"No collusion". Se o leitor prestou atenção à investigação sobre o eventual conluio (ou conspiração) entre a campanha de Donald Trump e a Rússia, esta foi a expressão que mais escutou durante aqueles meses.
Agora prepare-se para uma outra, desta vez em latim: “quid pro quo”. Que em inglês tem uma interpretação diferente do que em português. O sentido que os americanos lhe atribuem é contrapartida, compensação.
E porque é que a expressão é importante? Porque toda a gente se interroga se no telefonema entre Trump e o Presidente ucraniano se pode estabelecer uma clara relação entre a suspensão da ajuda militar à Ucrânia e o pedido para que Kiev investigasse a família Biden. Para usar uma expressão que se tornou comum em Portugal em casos judiciais, trata-se de saber se se pode estabelecer um nexo de causalidade entre o favor pedido por Trump a Zelensky e o facto de a Casa Branca ter suspendido uns dias antes a entrega de 400 milhões de dólares em ajuda militar à Ucrânia.
No resumo do telefonema divulgado pela Casa Branca na quarta-feira de manhã, Trump diz que “os EUA têm sido muito bons para a Ucrânia. Não diria que é recíproco porque têm acontecido coisas que não são boas, mas os EUA têm sido muito, muito bons para a Ucrânia”.
Zelensky agradece a Trump “o seu grande apoio na área da defesa. Estamos prontos para continuar a cooperar nos próximos passos, especificamente estamos quase prontos para comprar mais Javelins (mísseis anti-tanque) aos EUA para a defesa”.
Imediatamente a seguir, Trump diz: “Gostaria que nos fizesse um favor, contudo, porque o nosso país tem passado por muitas coisas e a Ucrânia tem conhecimento delas”. E pede a Zelensky que investigue uma empresa de informática ligada à interferência nas eleições de 2016.
E logo a seguir, novo favor: “Outra coisa: fala-se muito do filho do Biden, que o Biden travou a investigação, e muita gente quer saber isso, o que quer que possa fazer com o ministro da Justiça seria ótimo. Biden anda aí a vangloriar-se que travou a investigação, por isso se conseguir ver isso… A mim soa-me horrível”.
Trump referia-se a uma alegada interferência do ex-vice-presidente americano em processos de investigação na Ucrânia, nomeadamente a uma empresa a que o seu filho esteve ligado. Algo sem fundamento, dado que a ação de Biden foi sempre no sentido de pressionar os ucranianos a combater a corrupção no país e não há nenhum processo contra ele.
Explicitamente não há nas palavras de Trump uma relação entre o apoio militar e o pedido feito ao homólogo ucraniano, mas o favor é pedido imediatamente a seguir à alusão de Zelensky à ajuda militar americana. Que tinha acabado de ser suspensa por Trump. E Trump disse a certa altura que não havia reciprocidade por parte da Ucrânia para com a bondade americana. Ficava implícito que o favor era a forma que o presidente Zelensky teria para exercer a tal reciprocidade.
Estabelecer este nexo de causalidade entre as duas coisas estará no âmago da nova investigação ao presidente americano, no processo de impeachment que os democratas abriram esta semana na Câmara de Representantes. O tal “quid pro quo” de que tanto se vai ouvir falar. Trump pediu o favor como contrapartida, como compensação, pela ajuda militar?
A aparente candura verbal com que falou do assunto (e descontemos a proverbial pobreza de linguagem de Trump) pode sugerir que o presidente pediu o favor espontaneamente, com toda a naturalidade. E é isso que ele tem dito publicamente em sua defesa. “Foi um telefonema maravilhoso entre nós. Muito bom. Não houve nenhuma pressão da minha parte”, afirmou esta quarta-feira por entre a gigantesca agitação política que grassa na América com este novo caso.
