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Como contributo construtivo para este importantíssimo debate, desenvolvo em sintéticos 21 pontos a fundamentação para o não à eutanásia e para a necessidade de um referendo sobre esta matéria, que não é, nem pode ser, uma questão política partidária ou sectária.
O que está em causa não é meramente uma “liberdade individual de escolha” mas sim uma mudança radical dos valores, dos princípios e da estrutura da sociedade em que vivemos. Da total proibição de matar passaremos a viver numa sociedade que permite matar, sem fronteiras bem definidas e que se vão alargando progressivamente. Tão complexa e marcante decisão só pode ser tomada em referendo e após um debate nacional, não apenas alguns debates elitistas, porque nos vai afetar a todos.
1) O conceito de “morrer com dignidade” não pode ser indevidamente associado à antecipação da morte. A vida e a morte são sempre dignas na sua essência, independentemente dos contextos. A dignidade reside nas próprias pessoas, não no tipo de morte.
2) O projeto de Lei do PS, por exemplo, permite que a eutanásia seja requerida por “pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal”, havendo a consciente preocupação de não referir doentes terminais e aceitando a antecipação da morte em dias, semanas, meses ou anos, numa subjetividade extrema e perigosa de definições.
3) Refere-se habitualmente que a defesa da eutanásia é uma questão de defesa da liberdade individual escolha. Porém, quem o afirma cai em enorme contradição, pois, afinal, são colocadas imensas restrições à decisão individual, que depende, nomeadamente, de parecer médico e de uma comissão, pelo que o conceito de defesa da liberdade individual, não colhe.
4) É curioso o modo ilusório de utilização da conceção de “escolha pessoal”. A “escolha” da morte não é uma opção, mas sim o resultado da “exclusão” externa de todas as outras opções. De igual modo, ao contrário do que muitos ainda pensam, o suicídio não é um ato de coragem mas sim de desespero ou de pedido de ajuda.
Ainda assim, para ser uma genuína “escolha” significaria que, primeiro, todos teriam de ter direito a optar pelos cuidados paliativos precoces e ter acesso a cuidados domiciliários e apoios sociais adequados, para não fragilizar e pressionar os mais vulneráveis a recorrer, afinal, à única “opção” disponível, pedirem para serem mortos, o que seria profundamente antissocial.
5) Afirma-se que “os cuidados paliativos não eliminam por completo o sofrimento”, como se fosse possível alguém ter uma vida sem sofrimento e como se devêssemos perseguir uma vida sem sofrimento, desde logo uma irreal impossibilidade. Com os recursos farmacológicos e tecnológicos atualmente existentes faz ainda menos sentido falar-se em dor descontrolada ou incontrolável.
Sem aprofundar o tema, recordamos que Marguerite Yourcenar disse que o prazer e a dor são duas sensações vizinhas e Sófocles afirmou que o que nos liberta do sofrimento da vida é o amor.
6) Persiste uma enorme confusão de conceitos. Note-se que dois em cada três adultos do Quebec pensa que eutanásia é a simples retirada de tratamento, o que não é verdade. Também em Portugal, muitas pessoas defendem a eutanásia com base neste mesmo erro.
7) Os defensores da eutanásia recusam a via francesa, da sedação terminal/paliativa a pedido sem indução deliberada da morte. A sedação terminal ultrapassa todos os argumentos dos defensores da eutanásia, sem ser necessário alterar a legislação e o paradigma da sociedade. Apenas fica menos barata.
8) Ignora-se a real experiência de outros países e a verdadeira rampa deslizante a que deu origem a aprovação da eutanásia e a extensão da inerente cultura, com aumento progressivo de pessoas eutanasiadas, mesmo sem ser a pedido. Não são especulações ou ilegítimos temores, é a realidade, que a seguir se descreve.
9) Não há salvaguardas eficazes para o doente potencialmente submetido a bullying familiar no sentido de pedir a eutanásia para “deixar de ser um fardo”... Esta matéria é tanto mais sensível quanto se sabe que os idosos têm uma particular dificuldade/inibição em se queixarem dos maus tratos e pressões que recebem. Os defensores da eutanásia sabem que muitas pessoas em situação mais frágil e de maior dependência vão ser “massacradas” para “pedirem” a eutanásia, mas não se importam. A aprovação deste “direito individual” iria colidir frontalmente com o “direito coletivo” das pessoas não serem pressionadas a “pedirem” a sua eutanásia. E não há salvaguarda legal que o impeça!
