Cresce o nervosismo no núcleo duro do PS perante uma maioria absoluta encharcada em casos e polémicas e já há dirigentes socialistas de topo que quando questionados pela Renascença se o Ministério Público (MP) é manipulável deixam a dúvida no ar: "é o que em alguns casos parece".
O envolvimento do ministro das Finanças, um dos homens de mão do primeiro-ministro, num alegado caso de corrupção na Câmara de Lisboa levanta preocupação na cúpula socialista.
Um destacado dirigente nacional, em declarações à Renascença, aponta mesmo a existência de "uma indústria de denúncias anónimas organizadas hostis ao PS e provavelmente com 'diligentes' intérpretes em órgãos de investigação".
Há todas as cautelas entre os dirigentes nacionais socialistas em atirar ostensivamente à atuação do MP, tendo em conta o trauma histórico à volta do caso Casa Pia e de, por outro lado, ter um ex-líder do PS a contas com a justiça, mas o remoque aos "órgãos de investigação" fica claro.
O mesmo dirigente socialista insiste: "Se fosse da natureza das coisas não surgiriam casos só centrados em afetos ao PS". Ou seja, já não é de todo tabu a ideia no partido da maioria absoluta que a soma destes casos é "organizada". A origem é que é indistinta, numa espécie de mão invisível, mas também aqui se atira ao MP. E a alguns partidos políticos.
Questionado se esta última investigação em relação a Medina tem a particularidade de fazer pensar em António Costa, pela proximidade que tem ao ministro das Finanças e por ambos terem sido autarcas em Lisboa, um a seguir ao outro, este dirigente socialista admite que "o objetivo é tentar fazer do PS uma central de corrupção e desacreditar todos, incluindo o primeiro-ministro".
Mas este é objetivo de quem ou do quê? Do MP? Do PSD? Do Chega? A esta questão a resposta é: "Fazem parte da tal indústria" de "denúncias anónimas organizadas hostis ao PS". E aqui, questionado se o MP é manipulável, a mesma fonte socialista admite que "é o que em alguns casos parece".
O "aviso estranho" de Marcelo: "Se Medina cai, o Governo cai". É o PR a "fazer pressão sobre a PGR"
Neste jogo de sombras sobre a investigação à câmara de Lisboa e que envolve Fernando Medina, há quem entenda no PS que o Presidente da República (PR) também se virou para o Ministério Público. Um deputado e ex-dirigente socialista nota à Renascença que Marcelo Rebelo de Sousa "fez um aviso estranho".
Este sábado, o jornal Correio da Manhã (CM) publicou uma notícia que dava conta de que o "Presidente da República avisa que Governo cairá se Medina sair", referindo que Marcelo não coloca de lado a hipótese de demitir o Governo e convidar António Costa a constituir um novo executivo.
Na leitura deste ex-dirigente nacional socialista e deputado, este "aviso estranho" do PR é "uma forma de fazer pressão sobre a Procuradoria Geral da República para não envolver Medina no processo judicial, colocando na Procuradoria Geral da República (PGR) um ónus político".
A mesma fonte insiste com duas perguntas: "Se o Medina cai, o governo cai, é um aviso para quem? Para o Costa ou para a PGR?". E a resposta deste socialista é que "Costa não pode fazer nada com aquele aviso e Medina nunca cairia por vontade do primeiro-ministro". E fica outra questão: "Para o primeiro-ministro Medina só cai se for acusado. E para o PR?".
Outra pergunta que é lançada é: "Marcelo ou alguém por ele já veio desmentir [a notícia do CM]? Não. É estranho", conclui este ex-dirigente do PS, que acrescenta que "aquela é uma frase relevante" que o PR "acabará por desmentir, mas, entretanto, já deixou que se especulasse".
Operação Tutti Frutti, adjudicações a Siza Vieira. Os outros casos que envolvem Medina
É ainda salientado por socialistas ouvidos pela Renascença que Fernando Medina tem outros processos em investigação e que já foram públicos. E "já tinha quando foi para ministro", lembra o mesmo deputado.
É referido que o ministro das Finanças foi para o Governo estando em curso a operação Tutti Frutti, iniciada em 2018, e a investigação às adjudicações da autarquia de Lisboa ao ex-ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, que envolvem, para além de Medina, o ministro do ambiente, Duarte Cordeiro.
Neste momento, em relação ao alegado caso de corrupção na Câmara de Lisboa que envolve um ajuste direto à empresa do ex-autarca de Castelo Branco, o socialista Joaquim Morão, há seis arguidos e nenhum deles é Medina.
O entendimento no Governo tem sido o de que todos os membros do executivo podem ser investigados, mas que isso só por si não pode ser impeditivo de exercer funções. Mesmo se vierem a ser constituídos arguidos, essa condição só por si não é razão para se demitirem e foi, aliás, esse o critério usado para manter Miguel Alves como secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, até ser acusado.
