O chefe de Missão dos Médicos sem Fronteiras na Ucrânia, o português João Godinho Martins, diz que “chegar às pessoas que ficaram para trás é um exercício bastante complexo”.
Em entrevista à Renascença, quando passam 100 dias desde o início da invasão, o responsável da organização humanitária garante que, apesar das dificuldades, os Médicos sem Fronteiras “têm conseguido chegar aonde outras organizações não chegam”.
João Godinho Martins sublinha a necessidade de contínua ajuda à Ucrânia, mas deixa também um alerta: “Temos que também estar em outros sítios e é importante mantermos esta perceção” porque “as guerras continuam na Síria e as guerras continuam no Iémen”.
100 dias depois do início da guerra, que avaliação médica e humanitária pode fazer da atual situação?
O sistema de saúde tentou adaptar-se da melhor forma, mas é verdade que, ao final de 100 dias, começa a haver algum cansaço, embora tenham sido bastante apoiados e continuem a contar com bastante apoio de muita gente por todo o mundo.
É verdade que a guerra continua a ter um impacto, não só em termos das vítimas diretas do conflito, de pessoas com feridos, de guerra e tudo mais, como também de pessoas que deixam de ter o acesso aos equipamentos e instituições médicas e sociais que antes tinham.
A situação continua a deteriorar se. A guerra continua a ser bastante complicada, bastante intensa e tudo isto continua, ao final de 100 dias, a deteriorar se.
Claro que uma vítima é sempre motivo de preocupação, mas entre as vítimas, provavelmente as crianças estão no topo das vossas prioridades.
Neste momento, nós fazemos uma divisão um pouco em duas partes das vítimas da guerra. Por um lado, temos as vítimas diretas de tudo o que são pessoas feridas pelos combates e, por outro lado, também o foco da nossa preocupação, as populações mais vulneráveis – crianças, adultos, idosos, muitos que já viviam em condições sociais desfavoráveis e que não tiveram a capacidade de ter os rendimentos para fugir à guerra. Os que ficaram para trás são definitivamente uma das nossas preocupações.
A Ucrânia precisa da nossa ajuda e por isso aqui estamos, mas temos também de estar em outros sítios e é importante que se tenha esta perceção.
E continuam a sentir muita dificuldade para chegar a quem mais precisa?
Em termos do que é o acesso aos pacientes, no acesso às populações perto da linha da linha da frente, continua a ser complicado, obviamente. É uma guerra bastante agressiva. Há bombardeamentos por tudo, um pouco por todo o país, especialmente na zona do Leste. Chegar às pessoas que ficaram para trás, chegar às pessoas que não conseguiram sair das zonas de guerra é um exercício bastante complexo.
Desde o início que os Médicos Sem Fronteiras e outras instituições humanitárias, e até o próprio Papa, reivindicaram corredores humanitários. Pode, nesta altura, falar-se na efetiva regulação desses corredores humanitários. Estão a funcionar?
Os corredores humanitários que servem para abastecer estas regiões com medicamentos e cuidados médicos ou para retirar pessoas são de uma organização bastante complicada. Neste momento, tudo o que são as zonas ocupadas são de muito difícil acesso. Não podemos dizer que exista uma implementação real de corredores humanitários neste momento. Existem maneiras. Existem intenções de chegar.
Nós, enquanto Médicos Sem Fronteiras, uma vez que a segurança está garantida, conseguimos chegar, mas é bastante difícil. E muitas vezes encontramo-nos sós em regiões perto da linha da frente que continuam a ser bombardeadas e onde outras organizações internacionais não chegam. Não podemos dizer que trabalhemos neste momento em corredores humanitários, pois só trabalhamos no dia a dia com uma análise do que são os efeitos da guerra e dos bombardeamentos.
Qual é a vossa maior preocupação no terreno? É o fim da guerra ou a guerra que não tem fim? O acesso às populações?
É importante sublinhar que a Ucrânia não tem neste momento um problema de apoio internacional humanitário, em termos de quantidade. A Ucrânia tem um problema de acesso pela segurança.
É preciso que as ONG internacionais, que são financiadas bilateralmente por governos internacionais ou pessoas em outros países, tenham capacidade de perceber que o apoio à Ucrânia não é só feito pelo envio de materiais ou de medicamentos. O apoio à Ucrânia tem de ser feito com humanidade. As equipas têm de estar presentes no terreno, têm de trazer estes medicamentos e, juntamente com a população ucraniana e com as autoridades ucranianas, assistir as vítimas desta guerra. É importante para nós que isso aconteça e que haja um acesso, de facto.
Chegar às pessoas que ficaram para trás, que não conseguiram sair das zonas de guerra, é um exercício bastante complexo.
E, por outro lado, uma preocupação de que a comunidade internacional e o público em geral podem ainda não ter em conta é o impacto desta guerra e deste apoio internacional à Ucrânia noutros países, porque as guerras continuam na Síria e no Iémen. A Ucrânia precisa da nossa ajuda e por isso aqui estamos, mas temos também de estar em outros sítios e é importante mantermos esta perceção.
As partes beligerantes, de quando em vez, presenteiam-nos com números. Do conhecimento no terreno, há alguma ideia por parte dos Médicos Sem Fronteiras quanto ao número de vítimas até ao momento?
O que é mais ou menos claro é que mais de sete milhões de pessoas estão deslocadas no seu próprio país e mais de cinco milhões de pessoas tiveram de fugir da Ucrânia. E são esses números que nós temos em atenção quando montamos as nossas operações.