A lei da eutanásia está de regresso ao parlamento, depois do Tribunal Constitucional (TC) ter chumbado alguns dos seus artigos. A decisão não põe, no entanto, em causa a futura legalização desta prática, que os juízes consideraram já não ferir a Constituição, lamenta Ana Sofia Carvalho.
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, a investigadora do Instituto de Bioética da Universidade Católica, e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, analisa os argumentos do Tribunal e reafirma a crítica aos deputados que insistem em legislar sobre a morte a pedido, quando se luta para salvar vidas.
Já leu este acórdão do Tribunal, com a resposta ao pedido de fiscalização preventiva enviado pelo Presidente da República. Ler este documento na íntegra alterou a perceção inicial que teve, quando foi conhecida a notícia? Este chumbo pode ser considerado uma vitória para quem se opõe à eutanásia?
Uma vitória não é, certamente, e isso é muito claro nas 90 páginas do documento. Mesmo não sendo nem jurista, muito menos constitucionalista, dá para perceber que na questão não só da inviolabilidade da vida humana, como também os artigos que foram considerados constitucionais, que entre os conselheiros existiam posições distintas, tanto que há quatro conselheiros que acabam por fazer uma declaração de voto no sentido de considerar que a eutanásia viola o artigo 24º - 1 (“A vida humana é inviolável”), no sentido de que qualquer circunstância da eutanásia poria em causa o princípio da inviolabilidade da vida humana.
Foram quatro juízes em 12. É significativo que os juízes tenham ido mais longe do que pediu o Presidente e tenham já dito, neste acórdão, que a eutanásia, por si só, não viola a Constituição, não viola o direito à vida, e que "o direito a viver não pode significar o dever de viver em quaisquer circunstâncias"?
Essa é a grande questão. Obviamente que o Presidente da República não tinha pedido pronúncia sobre esse assunto em específico, mas percebe-se na leitura do documento que essa discussão surgiu, e a posição que acabou por prevalecer é uma posição de compromisso, não de consenso. Porque, obviamente, continuam a existir pelo menos quatro conselheiros, e outro grupo de conselheiros que até acha que o documento está excessivamente limitador.
Portanto, aquilo que me parece transparecer do documento é que realmente não existia um compromisso entre os senhores conselheiros, e que esta foi, no fundo, uma forma de o estabelecer, ou responder àquele que tinha sido o apelo do senhor Presidente, situando o debate nesta questão dos conceitos indeterminados, que me parece também estranho.
Como é que ouvindo, por exemplo, o bastonário da Ordem dos Médicos - que considera exatamente esta questão do "sofrimento intolerável" muito indeterminado do ponto de vista médico -, como é que os senhores conselheiros consideram que, sendo um conceito indeterminado, é determinável pelos médicos? Não me parece que ninguém, para além dos médicos, possa pronunciar-se sobre esta questão, se é determinado ou se não é determinado.
Já no parlamento os pareceres da Ordem dos Médicos, por exemplo, não foram tomados em grande consideração. Temos aqui, mais uma vez, juristas a determinar um conceito médico contra o parecer dos médicos e da reflexão bioética, que também é importante?
Exatamente. O Conselho Nacional de Ética, aliás, todas as entidades que se pronunciaram deram pareceres desfavoráveis. Realmente é muito estranho. Não estou propriamente habituada a ler acórdãos, não sei exatamente que tipo de conteúdo é que costumam pronunciar. Li o da gestação de substituição, que me pareceu um documento muito bem conseguido, que faz uma reflexão excelente, mas aquilo que me soou mais estranho neste acórdão foi parecer que ensina os senhores deputados a fazerem leis, ou a estabelecerem conceitos mais determinados, porque vai buscar um conjunto de legislação, da morte medicamente assistida - que é, no fundo, um bálsamo para não se chamar eutanásia e suicídio assistido, o que de si já é sintomático.
No fundo, preocupam-se em estabelecer um conjunto de situações que os deputados poderão usar para tornar este conceito mais determinado, o que me deixa um bocadinho perplexa, talvez, eventualmente, pela minha inexperiência relativamente a acórdãos do Tribunal Constitucional.
Isso vai condicionar o debate que se vai seguir no parlamento e até na sociedade civil, quase indicado "sigam por aqui, para acabarmos já com isto"?
