A inclusão no comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) do parágrafo que anunciava a abertura de um inquérito criminal ao primeiro-ministro não tem cobertura legal, na opinião do penalista e ex-ministro Rui Pereira, em declarações ao programa Em Nome da Lei, da Renascença.
“O Código de Processo Penal prevê a possibilidade de serem prestados esclarecimentos públicos em defesa de suspeitos para defender o bom nome das pessoas, para defender a paz pública e pessoas e bens e para restabelecer a verdade, sem prejuízo da investigação. Ora bem, um suspeito não é arguido, não é sujeito do Processo Penal. E na minha perspetiva, um comunicado só deve identificar um suspeito na medida em que esse suspeito, por exemplo, esteja em fuga ou em que não possa vir a ser constituído arguido”, defende Rui Pereira.
Quando questionado se não considera válido o argumento da procuradora-geral da República, Lucília Gago, segundo o qual se a informação sobre o primeiro-ministro, António Costa, não constasse do comunicado, a PGR poderia vir a ser acusada de estar a ocultar suspeitas da investigação em relação ao primeiro-ministro, Rui Pereira responde: ”De maneira nenhuma. O comunicado da PGR devia ser objetivo e factual. Na minha perspetiva, e salvo o devido respeito, o comunicado devia dizer que buscas foram levadas a cabo, que pessoas foram detidas, quem foi constituído arguido e que crimes estavam em causa. E mais nada.”
O professor de Direito Penal e antigo ministro da Administração Interna fala num outro erro cometido pelo Ministério Público por não ter tido em linha de conta as últimas alterações que foram feitos na lei dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
”Existe uma lei que foi alterada em 2021,que é a lei das responsabilidades dos titulares de cargos políticos que atribui a competência para o julgamento do primeiro-ministro ao Tribunal da Relação de Lisboa. Por razões que eu nem sequer compreendo. Eu discordo o mais possível dessa norma, devo dizer. Porque penso que o regime do Código de Processo Penal é mais equilibrado; atribui competência para o julgamento do Presidente da República, do presidente da Assembleia da República e do primeiro-ministro ao Supremo Tribunal de Justiça. E isso faz todo o sentido. Mas há essa norma que é posterior. E para além de ser posterior, e portanto ser uma norma em princípio revogatória, é uma norma especial porque diz apenas respeito ao primeiro-ministro. E não tem cabimento aqui falar na lei mais favorável. Porque esta não é uma lei para dar mais ou menos garantias ao arguido. É uma lei destinada a salvaguardar a separação de poderes, é uma lei processual de competência e portanto em princípio de aplicação imediata.”
MP é um corpo sem orientação
O antigo juiz do Tribunal Constitucional considera que falta intervenção hierárquica no Ministério Público (MP). A instituição liderada por Lucília Gago é um corpo sem orientação em matéria de ação penal, defende Rui Pereira.
”Neste momento eu creio que o Ministério Público é uma instituição que vale menos do que o soma aritmética dos seus membros. É um corpo que não tem uma orientação que se veja no exercício da ação penal e da investigação criminal. E é isso que está em falta.”
Também o procurador jubilado e antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público António Cluny cita o exemplo italiano para defender que, na ação penal, deve haver intervenção da hierarquia para reduzir a possibilidade de erro.
“É uma área de discricionariedade muito grande. Que deve exigir das pessoas com mais experiência alguma orientação. Porque fazer uma buscar agora, depois uma detenção, tudo isto pode ter implicações complicadas no desenvolvimento do processo. Podem ser todas ligadas, as medidas que eu tome, mas se eu, por exemplo, inverter a ordem dos procedimentos, isso pode causar graves problemas. E por isso, por exemplo na magistratura italiana, que chegou a ser a magistratura mais independente que havia na Europa, foi criada uma lei da organização das procuradorias que diz que determinado tipo de buscas e de mandatos os procuradores titulares do processo só os podem requerer aos juiz depois do superior hierárquico ter dado o seu assentimento. Isto naquela lógica de que o superior hierárquico é alguém mais experiente e que duas cabeças pensam sempre melhor do que uma.”
Hierarquia está desresponsabilizada
O antigo procurador do Eurojust, a Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal, afirma que o que temos hoje no Ministério Público é um sistema que desresponsabiliza a hierarquia. "O sistema que nos temos hoje põe nos magistrados titulares do processo, mas que não pertencem à hierarquia, toda a responsabilidade em cima. E depois temos um conjunto enorme de posto de hierarquia que quase se limitam a gerir a intendência do ministério público.”
O sociólogo João Paulo Dias, que se tem dedicado a estudar o Ministério Público, diz que a hierarquia se faz sentir sobretudo para garantir produtividade e não a qualidade da investigação. ”Mais produtividade não mais qualidade. E essa intervenção provoca efetivamente alguma perturbação no funcionamento regular. E portanto o que se espera das coordenações das chefias, digamos assim, é que tenham uma maior intervenção mas no sentido de melhorar a qualidade da investigação que o Ministério Público tem de desempenhar. “
A discussão sobre a autonomia dos titulares da investigação criminal e da intervenção que pode, e deve ter segundo alguns, a hierarquia do MP, veio mais uma vez à tona com o processo judicial que levou à queda do Governo. Lucília Gago, a PGR, emitiu em 2020,na sequência do processo de Tancos, uma diretiva que permite às hierarquias darem ordens para a realização de diligências e outros atos no processo de que são titulares os seus imediatos subordinados. O Conselho Consultivo da PGR considerou essa diretiva legal, à luz dos novos Estatutos dos Magistrados do Ministério Público, mas o sindicato recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo que ainda não tomou uma decisão.
MP não confia na PJ
O Ministério Público, na investigação do processo judicial que levou à queda do Governo, recorreu à PSP e não à PJ porque não confia na Judiciária, afirma o investigador especializado em sociologia do Direito João Paulo Dias. ”A minha leitura sociológica diria que o MP não confiou na Polícia Judiciária neste caso. É tão simples quanto isso. E acho que é até uma verdade 'de la Palice'. Toda a gente percebeu que não confiou. E se não confiou, há que perceber porquê. E, isto sim, é grave. Porque temos uma PJ que é reconhecidamente qualificada. E, se calhar, em termos de investigação criminal, temos uma magistratura que ainda precisa de qualificar-se em técnicas de investigação e coordenação”. Esta questão merece a intervenção da hierarquia? “Sem dúvida, das hierarquias da PJ, do MP e do Governo”, responde o investigador.
Também Rui Pereira diz que Ministério Público e PJ têm de se entender, porque o argumento da avocação da investigação pelo Ministério Público, dado pela PGR, cheira a desculpa. ”Em processos tão complexos dispensar-se a coadjuvação de um órgão de polícia criminal é um pouco abstruso. Mas isso é na realidade para justificar o afastamento da Polícia Judiciária. Eu aí concordo completamente com o que foi dito. Eu acho que o MP e a PJ têm de se sentar para compreender isto porque é difícil perceber que num processo desta natureza não haja uma ação concertada do MP e da PJ que tem competência reservada na investigação. E soa muito a desculpa vir a púbico a conversa de que se dispensa o órgão de polícia criminal.”
Declarações ao programa Em Nome da Lei, dedicado ao impacto no Ministério Público do processo judicial que levou à queda do Governo. Um programa da jornalista Marina Pimentel, transmitido aos sábados, ao meio dia, pela Renascença.