Omissão de informação aos clientes, alta pressão para vender, baixos salários, "precariedade extrema" (e contratos de um dia), chamadas em série, stress, problemas de saúde e… pulgas no local de trabalho. Bem-vindo ao lado negro dos "call centers".
Sara trabalhou durante sete anos em "call centers". Tem muito para contar. Viu colegas a "chorar" e a entrar em "pânico". Outros largaram tudo a meio do turno e nunca mais voltaram, vencidos pelo stress.
"A pressão era realmente muito grande. Tínhamos muitos colegas que choravam ao telefone, entravam em pânico, porque o número de chamadas era muito grande e sentiam que não tinham apoio, nem estavam preparados para fazer aquilo", conta.
Os "call centers" empregam entre "40 mil e 50 mil" pessoas, de acordo com a Associação Portuguesa de Contact Centers (APCC). O recém-criado Sindicato de Trabalhadores de Call Center (STCC) acredita sejam "bem mais".
No sector do telemarketing (vendas ou promoções por telefone), a um salário base, que é, muitas vezes, o mínimo, somam-se prémios por objectivos. Os trabalhadores nem sempre conhecem os critérios, diz João Carlos Louçã, antropólogo que estudou durante um ano e meio a realidade dos "call centers". Mas sabem uma coisa: têm que vender, vender, vender.
Carla passou pelas vendas antes de ser transferida para o serviço de apoio ao cliente de uma instituição bancária. O trabalho era repetitivo, não podia sair do guião. Sentia-se um "gravador".
Conta que as chamadas eram ouvidas e "tudo era controlado" pelos chefes, que "muitas vezes, gritavam" com os funcionários.
Com a pressão que sentiam para vender e atingir objectivos, "as pessoas muitas vezes faziam coisas que não deviam". "Omitiam informação" ao cliente, revela a licenciada em Direito, de 26 anos.
Carla trabalhou ano e meio no "call center" e chegou ao limite. "Não aguentei e despedi-me. Há pessoas que trabalham lá 20 anos. Admiro essas pessoas."
Não? Talvez
Pelas vendas também passou Vanessa. Experimentou o mesmo clima de permanente tensão e sobressalto.
Descreve como era um dia normal de trabalho: "Ligávamos para as pessoas a tentar fazer a venda e tínhamos o supervisor atrás de nós, a ouvir-nos através de um auricular, a dizer o que fazer, como fazer: 'Insiste mais, diz que vais enviar, diz que vai gostar'. A dar toda uma série de dicas. É uma pressão enorme. Naquele 'call center' foi uma experiência um bocado difícil. Saía de lá completamente exausta."
Vanessa trabalhou para uma empresa de telecomunicações em regime de "outsourcing", uma prática generalizada no sector. Se alcançasse as metas mensais recebia um incentivo, mas "era muito difícil conseguir atingir os objectivos, senão impossível".
Hoje, Vanessa trabalha no atendimento de uma companhia aérea. Não há "outsourcing" e todos os funcionários têm vínculo à empresa. "Não temos um contrato precário, de modo nenhum. Temos boas condições de trabalho, um bom ambiente."
Também há objectivos a cumprir e o "salário é revisto anualmente", de acordo com a avaliação. "Incentiva qualquer um a ser melhor e a trabalhar melhor", refere Vanessa.
No "call center" de Carla não era assim. Era preciso levar os clientes "até à exaustão" para tentar fechar negócio e ouvir vários "nãos" antes de desistir.
E quando estes pediam para não voltar a ser contactados, nem sempre os operadores de "call center" colocavam essa indicação na base de dados: o "não" virava "talvez".
"Nós, supostamente, tínhamos essa possibilidade de colocar como não interessado. O problema é que tinhas de apresentar resultados e num dia só podias ter três não interessados. Isso obriga os trabalhadores a terem de dar a volta", adianta.
"Precariedade extrema"
Natural de uma aldeia nos arredores de Turim, em Itália, Massimo Arondello chegou a Portugal em 2009 à procura de novas oportunidades. Licenciado em comunicação e semiótica, fluente em várias línguas, só encontrou trabalho em "call centers".
Atendia clientes de grandes multinacionais, mas não tinha qualquer vínculo laboral com estas empresas. "A palavra de ordem, quando se fala de 'call centers', é sempre só uma: 'outsourcing'", lamenta.
Massimo tinha contrato com uma empresa, mas prestava serviços a outra. Em bom português, este italiano de 40 anos acrescenta que "nem perde tempo a falar de precariedade quando há contratos de um mês".
Há contratos mensais, mas também semanais e "de todos os tipos possíveis e imaginários", denuncia a presidente do recém-criado Sindicato de Trabalhadores de Call Center (STCC), Paula Lopes.
Há até contratos de um só dia, denuncia. "Uma trabalhadora falou com o sindicato a indicar que, depois de uma chamada, o superior considerou que ela tinha dado uma informação incorrecta ao cliente e ligou para o telefone dela de trabalho e disse: 'Podes deixar aqui os 'headsets', amanhã já não vens trabalhar. Estás despedida'. É uma das situações que temos em mãos."
Ilustração: Ricardo Fortunato
Paula Lopes afirma que há casos de "precariedade extrema" no sector. Mas a Associação Portuguesa de Contact Centers responde com o "dinamismo notável" do sector, que se traduz também na criação de centenas de empregos, mesmo em tempo de recessão, e na melhoria das condições de trabalho.
"Desgaste rápido" e pulgas
A sindicalista considera que Portugal é um bom país para a instalação de "call centers", devido aos "salários bastante baixos", qualificações dos trabalhadores e falta de regulamentação.
Paula Lopes "sonha" com o Brasil. Lá já existe regulamentação, contrato colectivo de trabalho e ninguém faz mais de seis horas no atendimento ou nas vendas por telefone.
O STCC defende a criação de uma categoria profissional para os trabalhadores de call center e que a profissão seja considerada de desgaste rápido. "As doenças auditivas, respiratórias, as dependências, as depressões, as tendinites, são algo de constante", assinala Paula Lopes.
Os trabalhadores queixam-se da falta de condições no local de trabalho. Sara usa mesmo o adjectivo "horrível". Descreve os "call centers" como "espaços fechados", em que há problemas respiratórios por causa do ar-condicionado.
No seu local de trabalho não era agradável. Tinha "sérios problemas de higiene", uma "alcatifa gigante que não era aspirada, mas varrida" e era raro o ano em que não havia "duas ou três vezes pulgas a saltar no 'call center' e a morder as pessoas todas".
Massimo também foi atacado por pulgas e no seu escritório até chegaram a "capturar" uma para mostrar a um chefe que não acreditava que andavam por lá aqueles insectos.
A família em Itália também "nem acredita" nas peripécias que Massimo vai contando, com uma em que foi proibido pelos supervisores de "esticar as penas, de falar com os clientes em pé".
Obrigavam-no a passar o turno sentado e para ir à casa de banho tinha de pedir autorização ao supervisor. O tempo era limitado e cronometrado.