É num edifício discreto, numa rua entre o Príncipe Real e o Largo do Rato, em Lisboa, que se situa o Lar Jorbalan. Entre 2002 e 2004, foi uma comunidade de inserção ligada à Santa Casa da Misericórdia, mas, desde 2006, recebe utentes enviadas pela Segurança Social, na maioria africanas.
Nos dois últimos anos, muitas das mulheres encaminhadas são mães que vêm para Portugal acompanhar os filhos doentes, mas a quem não é garantido qualquer apoio para a estadia.
Tocamos à campainha. A irmã Júlia Bacelar faz-nos as honras da casa. “Somos irmãs adoradoras, fundadas por Santa Maria Micaela, que antes de ser irmã era viscondessa de Jorbalan, então achámos por bem nalguns projetos irmos buscar este nome da fundadora, para a homenagear”, explica quando entramos.
A Congregação dedica-se, desde sempre, à ajuda às mulheres, com projetos que vai transformando, de acordo com as necessidades. A nível mundial, o combate ao tráfico humano continua a ser uma prioridade.
Em Portugal, já tiveram uma casa de acolhimento para vítimas de violência doméstica, em Évora. Em Coimbra, com o projeto ‘Ergue-te’, tentam resgatar quem está na prostituição. Neste Lar, em Lisboa, recebem mulheres, dos 18 aos 40 anos, que se encontrem em “situação de especial vulnerabilidade” e emergência social.
“São mulheres que estão num conjunto de situações que as fragiliza e as torna mais vulneráveis. Nós até as chamamos as nossas ‘mulheres mosaico’, porque são mulheres que têm uma multiplicidade, uma complexidade e um cruzamento de situações de vulnerabilidade, desde o isolamento social, a questões de monoparentalidade, vítimas de várias formas de violência, abusos, prostituição, exploração sexual, laboral, desemprego, falta de rede de suporte. Portanto, todas elas têm este cruzamento de situações que as torna mais vulneráveis”, explica Isabel Martins, assistente social e diretora da instituição.
O Lar só tem capacidade para 12 utentes, e a lotação está sempre esgotada. Neste momento acolhe seis mulheres, dos 30 aos 35 anos, cada uma com um filho – a criança mais nova tem cinco meses, a mais velha dois anos. Chegam sobretudo de África, não só dos PALOP, muitas sem documentos e sem saber português.
“Maioritariamente são mulheres migrantes, mas de vários países, desde a Guiné à Serra Leoa, ao Congo. Mas já tivemos do Paquistão e do Bangladesh”, conta Isabel Martins, explicando que a prioridade passa quase sempre “pelas questões dos documentos, passaportes que estão caducados, fazer inscrições nos centros de saúde, começar acompanhamentos médicos, e a aprendizagem de português”.
O primeiro mês é de adaptação às regras da casa, e de aprendizagem, às vezes das coisas mais básicas, como hábitos de higiene ou alimentares. No lar, mais do que viver em comunidade, “vivem em família, porque as rotinas familiares, como nas nossas casas”.
A equipa técnica inclui quatro elementos, “serviço social, psicóloga, e duas educadoras sociais. Temos ainda uma cozinheira, e as três irmãs que vivem na instituição”, explica a diretora técnica, para quem o papel das religiosas é fundamental, porque são elas quem cria com as utentes uma relação de maior proximidade.
“Sim, estamos aqui 24 horas, noites, sábados e domingos, isso permite uma relação um bocadinho diferente da dos técnicos, mais informal. Permitimos uma certa brincadeira”, reconhece Júlia Bacelar.
São uma espécie de mães das utentes? “Às vezes somos é mais avós”, remata, com uma gargalhada.
18 meses para mudar de vida
Todas as utentes chegam ao Lar Jorbalan referenciadas pelas entidades oficiais, porque esta é uma instituição apoiada pelo Estado. “São sempre sinalizadas por entidades que têm competência em matéria de ação social. Depois fazemos sempre uma entrevista para avaliar a motivação que cada mulher tem para um projeto de vida, porque queremos que um dia saiam do Lar de forma autónoma e com todas as competências e capacitadas. Por isso cada utente tem um plano individual de intervenção”, explica Isabel Martins.
O protocolo com a Segurança Social prevê que possam estar na instituição até 18 meses. “É o tempo que se espera necessário para organizarem a vida. Claro que há situações que é menos tempo, outras precisam de mais. Habitualmente ficam entre um ano e meio, dois anos, às vezes um”.
Desde 2006, ano em que assinaram o protocolo com a Segurança Social, já acolheram 131 utentes - 98 mulheres e 33 crianças. Muitas vêm com os filhos para tratamento, mas o protocolo do Estado só garante consultas, não a estadia, e há situações dramáticas.
“Nestes últimos dois, três anos, a maior parte das sinalizações foram no domínio da saúde, não só de mulheres que vêm para tratamentos médicos, mas também de mães que vêm acompanhar os seus filhos. Muitas delas vendem tudo o que têm para conseguir vir, e depois chegam cá e vivem situações humanas piores do que as que viviam anteriormente, de grave violação dos direitos humanos, em que não têm acesso a comida, vivem em condições miseráveis”, denuncia a responsável pelo Lar, que lamenta que o Estado português não assegure essas condições.