Mas, obviamente, seria imprudente dizer preto no branco ao presidente ucraniano que a ajuda militar só seria desbloqueada se ele mandasse investigar a família Biden. O contexto da conversa é suficientemente claro para se perceber que era isso que Trump queria insinuar. E a verdade é que Zelensky entendeu bem a mensagem porque respondeu a Trump que iria nomear um novo procurador que investigaria o assunto.
Convém lembrar que o ex-advogado pessoal de Trump durante mais de uma década, Michael Cohen, neste momento a cumprir uma pena de prisão de três anos, explicou publicamente que Trump falava em código, nunca dizia explicitamente aquilo que pretendia se os seus objetivos não eram legais ou podiam trazer complicações. Uma prática tipicamente mafiosa, no dizer do próprio Cohen.
E estamos perante uma conversa entre o presidente da maior e mais próspera potência mundial e o presidente de um país parcialmente ocupado pela Rússia, que necessita desesperadamente de apoio financeiro e militar para se defender do gigante que tem por vizinho.
Contudo, inúmeros juristas que se foram ouvindo durante o dia garantem que a questão do nexo de causalidade entre as duas coisas nem sequer se coloca para que o processo de destituição tenha fundamento. Porque é proibido ao presidente americano solicitar a qualquer agente estrangeiro apoio para questões internas, sobretudo tratando-se de questões ligadas a campanhas eleitorais.
É a mesma questão que se colocou em relação às eleições de 2016, quando responsáveis da campanha de Trump aceitaram ajuda russa para combater Hillary Clinton. Desta vez, porém, a questão parece mais grave e mais simples de explicar e entender. Porque aqui não estamos a falar de terceiros, nem de reuniões obscuras, nem de pirataria informática, nem de rumores não confirmados. Estamos a falar de um telefonema entre Trump e o seu homólogo ucraniano cujo resumo a própria Casa Branca divulgou e que o presidente tem justificado como algo inocente.
Condicionar a ajuda militar aprovada pelo Congresso a um país estrangeiro com a satisfação de um favor político que consiste em investigar um seu adversário interno com vista às próximas eleições presidenciais (Biden é o mais provável adversário de Trump em 2020) configura um crime de traição à Constituição e um outro de abuso de poder, pelo menos, segundo a generalidade dos juristas que vieram a público.
Trump já habituou toda a gente a misturar despudoradamente questões de Estado com manobras políticas pessoais, mas talvez nunca tenha ido tão longe nesse desígnio. Ou pelo menos que se soubesse.
Mas há ainda um outro aspeto chocante no telefonema. É que Trump pede a Zelinsky que autorize o ministro da Justiça americano (attorney general) a participar na investigação a Biden. Além do seu advogado pessoal Rudy Giuliani. Os dois americanos deveriam telefonar a Zelensky pouco depois para acertar os termos da colaboração.
Ora, instrumentalizar o ministro da Justiça e procurador-geral (attorney general) dos Estados Unidos para participar numa investigação com fins partidários configura outra ilegalidade. Além de que o attorney general é considerado um cargo independente da Administração, ele não é o ministro da Justiça do presidente, mas da República, e ninguém pode (ou deve) condicionar, orientar ou interferir com as suas investigações.
Parece estarmos, portanto, perante um caso muito sério de ilegalidades que o processo de destituição agora iniciado irá clarificar. Trump chama-lhe uma nova “caça às bruxas” como sempre denominou a investigação de Robert Mueller sobre o alegado conluio com a Rússia em 2016, de que não foi ilibado, mas também não foi acusado.
Ao fim do dia de quarta-feira, a queixa do informador dos serviços secretos que desencadeou toda esta tempestade já tinha dado entrada no Congresso e, embora classificada como confidencial, tinha sido denominada por inúmeros congressistas como “muito perturbadora”. Entre eles, alguns republicanos.
Donde se pode concluir que o resumo do telefonema divulgado pela Casa Branca é apenas a primeira peça de uma procissão que ainda vai no adro.