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A vocação de D. Tolentino Mendonça é estar à porta. Há um ano a viver em Roma, na sequência da ordenação episcopal e da nomeação como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, o madeirense, que este sábado recebe as insígnias cardinalícias, preocupa-se sobretudo com a “construção de uma comunidade de trabalho e de relação”. A poesia, essa, continuará a acompanhá-lo como sempre.
Em pouco mais de um ano foi ordenado arcebispo, nomeado arquivista e bibliotecário da Santa Sé e agora é feito cardeal. Como olha para estes últimos meses?
Tenho que olhar numa perspetiva de fé e essa perspetiva leva-me a ver a minha vida não apenas num curto espaço de tempo, mas com um olhar mais longo sabendo que a igreja, e aquilo que é pedido a cada cristão, a cada padre, é no fundo aquilo que na fé acreditamos ser a vontade de Deus a nosso respeito e a necessidade da igreja para cada tempo. Por isso um dia são como mil anos e mil anos são como um dia. Foi muito tempo? Foi pouco tempo? Foi aquilo que Deus quis.
Como é a relação com Deus a partir do Vaticano?
Penso que nesse sentido é igual a qualquer lugar da terra. É uma relação sobretudo de escuta, de procura, de desnudamento diante de Deus, de pobreza, porque Deus não tem donos. Tem buscadores, discípulos, ouvintes, filhos, filhas, enamorados. É essa simplicidade que é necessário ter no coração do Vaticano, na Amazónia, ou no coração de qualquer cidade europeia.
Sempre foi assim ao longo da vida?
Para mim a oração foi sempre uma experiência a partir da pobreza. Um dos livros bíblicos que amo muito é o Cânticos dos Cânticos. É muito belo. É a história de um amor que na tradição judaico-cristã foi sempre interpretado em termos espirituais como a relação de Deus com o seu povo, mas nesse poema os amantes nunca se encontram. Chamam um pelo outro, desejam, evocam-se, mas verdadeiramente o encontro nunca acontece. Não há uma coincidência e, de certa forma, a experiência de oração tem sido uma experiência na diferença, não na fusão, mas no acolhimento, nas mãos vazias, na escuta de um Deus que é Pai mas, ao mesmo tempo, por ser Deus é sempre um outro em relação à nossa humanidade. Por isso, a experiência de oração é sempre uma experiência de tensão, de silêncio. A maior parte das vezes é uma espera luminosa, iluminada às vezes por uma míngua de luz, mas uma espera sustentada pelas palavras de Jesus, pela força sacramental da eucaristia. Se resumisse oração numa frase seria: ‘Senhor, eu estou aqui à espera’.
Estando na biblioteca da Santa Sé essa espera ganha um sentido novo?
É interessante que, ao longo da minha vida, os livros tiveram sempre uma importância muito grande. A minha avó que me marcou muito era uma mulher analfabeta, mas na minha vida, porque entrei no seminário muito cedo, fiz uma formação longa, os livros e a paixão pelo conhecimento estiveram sempre presentes. Nesse sentido, há uma continuidade muito grande. Sou capaz de entender aquele mundo e de o servir. É a atitude com que saio de casa para um dia de trabalho na biblioteca apostólica ou no arquivo secreto.
O que tem descoberto na biblioteca da Santa Sé?
Tenho dito à minha equipa que tenho visto muitos tesouros na biblioteca e no arquivo, tesouros de espantar verdadeiramente, mas o maior tesouro são as pessoas que trabalham comigo desde a senhora da limpeza ao porteiro, ao perfeito, ao cientista. Esses têm sido o maior tesouro. A igreja só é capaz de guardar o seu tesouro se se construir como comunidade, como lugar de relação, como lugar de encontro, de articulação dos dons. Como responsável pela biblioteca, a minha primeira preocupação é construir uma comunidade de trabalho, de relação, que potencie o sentido do tesouro da igreja e da humanidade que ali conservamos.
Nesse sentido, seria igual estar aqui na biblioteca da Santa Sé ou numa biblioteca humilde de uma qualquer vila portuguesa?