Como nas famílias a sério, no Lar Jorbalan também se têm vivido momentos menos felizes, como aconteceu em fevereiro, quando morreu uma das crianças que estava doente. “Faz parte. Porque na verdade partilhamos toda a vida com elas… as alegrias delas são as nossas, e as tristezas delas são também”.
Imaginação e voluntariado para ajudar à sustentabilidade do Lar
Presidente da Fundação Madre Sacramento, e por inerência responsável pelo Lar Jorbalan, a irmã Júlia Bacelar garante que o que fazem na instituição é apenas “uma gota” face ao oceano de problemas que envolve as mulheres migrantes. Mas, congratula-se com a taxa de sucesso que têm tido, também graças à ajuda da câmara municipal de Lisboa.
As casas que tem atribuído, com rendas simbólicas, permitem às utentes deixarem a instituição com mais segurança. “Parece que não, mas é importante. Porque não é a mesma coisa ir para a rua e alugar um quarto, ou ter atribuída uma casa. É um grande pilar que dá garantia que esta inserção social vai ter sucesso”, refere.
Mas, a sustentabilidade financeira do Lar é uma preocupação permanente, até porque o apoio do Estado não é revisto há vários anos. “Nem revisto, nem atualizado. E é completamente insuficiente, obviamente, não ultrapassa os 60 por cento, no máximo. Temos pedido várias vezes para ver se o acordo é revisto, mas até agora não tivemos resposta”, revela a irmã Júlia, que agradece outras ajudas que vão tendo, como “a do Banco Alimentar e a da ‘Associação Boa Vizinhança’, que temos aqui próxima. Com isso vai-se conseguindo levar o barco para a frente”.
Para além de se candidatarem a programas de financiamento, Isabel Martins destaca as iniciativas que vão promovendo na instituição para angariar fundos, como “as atividades de manualidades, em que incentivamos as utentes a procurarem as suas habilidades artísticas e a desenvolvê-las, para podermos estar presentes em eventos de angariação de fundos”. Os presépios, bonecas africanas, e outras peças – à venda, por exemplo, através do site da compra solidária -, são feitos com a ajuda de voluntários, que fazem sempre falta na instituição.
“No âmbito do programa ‘Zero Desperdício’, temos apoio de um restaurante que faz a doação das sobras do dia, e diariamente temos de fazer esta recolha, por isso precisamos muito de voluntários”, conta a diretora do Lar Jorbalan, lembrando que há outras funções onde toda a ajuda exterior é bem vinda. “Precisamos de voluntárias para tomar conta das crianças, no dia em que as mães estão com atividades de grupo. Já tivemos uma voluntária que ajudava nas aulas de português e na conversação, já tivemos explicadores”.
Um dos projetos fundamentais criados pelo Lar é o do apadrinhamento, que tem proporcionado às utentes atividades desportivas, ou outras, que de outra forma não fariam. “É-lhes proposto que pensem no que gostavam de fazer, e nós tentamos arranjar padrinhos. Temos desde natação, mãe com filho, a aulas de música para crianças”, revela Isabel Martins.
Como fazer para ajudar? “Alguém que queira e possa financiar uma atividade, desportiva, ou outra, pode fazê-lo durante um ano letivo, ou civil, por exemplo. Podem contactar-nos através do e-mail”.
“Aqui não me deixaram desistir do meu sonho”
No caso de Silvânia, uma jovem de origem cabo-verdiana que esteve na instituição em 2010, com 18 anos, foi assim que conseguiu concretizar o sonho de entrar para o ensino superior. A ajuda de particulares e de uma empresa assegurou durante dois anos o pagamento das propinas e da residência de estudantes. “Deu para tudo, propinas, residência, alimentação, transportes, tudo”, conta a jovem, hoje com 27 anos, que tirou o curso de tradução em língua gestual portuguesa na Escola Superior de Educação de Setúbal.
“Quando entrei no Lar estava a terminar o 11º ano, fiz o 12º aqui, portanto estive no Lar mais ou menos um ano e meio. Ingressei na faculdade, no 1º semestre ainda conseguia ir e vir, mas com o apadrinhamento consegui ir para residência”, diz a jovem de origem cabo-verdiana.
Ainda não conseguiu emprego na área em que estudou, mas garante que está feliz com o que faz. E sempre agradecida. “Foi fundamental ter estado no Lar, para não ter desistido do meu sonho, que era fazer a faculdade e ingressar no ensino superior. De outra forma acho que não o teria feito”.
Quando deixam a instituição há um acompanhamento que se prolonga e laços que permanecem. É por isso que quem já aqui viveu e foi ajudada, volta com regularidade. “Eu acho que desde que saí, nunca deixei de cá passar. Isto é uma família. É quase como turmas, vamos sempre voltando, e comemoramos, estamos cá presentes nas festas de Natal. E mesmo que não seja em ocasiões especiais, de vez em quando passamos. Hoje estou de folga e estou cá, de duas em duas semanas ou de três em três, passo por cá”.
O Lar é a família a que voltam sempre. Cada utente tem uma história, umas mais difíceis que outras. O que Silvânia sabe é que para todas as jovens e mulheres que já conheceu, foi aqui que conseguiram dar um novo rumo à vida. “Por cada uma de nós que eu conheça, e acho que posso falar por todas, foi muito importante a passagem delas pelo Lar”.