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Mais de 300 mil pessoas abandonaram a cidade Síria de Afrin nas últimas semanas, segundo dados avançados pelas Nações Unidas, perante a ofensiva da Turquia, que depois de várias semanas de bombardeamentos acabou por tomar a cidade, com o apoio do Exército Livre da Síria.
“O Exército Livre chegou, e era suposto ser tudo seguro”, disse um residente da cidade, em declarações à Reuters, “mas acabou por ser o contrário. Pilharam-nos as casas, pilharam-nos os carros, pilharam-nos as lojas. Agora é como se fôssemos sem-abrigo nas nossas próprias casas, sem nada que comer, nada que beber, sem segurança”.
A situação dramática reforçou a onda de refugiados, mas o mundo continua focado sobretudo em Ghouta, o enclave rebelde nos arredores de Damasco, sitiado e atacado pelas forças leais a Bashar al-Assad.
Esta é uma situação que enerva o porta-voz das Forças Democráticas da Síria (FDS), uma aliança de milícias que atua, sobretudo, no nordeste da Síria e que foi instrumental, ao longo dos últimos anos, para derrotar o Estado Islâmico no terreno. São precisamente as Forças Democráticas que a Turquia quis expulsar de Afrin.
“A situação em Afrin era quase idêntica à de Ghouta”, diz Kino Gabriel, “mas sentimos que Afrin foi esquecida, o povo de Afrin, e o seu sofrimento, foi esquecido pelo mundo”, diz o porta-voz, Kino Gabriel.
A sensação de abandono é agravada pelo facto de “o mundo”, neste caso, ser sobretudo a mesma Europa e os mesmos Estados Unidos que dependeram das FDS para combater o Estado Islâmico. “Combatemos juntos contra o Estado Islâmico e conseguimos derrotá-lo em vários locais ao longo dos últimos anos, mas agora os nossos aliados deixaram-nos sozinhos nesta batalha contra a invasão pelo Estado turco e os mercenários do Exército Livre da Síria. Ainda tentaram fazer algo através da resolução do Conselho de Segurança, a exigir um cessar-fogo para a Síria, mas a Turquia não a acatou”, lamenta Gabriel, em conversa com a Renascença.
Apesar do desgosto, o porta-voz compreende as dificuldades dos aliados. Os EUA querem evitar um confronto direto com um aliado importante na NATO, e os países europeus estão à mercê da Turquia por outra razão. “A Turquia está a ameaçar deixar entrar centenas de milhares de imigrantes para a União Europeia. Sabemos que é uma situação complicada para todos”, diz.
Guerra ao Estado Islâmico comprometida
Mas a inação dos aliados, por mais que seja compreensível, vem com um preço. As FDS viram-se obrigadas a retirar homens das frentes de batalha contra as poucas bolsas de resistência do Estado Islâmico que ainda existem, e deslocá-los para a região de Afrin.
“A Turquia obrigou-nos a cessar as operações contra o Estado Islâmico. A vitória, que deveria ser alcançada no espaço de duas ou três semanas, no máximo, acabou por ser adiada durante algum tempo”, explica.
E a situação pode mesmo vir a agravar-se. Kino Gabriel explica que as suas forças, e a maioria dos civis, foram retiradas de Afrin há vários dias “para evitar um massacre provocado pelos ataques turcos”, mas as SDF continuarão a resistir, diz. “Ainda temos algumas forças nos arredores de Afrin e elas vão desencadear operações contra o exército Turco e os mercenários.” Ao mesmo tempo a Turquia ameaça atacar outras cidades perto da fronteira, incluindo Qamishli, Tal Abyad, Ra’s al’Ayn e até Manbij, onde estão estacionadas as forças americanas.
A Turquia insiste que as FDS são dominadas pela milícia curda YPG e que esta, por sua vez, é uma mera extensão do PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos, que leva a cabo uma insurreição contra o Estado turco há décadas.
Kino Gabriel, que não é curdo, mas sim um cristão siríaco, desmente esta ideia e diz que, pelo contrário, quem tem um registo de apoiar terroristas é a própria Turquia.
O conflito entre a Turquia e as SDF é mais um fator que complica uma guerra civil que dura há mais de sete anos.