É. A minha sensação de estranheza foi exatamente essa. E mais: quando estamos a falar de conceitos indeterminados, que têm de ser determinados por pessoas que não, obviamente, um juiz do Tribunal Constitucional, como é que o TC coloca propostas sem as discutir com aqueles que serão os principais intervenientes, que são claramente os profissionais de saúde? Não deixa de ser muito estranho que isto tenha acontecido e que estas soluções tenham sido apresentadas da forma que foram, e tão explícitas no sentido de "resolvam o assunto, a partir daqui têm a solução para resolver o assunto".
O Tribunal disse que é preciso definir melhor o conceito de "lesão definitiva de gravidade extrema". Já o outro conceito de "sofrimento intolerável", que também levantou dúvidas ao Presidente, os juízes dizem que pode manter-se. Mas isto é possível ficar totalmente clarificado na lei? É possível ter conceitos seguros nesta matéria?
A minha opinião é que não, por um assunto que me parece que foi relevado para segundo plano relativamente a esta questão da eutanásia, e que a mim é dos assuntos que mais me preocupa, que é questão da autonomia. Ao ler a legislação proposta, assim como o parecer do Tribunal Constitucional, parece que todas as pessoas que pedem para ser mortas estão absolutamente capazes de tomar uma decisão autónoma, com todos os elementos, quando qualquer pessoa que pede para ser morta está num processo de vulnerabilidade tal que nós sabemos que automaticamente a sua capacidade de autonomia - ou de autodeterminação, como o acórdão fala - está altamente condicionada. Juntando essa questão a esta dos termos serem tão indeterminados, e serem tão difíceis de julgar - independentemente de termos esta catadupa de profissionais de saúde envolvidos -, estranha-se um bocadinho como é o Tribunal tomou a posição que tomou.
Nesse sentido, tanto as dúvidas do Presidente, como a justificação do TC para chumbar alguns artigos, mostram que o diploma como estava não impedia - ao contrário do que foi dito pelos seus responsáveis - que se resvale para a tal "rampa deslizante", e que depois a legislação vá sendo cada vez mais permissiva em relação aos casos em que seria permitida a eutanásia?
Pois, esse para mim é um dos pontos que aparece desde as primeiras propostas de lei que discutimos sobre eutanásia. É que a redação desta lei em específico coloca Portugal já no meio da rampa, ou seja, nós começámos já a deslizar. Quando falamos de "lesão definitiva" - e vejam, é definitiva, não é fatal - "de gravidade extrema", de acordo com o consenso científico, isto abre a porta para situações absolutamente inaceitáveis. O que é uma lesão definitiva? Há situações, como a diabetes, ou uma situação de saúde crónica, que são definitivas.
E que serão cada vez mais no futuro, dado o avanço da medicina.
Pior, ainda cada vez mais com o tsunami de problemas que vamos ter num futuro muito próximo com os doentes não Covid, isso vai crescer exponencialmente! Ao colocar "lesão definitiva de gravidade extrema" sem colocar a palavra "fatal" - que foi aquilo que foi definido em todos os países que começaram uma lei da Eutanásia, teoricamente no início da rampa deslizante; essa era a condição necessária, a questão de ser fatal -, nós começamos já com uma "lesão definitiva de gravidade extrema", sem ser fatal.
O Presidente da República também deu a entender que a eutanásia só devia ser permitida em caso de "doença fatal"…
Exatamente. E aqui nem sequer se diz isso. O que está a acontecer relativamente à rampa deslizante, o que temos assistido em países como a Holanda e como a Bélgica, essencialmente - de começarmos a ter eutanásia de outras pessoas que têm doenças que não são fatais - tem sido a prova de que existe, efetivamente, essa rampa deslizante.
Falamos, por exemplo, de alcoólicos, duas pessoas que foram mortas recentemente através da eutanásia, porque tinham uma situação de cronicidade – o alcoolismo -, viviam um sofrimento extremo porque não se conseguiam ver livres dessa situação crónica, e pediram-na. E foram eutanasiados.
Nós, por aquilo que é a letra da lei, começamos já no meio da rampa. Estas pessoas, teoricamente, serão já elegíveis em Portugal para pedir a morte assistida – este bálsamo que arranjaram para fugir ao termo eutanásia ou suicídio assistido. Não se percebe, realmente.
Assumindo que a lei será aprovada, mais tarde ou mais cedo, que balizas éticas seriam fundamentais?
Não sei, francamente teria muitas dúvidas, mesmo partindo de um “a priori” de que não fosse contra a eutanásia, por si, e tentando perceber de que forma é que conseguiríamos, numa legislação, colocar termos que permitam garantir que não há desvios éticos significativos. Tenho a maior dúvida em perceber como é que isso pode ser feito, não consigo encontrar nenhuma justificação. E não só eu, os próprios médicos dizem-no.
