O bispo de Bragança-Miranda afirma que a pandemia agravou o fenómeno do isolamento e revela que a diocese tem identificadas “cerca de 2.300 pessoas que vivem sozinhas”.
"A pandemia acentuou a solidão e o isolamento, algo que já era uma realidade no nordeste de Trás-os-Montes”, diz D. José Cordeiro em entrevista à Renascença.
"No período de maior turbulência da pandemia e de confinamento, essa foi uma situação muito difícil de colmatar”, dado que constituiu uma “grande prova para todos, desde as famílias, passando pelas instituições civis e também instituições de solidariedade”.
Nesse período, o bispo revela que teve oportunidade de “visitar muitas dessas pessoas e, de um modo especial, as que vivem na cidade de Bragança”, tendo ficado provado “como era importante apenas a presença, o olhar, já que nem sequer o sorriso se podia mostrar dadas as máscaras que trazemos”.
“Mais do que, eventualmente, levar o que quer que seja de bens alimentares ou materiais, era sobretudo importante mostrar através do olhar que aquelas pessoas não estavam sozinhas a atravessar a grande tormenta."
Lição n.º 1: “Missão não é exclusivo dos padres e pessoas de vida consagrada”
O bispo de Bragança-Miranda destaca que uma das marcas que fica desta época é que a dificuldade “fez crescer o sentir solidário”.
"Se nos meios mais rurais isso é uma constante, nalguns centros mais populosos, como o eixo Bragança-Macedo-Mirandela, já se sente uma real dificuldade até nesse relacionamento e proximidade”. Contudo, o bispo garante que essas situações foram sendo compensadas “pelas instituições, nomeadamente a Cáritas, as fundações, as misericórdias, os centros sociais e outras associações” que se mostraram como "grande suporte, provando solidariedade, sentido de ajuda e fraternidade”.
O bispo diz que o combate à solidão e a atividade pastoral têm na escassez de sacerdotes e na dimensão do território fatores “acrescidos de dificuldade”, pelo que considera ser necessário que “todos se envolvam na missão, não apenas o bispo, os padres, os diáconos e as pessoas de vida consagrada”.
“Neste vasto território de 6.600 km2 e na orgânica pastoral que temos das 18 unidades pastorais em quatro arciprestados, penso que - mesmo com as nossas limitações - é possível fazer melhor”, sustenta o prelado, apontando como solução “o redimensionamento do que estamos a viver e também a sensibilização para uma maior consciencialização de que a missão é de todos, de todos os batizados que assumem responsavelmente o seu batismo”.
"Tem de ser repartida toda a missão e a responsabilidade”, insiste D. José Cordeiro, algo que exige "uma maior formação, para que cada um seja acolhido na sua dignidade e na sua inteireza de pessoa”.
Lição n.º 2: “Necessidade de darmos mais tempo à escuta e ao acolhimento”
O bispo de Bragança-Mirande considera que a escuta e o acolhimento terão, no futuro, de contar com mais tempo por parte dos pastores.
“Tive a oportunidade de me encontrar com todos os padres na reunião do arciprestado e foi muito referida essa necessidade de darmos mais tempo à escuta ao acolhimento, de cultivar esta arte da escuta e podermos dispor de mais tempo para o acolhimento das pessoas, para o sacramento da reconciliação, para a ajuda concreta e para ir ao encontro das necessidades reais e espirituais e não apenas de ordem física e material”, declara.
D. José Cordeiro diz que “é um enorme desafio continuar o trabalho que já está a ser feito e, se possível, dar-lhe uma forma nova, mais comprometida entre as prioridades pastorais”.
Lição n.º 3: “Cáritas nunca teve tantas doações como no confinamento”
A par da solidão e do isolamento, sobretudo nos principais núcleos populacionais, também se registou um significativo aumento dos pedidos de ajuda à Cáritas de Bragança e os alunos internacionais que se encontram a frequentar o Instituto Politécnico estão entre aqueles que mais têm procurado a ajuda da diocese.
De acordo com D. José Cordeiro, “foi mais de uma centena e meia de ajudas concretas a esses casos e até a casais novos que estão aqui e que, durante este tempo de pandemia, ficaram privados de muitas das suas regalias e das suas bolsas”.
Os apoios da Cáritas foram muito canalizados “para ajudar ao pagamento das faturas da luz, da água e também de algumas rendas de casa".
"Tudo isso se acentuou neste tempo de pandemia. O que aconteceu de novo foi o ter de ir ao encontro da situação de muitos alunos internacionais que estão no Instituto Politécnico de Bragança”, revela o prelado.
"Esses jovens pediam exclusivamente o necessário, pois eu ouvi de alguns deles 'não quero pedir mais porque há outros que precisam e, se calhar, até podem precisar mais do que eu'”, relata o bispo.
D. José Cordeiro destaca o incremento registado em matéria de “apoio e solidariedade da sociedade civil”.
"Ficámos surpreendidos porque os gestos de participação, de doação ultrapassaram de longe aquilo que era previsível, senão também não podíamos ter chegado a tanta gente”, refere.
"Concretamente em relação à Caritas, creio que na sua existência nunca teve tantas doações de empresas e de pessoas como neste tempo de pandemia, o que permitiu ajudarmos para além daquilo que são os bens essenciais”, acrescenta.
Situação diversa é a das instituições de solidariedade social convencionadas com o Estado. De acordo com D. José Cordeiro, sente-se “neste momento de avaliação e de maior afinação que precisamos de mais, porque os custos também aumentaram em relação às comparticipações que são concedidas”.
