A convenção do Partido Democrático que vai oficializar a candidatura de Hillary Clinton à presidência dos Estados Unidos arranca esta segunda-feira à noite na cidade de Filadélfia, mas a candidata parece perseguida pela maldição dos emails.
Depois do escândalo do uso de um servidor privado para troca de emails enquanto foi secretária de Estado, eis que na véspera do arranque da convenção surge outro escândalo relacionado com emails a prejudicar a candidatura.
O objectivo dos democratas é fazer em Filadélfia uma demonstração de força e de unidade do partido que contraste com a convenção republicana da semana passada, marcada por escândalos, divisões e desorganização.
Mas mesmo para um aparelho eficiente como o do Partido Democrático nem tudo pode ser controlado e o fim-de-semana foi dominado por um escândalo em torno do Comité Nacional Democrático, que acabou com a demissão da presidente do partido, a 24 horas do arranque da convenção.
Uma série de emails trocados no seio do Comité Nacional Democrático, divulgados no site Wikileaks, comprovam que o aparelho do partido não foi imparcial durante as primárias entre as candidaturas de Hillary Clinton e Bernie Sanders.
Alguns desses emails mostram que houve tentativas de lançar o descrédito sobre Sanders, ora sugerindo que a sua campanha era uma “confusão”, ora tentando etiquetá-lo publicamente como “ateu”, ora resistindo a um eventual afastamento da presidente do partido antes do fim do mandato a que Sanders aludiu caso vencesse as primárias.
Os emails comprometedores – poucos entre os 20 mil que a Wikileaks disponibilizou – não terão tido qualquer consequência prática, não passaram de ideias/sugestões/propostas trocadas entre alguns membros do aparelho partidário, mas provam que a campanha de Bernie Sanders tinha alguma razão quando acusava o Comité Nacional Democrático de favorecer a candidatura de Hillary.
A sua divulgação veio pôr em xeque a presidente do partido enquanto responsável pelo aparelho e as pressões para que se demitisse foram crescendo durante o fim-de-semana. Debbie Wasserman Schultz, uma congressista da Florida, resistiu à ideia até domingo à tarde, quando se tornou claro que não tinha condições para se manter no cargo, porque lhe caberia abrir a convenção, conduzir as votações e dirigir os trabalhos, uma tarefa inadequada para quem era agora um factor de divisão.
O "dedo" russo
Os apoiantes de Bernie Sanders que foram chegando a Filadélfia intensificaram os protestos contra o aparelho e houve mesmo uma manifestação de rua com cerca de mil pessoas contra o "status quo" democrático. E que incluiu a questão dos emails, mas também a escolha de Tim Kaine para vice-presidente, considerado demasiado moderado, e a nomeação da própria Hillary Clinton em quem garantem que não vão votar.
Preocupados, os responsáveis do partido não podiam arriscar que sempre que Debbie Schultz entrasse no palco fosse recebida com uma vaia por muitos delegados. Para quem quer dar uma imagem de unidade seria o descrédito.
Schultz resistiu às pressões para se demitir e argumentou que tinha sido escolhida por Barack Obama e não pelo pessoal de Clinton ou de Sanders. Mas uma conversa telefónica com o presidente acabou por conduzir à sua resignação, para alívio geral.
O próprio Bernie Sanders, que a criticou no domingo de manhã, acabou por se congratular com a decisão e negou que o caso tivesse abalado a sua determinação em apoiar a candidatura de Hillary Clinton. E quer a candidata, quer Obama, elogiaram Debbie Schultz e o seu trabalho à frente do partido.
No entanto, no domingo à noite subsistia uma dúvida: será que Schultz vai ainda aparecer nos trabalhos? É que ela afirmou que resignaria ao cargo depois da convenção e não antes, embora tenha sido nomeada uma presidente interina para a tarefa. Contudo, é óbvio que resignar ao cargo e mesmo assim dirigir a convenção manteria o problema do partido intacto.