Um padre é um todo o terreno. Eu posso estar na biblioteca mais bela do mundo e acredite que a Biblioteca Apostólica do Vaticano é um dos lugares mais belos do mundo, mas podia estar numa periferia qualquer, num sítio mais pobre. Digo isto sem mérito nenhum, porque quem se abeira de Jesus ouve continuamente o que ele disse aos primeiros: ‘Vem e vê’. Acredito que aquilo que se experimenta num lugar elitista, nobre, como aquela biblioteca, se pode experimentar no lugar mais pobre, na margem mais miserável do mundo, porque o maior milagre é ver acontecer a vida. O maior milagre é poder servir a vida, e muitas vezes a vida na sua fragilidade, na sua contradição. Esse é o espetáculo mais divino que os nossos olhos podem ver.
Em Lisboa contribuiu para que muitas pessoas afastadas da igreja se reaproximassem. Sente que faz falta à igreja portuguesa?
Sinto que a minha vocação é estar à porta, dar a primeira palavra, ser um facilitador de encontros. É claro que a igreja precisa de mais, e cada uma das pessoas precisa de maior profundidade, de um caminho mais longo, de outra espécie de acompanhamento. Mas sinto-me como aqueles que vão numa ambulância recolher a pessoa. Para mim o primeiro encontro é sempre dizer a cada um de uma forma muito inequívoca que Deus o ama de forma incondicional. Nesse sentido, não tenho dúvidas de que há tanta gente a fazer o mesmo e melhor do que eu fiz em Portugal. Sou eu que tenho saudades.
É do contacto mais regular com as pessoas, com os paroquianos que sente mais falta?
Um padre tem sempre de estar a começar e isso às vezes é duro, porque a relação é um património, um património afetivo, um património de história, de memória, e há um momento em que somos transferidos de um lugar, mas não podemos ficar agarrados ao passado. O Mallarmé dizia com razão: ‘O que é verdade não morre’. A verdade da relação, dos afetos, da amizade, isso vai perdurar sempre porque é atravessado por um sopro de eternidade. Mas agora sei que tenho de começar. Como cardeal, vou fazer parte do clero de Roma, vai-me ser atribuída uma igreja em Roma e eu sei que é a partir desta realidade, ao serviço das pessoas, que tenho de começar. Aos 53 anos, chegar a uma sala onde todos são desconhecidos, não ter 100 amigos a habitar na cidade onde se vive, é exigente, é desafiador, mas ao mesmo tempo é belo. A coisa mais maravilhosa é cada um de nós dizer no seu coração: Deus ainda me torna capaz de construir amizades, de começar uma história. Tenho uma grande curiosidade pelas pessoas. Gosto muito de pessoas. Sei que, pouco a pouco, a mesma rede de relação que tinha em Portugal para o serviço da igreja, hei-de construir no lugar onde estou.
Continua a acompanhar grupos, equipas de casais em Portugal?
Há um momento em que se tem de deixar. Mesmo no meu trabalho universitário, faltam-me duas teses de mestrado para terminar.
Sente-se efetivamente a recomeçar todos os dias?
Há recomeços que têm uma grandeza diferente. É evidente que a ordenação como bispo foi um recomeço muito grande. Vir para Roma foi um recomeço muito grande. Aquilo que a igreja espera de mim com o cardinalato é também um recomeço, mas não é um recomeço por fora. É um recomeço por dentro. Os cardeais vestem-se de vermelho, a cor da púrpura, e essa cor é a cor do sangue. Não é um só um gesto que o alfaiate me vai permitir, preparando-me uma roupa dessa cor. Primeiro, eu tenho de me vestir por dentro dessa cor e isso é exigente em termos de vida. Se alguém passasse por nós, e dissesse: ‘Prepara-te para morrer e segue-me’, nós estremecíamos, mas de facto no seguimento de Jesus é isso que acontece: ‘Prepara-te, toma a tua cruz todos os dias, e segue-me’. Nesse sentido só pode ser um recomeço. Sentir a cada dia o apelo a ir mais longe, a baixar mais as defesas, a estar menos nos nossos obstáculos, na autorreferencialidade que muitas vezes nos enclaustra, e deixar-se ir atrás do Senhor.