10) Devido ao segredo médico, a família de um doente pode em qualquer altura ser surpreendida pela informação de que um seu familiar foi eutanasiado, sem sequer ter uma hipótese de o ajudar. O caso de Tom Mortier, completamente surpreendido pela eutanásia da mãe, que pediu para ser morta por sofrer de uma depressão, é paradigmático, tendo avançado com um processo contra o Estado belga no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
11) Na Bélgica e na Holanda a eutanásia tem sido aplicada a doentes mentais, incluindo síndroma de asperger, distúrbios da personalidade, doentes que nunca tiveram sequer uma hospitalização por doença psiquiátrica e casos com forte componente de isolamento social e solidão, sugerindo que a eutanásia foi aplicada como um substituto para um efetivo suporte psicossocial. Discute-se agora a extensão da eutanásia às demências. Progressivamente a eutanásia vai sendo transformada numa “terapêutica” simples, barata e eficaz...
12) A sociedade pode desistir de programas de prevenção do suicídio, que representa um grave problema de saúde pública, e passar até a facilitá-lo. O"cansaço da vida" pode ser uma razão cada vez mais comum para as pessoas escolherem o suicídio assistido.
13) Atualmente, na Holanda, já se antecipa a criação de uma clínica especializada na eutanásia infantil e Eduard Verhagen, um dos arquitetos do Protocolo de Groningen, relativo à eutanásia infantil, considera que algumas crianças com menos de 12 anos estão aptas a tomar a decisão sobre a sua própria eutanásia.
14) A cultura da eutanásia será naturalmente transmitida aos doentes e será mais uma forma de indução do pedido. A aprovação cultural pode servir como um incentivo para o suicídio. Muitos doentes poderão ser avaliados por médicos que não os conhecem e a quem foram referenciados apenas para avaliação da eutanásia, uma decisão simplificada se o médico for favorável à solução. Na Holanda, a eutanásia tornou-se num tratamento normal.
15) Uma elevada percentagem de casos de eutanásia não são reportados porque os médicos não os considerarão como verdadeira eutanásia, sendo muitas vezes os fármacos administrados por enfermeiros (BMJ, 2010; 341: c5174). É uma ilusão pensar que salvaguardas e controlos legais evitam abusos e a verdade é que as transgressões identificadas nunca foram julgadas.
16) Na prática, atribui-se ao médico o poder legal de matar. A relação médico-doente pode ser afetada, perturbando a confiança do doente e da família do doente no médico. “A ideia da medicina como uma profissão que encarna um compromisso comum para cuidar de pessoas que estão doentes e debilitados, de modo a restaurar sua saúde, vai desaparecer rapidamente da memória” (JAMA, 2016; 315: 247-8).
17) A morte assistida não é compaginável com o conceito de ato médico aprovado pela União Europeia dos Médicos Especialistas (UEMS).
18) Com a Declaração Antecipada de Vontade, ou o recurso ao (não) Consentimento Informado, o doente tem a tranquilidade de saber que nunca será submetido a tratamentos ou intervenções que não pretenda ou que possam configurar distanásia.
19) Afirmam alguns que a aprovação da eutanásia é um progresso civilizacional e dão os exemplos dos países que já a aprovaram, que são uma esmagadora minoria! Porque não se referem os países que a recusaram, como a França e a Finlândia, mais recentemente, e todos os outros? Já agora, para correção, a Suíça não aprovou a eutanásia, mas apenas o suicídio assistido.
20) O grande progresso da civilização foi a defesa da vida! Modificar um dos pilares centrais dos valores da sociedade, do edifício do Direito e dos princípios milenares da Medicina, que evoluíram para uma efetiva salvaguarda do direito das pessoas à vida, à sua dignidade como pessoas e a uma vida que cumpra os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, seria mudar radicalmente a estrutura e o modelo da Sociedade em que vivemos, com consequências facilmente (im)previsíveis.
21) Porque o que está em causa não é meramente uma “liberdade individual de escolha” mas sim uma mudança radical dos valores, dos princípios e da estrutura da sociedade em que vivemos, pois da total proibição de matar passamos a viver numa sociedade que permite matar, sem fronteiras bem definidas e que se vão alargando progressivamente, tal decisão só pode ser tomada em referendo. Afinal, quem tem medo deste debate e da decisão livre e esclarecida do povo?
*José Manuel Silva é médico, especialista em medicina interna e foi bastonário da Ordem dos Médicos entre 2011 e 2017