No domingo à noite, alguns democratas disponibilizavam-se para lhe pagar o avião de regresso à Florida e vê-la longe da convenção. Mas isso é algo que poderá só ficar esclarecido esta segunda-feira à noite quando o congresso arrancar.
Outra preocupação dos democratas é a proveniência, o timing e o propósito dos emails divulgados no Wikileaks. A campanha de Clinton mostrou-se convicta de que a Rússia será responsável pela fuga como parte da sua estratégia de ajudar Trump a chegar à presidência.
Putin e Trump já trocaram elogios, o principal responsável pelo Wikileaks, Edward Snowden, está exilado na Rússia, e no mês passado o “Washington Post” noticiou que o site do Partido Democrático tinha sido pirateado por “hackers” russos, que terão tido acesso a imensa informação, incluindo alguma sobre Donald Trump. Especialistas em cibersegurança citados pelo jornal convergem na análise de que a Rússia estará por trás desta fuga de informação.
Uma presença inesperada
Esteja ou não, a verdade é que o caso tomou conta da agenda dos media no domingo, pondo em risco a intenção do partido de dar uma imagem de unidade e ofuscando qualquer outro assunto. Como por exemplo o apoio dado a Hillary Clinton por Michael Bloomberg, o multimilionário e filantropo que foi presidente da câmara de Nova Iorque durante 12 anos, entre 2002 e 2014.
Bloomberg já passou pelo Partido Democrático, mas foi eleito "mayor" de Nova Iorque pelos republicanos, embora mais tarde se tenha tornado independente e tenha sido reeleito nessa qualidade. Homem de negócios famoso, é uma das pessoas mais ricas da América e nos últimos anos apoiou candidatos dos dois partidos em várias disputas eleitorais em função do seu programa político e não da sua filiação.
Dois temas sensíveis o têm mobilizado particularmente: o aquecimento global e a posse e porte de armas. Este ano chegou a equacionar a sua candidatura à Casa Branca, mas optou por não avançar. Explicou então que a sua entrada na corrida poderia favorecer Donald Trump porque iria dividir votos ao centro com Hillary Clinton.
E se há algo que Bloomberg não quer é ver Trump como presidente, que considera um “demagogo” e uma ameaça política sem precedentes. Discorda em absoluto das posições dele sobre imigração e comércio livre, nomeadamente a deportação de milhões de imigrantes ilegais, a proibição de entrada a muçulmanos e a abertura de guerras comerciais com a China e o Japão.
“São medidas que nos dividiriam internamente e comprometeriam a nossa liderança moral no mundo. Acabariam por reforçar os nossos inimigos, ameaçar a segurança dos nossos aliados e colocar os nossos militares em maior risco”, explicou em Março passado, quando renunciou à candidatura.
Acresce que Trump nega a existência do aquecimento global e é contra qualquer controlo à posse e porte de armas, tendo mesmo o apoio oficial da NRA, National Riffle Association – o poderoso “lobby” das armas.
O apoio de Michael Bloomberg está a ser muito valorizado na candidatura de Clinton, já que ele é exemplo de um independente com notoriedade nacional (e até internacional), situado no centro do espectro político, que rejeita veementemente Trump.
Por isso, a candidatura convidou-o a falar na convenção democrática, onde habitualmente só falam filiados no partido. Bloomberg, a quem agradou a escolha de Tim Kaine como vice-presidente de Hillary, aceitou e usará da palavra na quarta-feira, na mesma noite do presidente Obama e do vice-presidente Biden. Seria difícil ter um lugar de maior destaque.
Michael Nutter, antigo "mayor" de Filadélfia, espera que Bloomberg tenha uma recepção “calorosa” na convenção apesar de não ser um democrata, porque ele ajudará outros homens de negócios, nomeadamente republicanos, a apoiar Hillary, confessou ao “New York Times”.
Nesta segunda-feira, os oradores previstos são Bernie Sanders, a senadora Elizabeth Warren, da ala esquerda do partido tal como Sanders, e Michelle Obama.