O anúncio por parte do PCP de que pretende votar contra o Orçamento do Estado poderá levar à dissolução da Assembleia da República e a eleições antecipadas. O histórico comunista Carlos Brito, que está afastado do partido há vários anos, diz que Jerónimo de Sousa errou e pede-lhe que reconsidere.
O PCP está a errar, com o voto contra o Orçamento?
Na minha opinião está. De qualquer maneira o PS já tinha cedido algumas coisas, que sendo pequeninas são muitíssimo importantes e o que vai acontecer é que durante seis meses não haverá nada. Portanto essas coisas pequeninas, mas importantes, vão-se perder completamente. E depois não se sabe o resultado das eleições. Se voltar a direita o caminho vai ser uma nova austeridade.
Então que leitura faz deste voto? Se não foi de sobrevivência, se não foi estratégia política, porque ainda obtiveram ganhos na negociação com o Orçamento do Estado, qual é o porquê deste não?
Porque é uma visão muito estreita das coisas e um tanto de desespero. Como não conseguiram tudo, então pensaram deixar ir o Governo abaixo, é isso. É sobretudo sectarismo. Uma doença sectária que impede o partido de ver com lucidez aquilo que está em causa neste momento.
Ainda acha possível um retrocesso do "não" do PCP ao Orçamento?
Sim. Neste momento em que a pandemia dá sinais de que pode agravar-se, há a questão dos fundos comunitários e o facto da nossa economia dar sinais de querer levantar-se.
É esse o apelo que faz a Jerónimo de Sousa?
Sim, eu penso que ainda deveriam reconsiderar. O que deveriam fazer é abster-se e o abster-se não se compromete com a política. O abster-se quer dizer deixamos isto passar em função das circunstâncias que estamos a viver, mas é uma obtenção, não é um voto a favor.
Entre a abstenção e um voto contra o Orçamento, qual deles significa, para si, mais sobrevivência para o partido comunista?
Creio que a abstenção era mais favorável ao desenvolvimento do partido neste período que estamos a viver. O importante é que no partido se considere que a cooperação entre a esquerda e o centro-esquerda, é neste momento o caminho capaz de responder aos problemas do nosso país.
Então isso quer dizer que o próprio PCP precisa de alterações?
Eu ando a dizer isso há quase 20 anos. Pois precisa. O PCP logo a seguir a 2015 quando o Jerónimo teve aquele rasgo de dizer que o PS só não governa se não quiser, cometeu um erro ao nunca fazer uma pedagogia ideológica do partido a explicar a importância da cooperação da esquerda com a centro esquerdo, o avanço do país em termos sociais e em termos políticos.
Terá sido essa falta de capacidade que levou ao decréscimo de votação no partido e é isso que Jerónimo de Sousa quer reaver nesta altura?
Mas não sei se vai reaver. O declínio eleitoral do PCP não tem que ver com estas votações últimas em relação ao orçamento do Estado. Este declínio do PCP verifica-se desde que este grande grupo a que eu pertenço, por uma razão ou por outra, deixaram de estar com o partido.
Teria sido diferente se lá estivessem? Como?
Sim, teria sido muito diferente. Este grupo, chamados renovadores, chegou a ser maioritária e era favorável a uma abertura ao centro-esquerda. Era a favor do abandono do marxismo-leninismo e da afirmação do partido como um partido marxista e do ponto de vista político era uma abertura maior do partido em relação à cooperação com o Partido Socialista e à forma de encontrar respostas para os problemas em conjunto com o Partido Socialista. E é por isso que considero que o partido precisa de alterações. A atual direção devia perceber que há um vasto campo de comunistas que não está no partido e com a qual deveria dialogar, para ultrapassar este declínio em que está colocado há vários anos.
Está a dizer-me que o PCP também está dividido?
Eu não conheço a situação interna do PCP, mas posso dizer-lhe que há milhares de comunistas, que estão fora do PCP, e que continuam a acompanhar com desgosto a evolução que o PCP está a seguir.
Que nomes vê como alternativa à atual direção do partido?
Não entro nesses problemas internos do partido.
Mas há algum nome que no seu entender poderia estar mais capaz de enfrentar os próximos tempos? E seria entre os que estão fora do partido?
Não me atrevo a apontar assim um nome. Eu estou completamente afastado disso, porque tenho quase 90 anos, não quero arriscar sem falar com as pessoas, mas há muitas pessoas, fora do partido, e em condições de ter um papel importante no partido e que poderiam ter uma influencia muito positiva, na evolução futura do PCP.