Há uma reflexão ética sobre o ser humano, o valor da sua vida e em que momento é que essa vida, afinal, deixaria de ter valor até aos olhos da Constituição…
Sim, é algo que não se percebe. Inviolável é inviolável. Não há graus de inviolabilidade. Percebe-se muito bem, também, pelo acordo do Tribunal Constitucional, quando faz a história do termo, que o facto de se referir essa inviolabilidade não aconteceu por acaso. Foi exatamente no sentido de dizer que é em nenhuma circunstância. Por isso é que me parece muito estranha esta interpretação de que a eutanásia, em si, o suicídio assistido, não violam claramente a inviolabilidade da vida humana.
Os partidos que aprovaram esta lei em janeiro já se comprometeram a alterar o diploma. Acredita que a lei poderá ser modificada no sentido de se garantir que as condições sejam totalmente claras e controláveis, como pede o Tribunal Constitucional?
Que a lei vai ser alterada, penso que não restam dúvidas. Aliás, esta foi uma bandeira de alguns deputados, que não se coibiram de apresentar e de aprovar uma legislação desta natureza quando o país vivia a catástrofe da Covid, num dos seus piores dias. O professor António Barreto dizia que era uma “obscenidade política”. Numa circunstância desta natureza, é claramente uma obscenidade política aprovar essa legislação.
Se nessa altura não houve qualquer tipo de incómodo ético, de mal-estar moral, nesse sentido, agora que as coisas parecem estar mais controladas certamente vai acontecer o quanto antes.
Se realmente os deputados vão conseguir responder às que são as exigências do Tribunal Constitucional… Dado que o trabalho de casa está feito, praticamente se diz “façam assim, que resolvem o problema”, acho que terão todas as condições para ter uma lei o mais rápido possível.
Do seu ponto de vista, estamos aqui perante uma formalidade? Não espera que haja debate suplementar, ou um pedido de pronunciamento ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida face à nova proposta de lei?
Não, acho que não. Existe claramente aqui um sinal sobre os pareceres, a auscultação de quem estará envolvido – os terceiros elementos que farão um serviço que o Estado considera legal. Tenho muitas dúvidas de que o debate venha a ser aberto, no sentido de auscultação.
Esperava mais dos políticos na abordagem destas matérias?
Esperava. Posso dizer que fiquei absolutamente chocada pelo facto de a lei ter sido aprovada na altura em que foi aprovada, com os timings. A pessoa olha para a lei e percebe claramente que, no estado em que temos o nosso Serviço Nacional de Saúde não é possível colocar dois médicos – um médico orientador e um médico especialista – mais uma comissão que integra médicos, a tratar de um processo que, teoricamente, tem de ser respondido num prazo muitíssimo curto. A comissão, por exemplo, tem cinco dias para dar o seu parecer.
Sabemos que já em tempos Covid e no pós-Covid vamos viver situações de escassez de recursos para a saúde, de uma forma absolutamente ímpar. O que vai acontecer com estes doentes que, durante muito tempo, não tiveram acesso a cuidados de saúde adequados, será realmente assustador, como sabemos. Ora, estarmos nesta altura a utilizar recursos no sentido de permitir que pessoas que vão sofrer imenso, que vão ter dificuldades, peçam para ser mortas, parece-me de uma falta de gosto absolutamente incrível e inaceitável.
A última questão tem a ver com o facto de se morrer mal em Portugal. Não querendo confundir conceitos, a lei da eutanásia fala da oferta de cuidados paliativos, mas ela está muito longe de corresponder às necessidades do país?
Sim, até poderá haver escolha para certas pessoas, mas para a maioria não vai existir, porque a escassez de recursos também nessa área é muito significativa. As pessoas morrem mal em Portugal, realmente, e isso acontece por falta de apoio relativamente às condições de que padecem, mas essa situação ainda se vai agravar mais.
Se nós já tínhamos um problema de escassez para cuidar daquelas pessoas que se encontravam numa reta final de vida, isso vai tornar-se tão grave que colocará um número muito mais significativo de pessoas em circunstâncias de fim de vida. Basta ver as cirurgias que não foram realizadas, as consultas que não foram feitas. Existe, inclusive, um documento da Ordem dos Médicos que retrata a desgraça dos doentes não-Covid e os números são absolutamente avassaladores. Nós sabemos que o que vem aí, a seguir, é um tsunami de dificuldades imensas para quem cuida e para quem é cuidado.