O PS ainda não pôs a mão “suficientemente” na consciência dos anos do socratismo, acusa Ana Gomes, a socialista que se candidata a Presidente da República. Em entrevista à Renascença e ao Público, defende um mandato presidencial e acha que o chefe de Estado pode e deve ter um papel mais afirmativo na definição das prioridades para o país e das regras para a aplicação de dinheiros públicos.
Marcelo Rebelo de Sousa, antes de ser Presidente, defendia um mandato único. Acha que seria preferível?
Acho. Uma revisão constitucional devia alargar o mandato, para aí a sete anos, e fazer um mandato único. Exatamente para não haver aquela história que vemos sistematicamente de, no fundo, o Presidente estar no primeiro mandato a pensar que vai ter de ser reeleito e a condicionar-se, mesmo que inconscientemente, pela necessidade de ser reeleito. Porque a reeleição é uma validação do seu trabalho.
Outro assunto que está em cima da mesa tem a ver com as alterações às regras da contratação pública [simplificação de processos]. Já disse que era inaceitável. O que pensa fazer para contrariar esta vontade do Governo? Vai ser um tema da sua campanha?
Se fosse hoje Presidente da República, saberia muito bem o que fazer.
E o que fazia?
No momento em que os cidadãos estão muito encorajados por haver esta solidariedade europeia que se traduz na tal “bazuca” de fundos europeus, que nos vão ajudar a sair desta crise, não podemos usar os fundos só para voltar ao estado em que estávamos antes de os ter. É uma grande oportunidade para reformar o país. Ao mesmo tempo, os cidadãos também estão preocupados, porque têm a memória do passado em que houve colossais abusos com fundos europeus. Não podemos cair no excesso de burocracia, mas também não podemos passar do oito para o oitenta, para o excesso de facilitação. Designadamente com esta proposta do Governo que está em discussão na Assembleia da República que eleva os limites que dispensam a fundamentação e permitem o ajuste direto, porque essa é a receita para o clientelismo, o compadrio e a corrupção.
Mas o que faria se fosse Presidente da República?
Não aceito o critério que aparentemente foi enunciado pelo primeiro-ministro que teria sido acordado com o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, de que não há renovação automática de mandatos para determinados cargos públicos. Não pode haver não renovação automática, tal como não pode haver renovação automática. É preciso uma apreciação caso a caso, que resulta de uma avaliação do cumprimento do mandato. Ainda relativamente aos fundos europeus, não tendo nada a ver com a Iniciativa Liberal, concordo com a proposta de que se crie um portal que permita a total transparência e escrutínio de todos os contratos que o Estado, no âmbito dos fundos europeus, vai pôr na praça e que se controle todos os concorrentes. É a transparência que vai garantir a integridade do processo.
O primeiro-ministro já disse que o principal interessado em que haja transparência é ele.
Então é fácil, faça o tal portal. Permitir um esquema de ajustes diretos com um montante elevadíssimo, obviamente não facilita o escrutínio, ou facilita o escrutínio a posteriori.
É preciso seguir o dinheiro.
Não é só a aplicação do dinheiro, é a qualidade das decisões, onde se vai aplicar. Não precisamos de mais elefantes brancos. É preciso um rumo estratégico que neste momento não se vê. Aí o Presidente da República pode ter um papel determinante, no encontrar desse rumo, no definir quais são as prioridades. Por exemplo, empresas que se candidatem e tenham sede numa offshore pura e simplesmente não devem ser aceites.
Este PS e este Governo ainda têm muitos dirigentes e também ministros que trabalharam com José Sócrates. Aparentemente ninguém deu por nada, não deram por nada dos casos em que o ex-primeiro-ministro é acusado. O que mudou no PS e no país para que um caso destes não se repita?
Eu fui uma das socialistas que foram a um congresso dizer que o PS tinha de meter a mão na consciência relativamente à forma como se tinha deixado instrumentalizar por José Sócrates.
E o PS pôs a mão na consciência?
Não. Até hoje não a pôs suficientemente, mas no PS há muita gente boa que pensa como eu. E não estou a falar do papel que cabe à Justiça; estou a falar das consequências políticas que um partido como o PS devia ter retirado, até para instalar confiança, não só nos seus militantes, mas em toda a sociedade.
Se for eleita Presidente da República, o que fará sobre a legalização da eutanásia se lhe chegar às mãos essa proposta?
Eu sou a favor da legalização da eutanásia e a dolorosa experiência que acabo de viver, com o meu marido [faleceu recentemente] ainda mais reforçou essa convicção. Há um sofrimento da própria pessoa, mas também da família que pode ser evitado, se se sabe que se está perante uma situação que não tem regresso, que não tem remédio, que tem de ser evitado. O sofrimento é muito doloroso, é uma verdadeira tortura. Não podemos tolerar isso.