começavam a ficar despovoadas por falta de crianças, que precisam de mão de obra que trazem de fora. Penso no Alentejo, penso no Algarve e noutras zonas do país mais do Interior, onde umas dezenas de imigrantes vindos de outros países fazem logo a diferença em termos da perceção que a população local tem da demografia. Vê-se imediatamente que a população está a mudar, com outros hábitos, outras línguas, outras maneiras de lidar com as questões sociais.
Era importante valorizar a questão da religião como um dos fatores que permite integrar essas pessoas. Não digo que as comunidades católicas possam integrar muçulmanos, mas uma paróquia rural católica pode ser sensível às carências religiosas que um conjunto de pessoas muçulmanas que vieram para a sua zona tem.
Fortalecendo a questão religiosa, fortalece-se o sentido ético, o sentido de pertença à comunidade e não, como muitas vezes uma certa mitologia popular pensa, trazer radicais fundamentalistas, etc. Existem fundamentalistas em todas as religiões, mas as grandes tradições religiosas têm uma capacidade de integração e de formação das pessoas que é benéfica para a comunidade em geral, e para a humanidade em geral.
Voltando à Jornada Mundial da Juventude, quais são as suas expectativas?
De algum nervosismo, se seremos capazes de lidar com tanta gente. Depois vou ouvindo o número de iniciativas que há no chamado Festival da Juventude, são centenas de iniciativas, neste bairro, naquele largo, e penso que, de facto, vai ser uma dinâmica muito interessante, vai dar vida à cidade durante vários dias.
Vai haver dificuldades em termos de deslocação, há alguma preocupação sobretudo para os residentes e para as pessoas mais idosas, mas é encher os frigoríficos e aguentar dois ou três dias sem se fazer grandes deslocações. E pessoas com a idade como a minha, acompanharmos os acontecimentos pela televisão.
No âmbito do Festival da Juventude, as outras religiões também vão colaborar, também há participantes?
Já referi o Canto pela Paz, mas temos uma iniciativa promovida pelo mundo evangélico que é surpreendente. Muitas vezes tem havido dificuldade de ligação entre o mundo evangélico e o mundo católico, e houve um pastor que teve a ideia de promover um grande festival de música e testemunho no Estádio da Luz…
Isso é um palco gigante…
É uma coisa muito arrojada, vamos ver se consegue encher o Estádio da Luz, mas a ideia é interessante. É que os jovens vindos da tradição evangélica - que são muitos, em zonas onde a Igreja Católica tem alguma dificuldade em captar e envolver a juventude, como são as periferias das grandes cidades como Lisboa - , as comunidades evangélicas com pastores mais novos - com a dinâmica das suas celebrações, a sua música vibrante e a sua pregação empolgante - conseguem envolver os jovens.
Será interessante ver a juventude vinda desse setor encontrar-se com juventude vinda do setor católico, num espaço tão grande como é o Estádio da Luz.