Na visão de um ex-dirigente nacional do PS, "não se pode deixar nas mãos do MP a decisão sobre quem é ou não membro de um Governo, se não acabou-se". E se uma pessoa é constituída arguida na sequência de uma denúncia anónima, "é-se demitido por isso? E se a denúncia não teve qualquer fundamento?", pergunta a mesma fonte.
Questionado sobre a perceção pública de manter um membro no Governo estando constituído como arguido, este socialista diz que aí "o Estado de Direito acabou e o combate político passa a ser feito através do MP" e "isso não é bom para a democracia".
O mesmo deputado e ex-dirigente do PS afasta, contudo, a tese que o MP tenha um qualquer objetivo escondido e que a soma destes casos e polémicas dos últimos meses "não é uma coisa dirigida contra o Governo ou o PS".
"A história da cabala vira-se contra nós"
"Não sei se é uma cabala, a história da cabala vira-se contra nós", assume um membro do Secretariado Nacional socialista e que lamenta que "a cada casinho a oposição mete tudo no mesmo saco" e aponta "uma impaciência para tirar o PS do poder".
Com o envolvimento do ministro das Finanças num alegado caso de corrupção na Câmara de Lisboa, este dirigente nacional do PS admite "que queiram chegar ao primeiro-ministro, mas é preciso identificar quem".
Não há uma acusação direta, mas aponta-se a quem está "à volta do Passos [Coelho]", aos "Relvas e afins é que interessa a degradação feroz disto". Este dirigente socialista refere ainda que "basicamente, está tudo a atirar ao PS para debilitar o Governo" e "degradar o sistema político".
Nas autarquias, a "burocracia é uma questão de conforto" e "a caneta queima"
"O que me inquieta é o receio, não é de ser descoberto, mas o processo muito fácil em fazer uma denúncia anónima, ser investigado e ser publicitado". É um autarca do PS e dirigente nacional quem o diz à Renascença, assumindo ao mesmo tempo que "seria muito triste que o MP estivesse numa qualquer senda" contra o partido, "seria uma maquinação muito grande".
Se tudo isto se trata de uma eventual cabala para atirar ao primeiro-ministro? "Não vou por aí. Não tenho dados para esse tipo de maquinação", conclui ainda este autarca do PS.
Em conversa com a Renascença, este presidente de câmara socialista admite que "o MP veja as prestações de serviço do Moedas", por exemplo, referindo-se a notícias recentes que davam conta que, na autarquia de Lisboa, Pedro Simas, vereador substituto, foi também prestador de serviços à mesma autarquia num contrato com valor de €90 mil.
Isto quer dizer exatamente o quê? Que o PS "na posição em que está não pode achincalhar" e que "há partidos que estão empenhados no processo de enlameamento" dos políticos, conclui este autarca, que, por exemplo, não viu o PS "a fazer achincalho ao Moedas". E atira: "Em contrapartida vi cavalgar o Medina", referindo-se ao alegado caso de corrupção na câmara de Lisboa que levou à constituição dos seis arguidos.
Para este dirigente nacional, os autarcas vivem no pânico de serem apanhados numa qualquer ilegalidade e de serem sujeitos a denúncias anónimas. "Os procedimentos de contratação pública passam pelos autarcas no início e no fim", explica a mesma fonte, e "tudo o resto é feito por júris".
A coisa está de tal maneira, que "isto está a levar a que a caneta queime", que não há "ninguém que faça um concordo", sendo a burocracia "uma questão de conforto", assume este autarca, que lamenta ainda que "isso é inibidor para toda a gente, mesmo para os técnicos das autarquias, porque ficam com o ónus". É assumido que "há panico" e que "as pessoas tentam defender-se". Assim se "gasta mais dinheiro com pareceres externos".
Medina e os ajustes diretos a Morão: "Parece-me claro que a história ainda não está totalmente esclarecida"
Fernando Medina deu uma conferência de imprensa na quinta-feira a garantir que tinha sido sua a decisão do ajuste direto à empresa do antigo autarca socialista Joaquim Morão para prestação de serviços. Mas há quem no PS admita à Renascença que é "claro que a história ainda não está totalmente esclarecida".
Um deputado e ex-dirigente do PS argumenta que está por se perceber "porque é que o Morão e os responsáveis pelas empresas foram constituídos como arguidos e do lado da câmara de Lisboa, que é quem contrata, não foi ninguém?".
Sibilino, este parlamentar socialista diz ainda que "a única coisa à distância que parece feia" é este caso ser "mais um" em que Fernando Medina "não sabe de nada e a culpa é de terceiros", acrescentando que "essa forma de estar está a colar-se à pele dele".
A mesma fonte refere à Renascença que "o maior problema do Medina não são os casos em que ele está sob investigação direta ou indiretamente", mas "os recorrentes 'não sei' sem retirada de consequências políticas". Segundo este parlamentar, "isso é que mancha a credibilidade dele", e "esta ideia instalou-se e não vai largá-lo", conclui.