A poesia continua a acontecer-lhe?
Há uma história da poeta Anna Akhmátova que me marcou muito. Ela está à procura do filho numa prisão estalinista e está com outras mulheres, outras mães, a tentar identificar o lugar está detido. Está numa fila. Atrás dela está a poeta Anna Akhmátova que lhe pergunta: Podes contar isto? E o que é a poesia? Na minha maneira de ver, a poesia é podermos responder em termos humanos: posso contar isto. Como dizia Etty Hillesum no seu diário: ‘Seriam precisos poetas no campo de concentração para quê? Para poder contar o que é a experiência do campo’. Mas também seriam precisos poetas para saber dizer o que é a alegria estonteante de um parto, a alegria estonteante de um amor, de um encontro, de uma grande descoberta, da felicidade. E a grande questão com a qual os poetas se confrontam é essa: ‘Podes contar isso?’. Se a poesia me acontece? Acontece-me a exigência de contar. A vida de todos os dias interpela-me a um nível profundo de sensibilidade, de coração, de inteligência, e há coisas que sinto o dever de contar. Por isso a poesia nunca foi em mim uma coisa diletante, uma inspiração de momento. Nunca foi um assombro de ocasião, mas foi desde cedo percebida como um contributo humano e isso de certa forma há-de permanecer porque tem a ver com a natureza da própria pessoa, com a sua alma, com o seu consciente e o seu inconsciente, a sua linguagem que é uma coisa tão importante. A poesia há-de acompanhar-me sempre. Se vou publicar ou não, como vai ser agora, isso o tempo vai dizer. Não estou muito preocupado com isso. Não posso dizer que está tudo na mesma. Há mudanças, coisas que aconteceram, uma digestão interior, espiritual que tenho de fazer, mas a gente tem de confiar e dar valor também ao silêncio. O Alberto Pimenta tem um belo livro sobre a tentação do silêncio na poesia e de facto o silêncio é uma casa que os poetas aprendem a frequentar.
Em 2015, disse que mais do que o mundo eclesiástico, o que o interessava em Roma era “a oferta da cultura, do pensamento”. Continua a ser assim?
Sou um eclesiástico e por isso tenho interesse por outros mundos. Sou um operário. Sinto-me como um trolha. A minha preocupação é trabalhar as dez horas por dia, cumprir o meu dever, realizar a minha missão, chegar cansado, extenuado, gastar-me. Esse é o meu objetivo de vida. Temos de ter curiosidade por outros mundos. É evidente que essas frases têm de ser bem entendidas e são frases de alguém que dá a vida dentro da igreja. Como o Papa Francisco nos diz: “Não podemos viver numa autorreferencialidade”. Os padres não são um corpo burocrático e nesse sentido a abertura ao outro, a valorização de outras linguagens, de outras procuras, de outra escuta, aquilo que a arte nos dá, são formas de nos abrirmos às surpresas de Deus.
Tem conseguido ir a concertos e a exposições aqui em Roma?
Eu sou pesado fisicamente como as pessoas sabem, mas no fundo sou mais olhos do que barriga. O meu desejo é muito maior do que aquilo que eu consigo. Gosto imenso de música, de arte. Tenho uma paixão por teatro. Gosto de cinema. O que é que consigo? Consigo muito pouco com a disponibilidade que tenho. Fico muito contente por conseguir ir uma a duas vezes por mês. Para um cristão, para um padre, para um bispo, é importante a data do ano. Eu sou um cristão de 2019 e isso é uma responsabilidade. O presente para mim é uma responsabilidade. Não posso abstrair-me disso. Tenho de escutar a linguagem do meu tempo, a arte, os problemas, as esperanças e isso é alguma coisa que sinto como um dever profundo de homem de fé.
O que é que pede a Deus nesta fase?
Faz de mim o que quiseres. É aquilo que me sai do coração mais vezes, às vezes incessantemente, às vezes em silêncio.