D. José Cordeiro acredita no “bom senso e no diálogo entre o Estado e as instituições e as associações”, porque “nalguns sectores em concreto ainda se vivem situações de maior dificuldade”.
Lição n.º 4: Alimentar a proximidade criada
Nesta entrevista, o bispo de Bragança-Miranda sublinha que as dificuldades "serão mais bem ultrapassadas se formos capazes de, nesta tempestade, não deixarmos ninguém para trás, sozinho, ou isolado”.
"Temos de, juntos, recomeçar com esperança”, proclama D. José Cordeiro, adevrtindo que “a pandemia vai continuar a exigir muito de nós na melhoria da relação entre pessoas, na comunicação, na proximidade, nos laços de humanidade e fraternidade, no cultivar a inteireza da nossa vida”.
O bispo pede também uma “atenção especial ao espiritual, ao interior e à interioridade, de forma que se valorize ainda mais o dom excelente e sagrado da vida”.
D. José recorda palavras do Papa Francisco - “estamos todos na mesma barca” - para caracterizar a “experiência dura” do último ano e meio.
"De uma crise como uma pandemia ou se sai melhor ou se sai pior”, sentencia.
“Tenho a convicção, a partir daquilo que vou escutando e sentindo em muitas realidades e junto de muitas pessoas, que estamos a sair melhores porque existe uma maior sensibilidade ao que é humano, ao que é espiritual ao que é bem comum”, opina D. José Cordeiro, aguardando, agora, por "uma 'pandemia' de esperança, de solidariedade, de participação no bem comum”.
"Uma 'pandemia' de esperança será decisiva e, em muitas circunstâncias, é mesmo vital."
O bispo fala da necessidade de que “nos ajudarmos uns aos outros e cuidar uns dos outros”, lembrando a importância do alimento espiritual. Em Bragança-Miranda, “as pessoas voltam numa busca incessante de participação na comunidade”, tendo o bispo a convicção de que “desde que houve abertura, as pessoas participam nas eucaristias já para além daquilo que era previsível da nossa parte”.
D. José Cordeiro entende que, dados estes passos, seria muito errado voltar atrás e deixarmo-nos perder “neste deslumbre que possa surgir com o desconfinamento e também com o processo bem conduzido da vacinação em curso”.
“Que sejamos todos responsáveis porque todos os cuidados são poucos”, alerta.
D. José Cordeiro regressa ao Papa Francisco lembrando que ele pede insistentemente que rezemos uns pelos outros, porque, se o fizermos, "estamos a cuidar uns dos outros e isso é viver em pleno o evangelho da esperança”.
“É por isso que também me tenho atrevido a dizer que seria bom que viesse uma 'pandemia' da esperança, de solidariedade, do bem comum”, refere.
O bispo classifica como “importante" que aqueles que têm responsabilidades "juntem as pontas, vão refazendo as feridas, curando-as e sarando-as, tanto as físicas como as interiores”, desejando que “possamos todos juntos fazer este caminho de humanidade, de solidariedade e, para os que têm fé, de construção do reino de Deus na comunhão”.
"Só estando ao serviço uns dos outros e sempre ao serviço daquele que é o bem maior da vida é que construímos uma sociedade mais harmoniosa."
Lição n.º 5: "O dever profético de denunciar injustiças sociais”
O bispo D. José Cordeiro não rejeita a possibilidade de poderem voltar a surgir na região casos idênticos aos verificados com trabalhadores migrantes em Odemira, sobretudo “em épocas de trabalhos sazonais, da apanha da castanha, da amêndoa, da maçã, da uva”.
"Pode ocorrer algo semelhante”, diz D. José, ressalvando que “os caos registados e denunciados na região foram felizmente resolvidos”.
"Algumas situações do passado foram assinaladas e, no presente, a nível das paróquias, das unidades paroquiais, das unidades pastorais, da nossa comissão diocesana Justiça e Paz, existe sensibilização para uma grande atenção ao fenómeno", garante.
D. José Cordeiro diz ter denunciado às autoridades de todas situações de que foi tendo conhecimento, “nessa atitude profética de não denunciar por denunciar, mas no registo do cuidar e de, juntos, encontrarmos as melhores soluções para que os direitos fundamentais de todas as pessoas sejam respeitados”.
“Se precisamos dessas pessoas que vêm aqui trabalhar, sobretudo da Bulgária e da Ucrânia, temos de criar condições para as acolher”, sustenta.
"Temos de manter o alerta”, acrescenta.
Lição n.º 6: A fraternidade como arma contra o fundamentalismo
Numa análise mais alargada ao estado da sociedade portuguesa, o bispo de Bragança-Miranda defende que “todo o cuidado é pouco e toda a vigilância e toda a atenção são necessárias para que não caíamos no risco dos populismos e fundamentalismos”.
"Isso acontece em todas as sociedades e pode acontecer também dentro da própria religião, se não estivermos saudavelmente atentos para que nunca existam os fundamentalismos, para que não existam esses populismos. E dentro da Igreja, às vezes, também os ritualismos”.
D. José Cordeiro apela a “um são equilíbrio, ao respeito pelas diferenças, pelos vários modos de ver, de pensar e de agir" e pede também "que se tenha sempre presente aquilo que é fundamental”.
"A Doutrina Social da Igreja continua a ser uma referência e uma presença”, defende.
"Bem comum, dignidade da pessoa humana, subsidiariedade, solidariedade. Se estes quatro grandes pilares forem respeitados, a casa mantém-se solida, em pé, e nela podemos viver todos em harmonia, não na uniformidade, mas na unidade na comunhão no respeito na fraternidade”, remata o bispo de Bragança-Miranda.