A miséria das detenções por tempo indefinido na Papua Nova Guiné está a levar um crescente número de refugiados e requerentes de asilo a tentarem pôr termo à própria vida. É o que aponta um relatório divulgado esta terça-feira pela Amnistia Internacional e pelo Conselho da Austrália para os Refugiados (RCOA), mais de um ano depois de um campo de detenção da ilha de Manus que era gerido pelas autoridades australianas ter sido declarado inconstitucional.
No relatório, intitulado "Até quando? Os homens esquecidos na ilha de Manus", as duas organizações denunciam a situação traumatizante em que estes requerentes de asilo se encontram, sobretudo após Camberra ter cortado nos serviços de saúde e reduzido o número de psicólogos disponíveis para dar apoio aos refugiados em Manus, ilha que pertence à Papua Nova Guiné.
No relatório, a Amnistia e o RCOA revelam ainda que estes homens enfrentam "ameaças contínuas à sua segurança".
"A crise de saúde e de segurança na ilha de Manus, que continua a agravar-se, demonstra que o sistema de processamento de pedidos de asilo offshore falhou", aponta Claire Mallinson, diretora da Amnistia Internacional na Austrália. "Três pessoas já cometeram suicídio, movidas pelo desespero de passarem anos numa prisão a céu aberto, e nos últimos dois meses pelo menos outras cinco tentaram pôr fim às suas vidas, incluindo um homem que engoliu lâminas de barbear e corta-unhas", denuncia a responsável da ONG.
A situação de centenas de refugiados que as autoridades australianas mantinham detidos num campo extrajudicial na ilha de Manus, que pertence à Papua Nova Guiné, está a deteriorar-se ao ponto de alguns migrantes estarem a cometer suicídio.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) calcula que, em 2017, 88% dos homens refugiados em Manus sofriam de depressão. No final de outubro desse ano, a existência do centro de detenção de Manus foi declarada inconstitucional e o campo extrajudicial foi encerrado.
O que está em causa?
A Austrália mantém em vigor uma estrita política de acolhimento de refugiados que passa por manter todos os requerentes de asilo retidos na ilha de Nauru, uma república independente, e na ilha de Manus, que integra a Papua Nova Guiné, no que a Amnistia Internacional classifica de "detenções offshore" ou detenções extrajudiciais.
O problema é que, um ano depois de o centro de Manus ter sido encerrado, as autoridades australianas continuam sem encontrar soluções para a população migrante ali mantida.
"Após pressão pública, o Governo australiano trouxe algumas crianças refugiadas de Nauru para a Austrália a fim de receberem tratamento médico, mas a situação para os homens na ilha de Manus continua grave", aponta Mallinson. "A Austrália tem urgentemente de trabalhar com a Papua Nova Guiné e com outros países da região para encontrar soluções sustentáveis para esta crise, incluindo pôr fim a este processamento extrajudicial [de pedidos de asilo] e acelerar o realojamento [destes refugiados] em países terceiros."
Entre 2014 e 2015, a Austrália acolheu 199 refugiados que estavam detidos no centro de Nauru e 55 provenientes do centro de Manus. Entre 2016 e 2017, esses números desceram para 29 e 11, respetivamente.
Reforma urgente das políticas de asilo
Para Joyce Chyia, diretora do CRA, a Austrália está a tentar “que esqueçamos a população em Manus". A responsável acusa o Governo em Camberra de "ter feito tudo para suprimir a verdade". "Mas estes homens corajosos têm contado a verdade. Ainda estão sob a alçada da Austrália e o que lhes aconteceu é uma vergonha da Austrália", acusa Chyia.
"Nunca foi tão difícil para os homens da ilha de Manus receberem apoio médico apropriado", acrescenta. Isto porque "só um punhado deles" foi transferido para a Austrália e os que permanecem em Manus enfrentam cada vez mais dificuldades para receberem cuidados de saúde, tendo de pagar pelos serviços com dinheiro que não têm e vendo-se forçados a "navegar o sistema de saúde local sem tradutores".
Face à situação, a Amnistia exige um cessar imediato das "detenções offshore" iniciadas em 2013 e o implementar de soluções para o trânsito de refugiados no Pacífico. "Temos de assistir a uma total reforma na maneira como a Austrália, a Papua Nova Guiné, Nauru e outros países da região respondem ao movimento de pessoas", defende Claire Mallinson. "Desde abrir rotas seguras e legais para viajar, a acolher mais refugiados e resolver pedidos de asilo mais rapidamente para reduzir as hipóteses destas pessoas fazerem viagens de barco perigosas, há muitas coisas que a Austrália e os governos regionais podem fazer para acabar com o inferno na ilha de Manus e prevenir tal sofrimento no futuro.”
A Austrália foi dos países que mais refugiados sírios e iraquianos acolheu entre 2016 e 2017 – cerca de 24 mil. No entanto, tem mantido uma política estrita de acolhimento de refugiados que tentam fazer a travessia marítima. O jornal "The Guardian" diz que o Governo australiano tem barcos e militares prontos a forçar qualquer embarcação que se aproxime da costa do país a voltar para trás.
A isto acrescem restrições aos direitos dos requerentes de asilo retidos em Manus, é referido no relatório. “Eles continuam num ambiente altamente restritivo que limita a sua liberdade e o seu livre movimento. Eles não podem abandonar Manus para procurar emprego, tratamento médico ou oportunidades educativas sem o consentimento das autoridades.”
Saiam que vem aí os Estados Unidos
Durante o fim-de-semana, a capital da Papua Nova Guiné, Port Moresby, recebeu a APEC – a Conferência Económica Asiática-Pacífica. Na cidade, estiveram representantes de vários países, incluindo o vice-presidente dos Estados Unidos da América, Mike Pence.
Na cimeira, Pence e os Governos da Austrália e da Papua Nova Guiné chegaram a acordo para alargarem a base naval de Lombrum, em Manus, onde o centro de detenção extrajudicial de migrantes esteve albergado até ao ano passado.
À data do encerramento do centro de processamento de pedidos de asilo, em outubro de 2017, estavam em Manus na condição de refugiados 626 pessoas.