Com o brilhantismo analítico e a elegância narrativa que lhe eram característicos, Vasco Pulido Valente resumiu um dia como Marcelo Caetano perdeu o país, entre o final de 1973 e a primavera de 1974, escrevendo o seguinte: “[Marcelo] resistiu em vão: a Direita, que acreditava no regime e na ‘missão africana’, não acreditava na mudança; e a que acreditava na mudança, não acreditava nem na ‘missão africana’ nem no regime. Ele estava entre duas eras e dois mundos: no vácuo”.
O marcelismo acabou no “dia inicial, inteiro e limpo” cujo cinquentenário o Portugal de hoje vai celebrar na ressaca da cacofonia eleitoral vigente. Mas esta crónica não é sobre Marcelo Caetano. Excluída a ‘missão africana’, a citação poderia ser transformada num retrato do nosso presente partidário e do nosso futuro, que (a)parece bloqueado. De facto, o PS, que acredita no (seu) regime - porque “só o PS pode fazer melhor do que o PS” (Costa o disse) - não acredita na mudança, naquela grande mudança de que Portugal precisa. E quem acredita na mudança, parece crer muito pouco no regime que ainda existe, sonhando com distopias antissistema que levam a lado nenhum - é o caso do populismo do Chega e do ativismo destrutivo do BE. Entre uns e os outros, a AD é a única que, acreditando na mudança, respeita o regime; e talvez por isso esteja “entre duas eras e dois mundos: no vácuo”.
A AD quer, e tem de romper com o mundo que nos rege desde 1995: o do estatismo socialista, cuja teia fez engordar o monstro e vassalizou a sua cada vez maior legião de dependentes. Mas a AD tem de ser também barreira ao execrável mundo novo em que a democracia se estiola na sua bem-intencionada, embora ingénua tolerância perante o assalto dos tribalismos de toda a sorte. Como as sondagens não cessam de revelar, o partido (dos) do Estado, que dele dependem (e cada vez mais pessoas dependem), tem muita coisa a perder e prefere guardar o que tem, murmurando um resignado ou amedrontado “nunca pior”, e votar PS. Quanto aos que não dependem do Estado, porque a ele ainda não acederam ou porque representam a cada vez mais minguada sociedade civil, ou imigram (este país, que não é para velhos, se olharmos o nível das pensões e a rutura do SNS, também não é para jovens), ou radicalizam-se nas franjas, onde o Chega pesca com invulgar êxito porque (como cantava Lena d’Água) “demagogia feita à maneira é como queijo numa ratoeira”.
Os reformismos moderados mergulham no vácuo quando o binómio se reduz a escolher a situação ou a revolução. A AD precisa de corporizar um centro-direita que supere a dicotomia entre uma simples cosmética de mudança e a promessa de tudo mudar. Foi isso que a AD de 1979-80 fez, galvanizando o país para a mudança tranquila, que foi uma revolução legal, de valores, mentalidades e práticas face ao legado do PREC. Por que razão, então, a AD de 2024 não descola nas sondagens? Sim, Montenegro não é Sá Carneiro, Nuno Melo não é Freitas do Amaral e Câmara Pereira está a anos-luz de Ribeiro Telles. Porém, esta AD já tem um programa que, noutros tempos, convenceria o país: mais crescimento, menos impostos, uma economia apoiada nas empresas e não no clientelismo estatal, a junção do público e do privado para o muito que urge fazer na saúde ou na educação, e um arejamento mental face aos politicamente corretos que por aí andam. Parece-me um caminho promissor. O drama é que o país bloqueado de 2024 precisa de um trabalho de pedagogia e de convencimento muito maior do que o jovem e dinâmico país de 1979-80. Num certo sentido, Sá Carneiro tinha a vida mais facilitada do que Montenegro. Poderá Montenegro replicar Sá Carneiro?