O país que recebe o Papa a partir de sexta-feira já não é o mesmo que se desmontou como um baralho de cartas diante da ameaça do Estado Islâmico, mas tem ainda um longo caminho pela frente de trabalho pela unidade.
O Iraque pode estar hoje mais pacificado, mas as divisões ainda existem e as armas continuam disseminadas pela população. As milícias não desarmaram e o potencial de regresso à guerra civil está sempre presente. Junte-se a isto uma pandemia em ebulição e a pergunta mais natural a fazer é porque é que o Papa insistiu em visitar o Iraque agora?
A resposta é dada pelo padre Thabet Habeb Youssef, da Igreja Caldeia, que está em comunhão com Roma, recorre a uma imagem que é cara aos iraquianos por várias razões.
Abraão não é apenas o pai das três religiões monoteístas, é também – se for permitido algum anacronismo – um iraquiano. A Bíblia identifica-o como sendo natural de Ur, na Caldeia, que fica no que é hoje o Iraque. Não por acaso, é lá que se realizará um encontro inter-religioso no sábado, dia 6 de março.
A audácia de Francisco de visitar o país apesar da situação atual é apreciada pelos iraquianos, seja qual for a sua religião, diz o padre Thabet. “Ainda na quarta-feira o Papa disse que vai ao Iraque e que não vai deixar o povo à espera. Precisamos de um homem forte, com a fé de Abraão. Quando Deus disse a Abraão para ir, ele não pensou nos perigos, partiu simplesmente. Também o Papa quer visitar diretamente o Iraque, sem quaisquer cálculos e sem medo. Isto é muito bem-visto pelos cristãos no Iraque, que esperam a visita de um Papa sem medo, com coragem.”
O sacerdote diz ainda que a esperança associada a esta visita é grande e que mesmo muitos muçulmanos confiam mais no Papa Francisco do que na classe política nacional.
Mirza Dinnayi, representante da comunidade yazidi – uma minoria religiosa que foi perseguida de forma ainda mais feroz do que os cristãos – diz que também os seus correligionários estão entusiasmados com a viagem e que esta mostra que “ainda há esperança no Iraque, que não é um caso perdido, não é inútil e o Iraque pode ser reconstruído. Estou muito grato e muitos iraquianos concordam que foi uma decisão excelente.”
Francisco inicia a sua visita ao Iraque na sexta-feira e permanece no país durante quatro dias, partindo na segunda-feira de volta para Roma. Durante a sua estadia tem encontros marcados com líderes religiosos e civis do país, bem como vários eventos com a comunidade cristã tanto em Bagdad como em Erbil e noutras zonas em que os cristãos têm raízes fortes.
O confronto
Quando os terroristas do Estado Islâmico atacaram Mossul, em junho de 2014, o mundo assistiu com incredulidade à rapidez com que toda a autoridade e mesmo as forças armadas do Governo central de Bagdad se desmoronaram.
Milhares de militares iraquianos foram capturados, muitos depois de terem despido as fardas e tentado fugir a pé para fora da cidade. Foram todos sumariamente executados e a segunda maior cidade do Iraque tornou-se a jóia da coroa de uma organização criminosa que até então apenas tinha dado nas vistas na vizinha síria, já por si em caos.
A queda de Mossul pôs em causa todo o trabalho que o país tinha feito desde a invasão americana, em 2003, que depôs o regime de Saddam Hussein. Com os americanos já cansados da sua presença de mais de uma década e o país fortemente dividido entre sunitas e a maioria xiita, com apenas o Curdistão iraquiano a dar sinais de estabilidade e organização, a situação parecia perdida. Mas não foi.
O Iraque que recebe o Papa Francisco a partir da próxima sexta-feira é um país diferente daquele. A vergonha da derrota em Mossul obrigou o Governo iraquiano a repensar a sua estratégia militar. Levou tempo, mas as forças armadas reorganizaram-se e quando, entre 2016 e 2017 estas lançaram uma ofensiva contra o Estado Islâmico foram muito mais bem-sucedidas do que se podia esperar.
Organizadas, disciplinadas e bem-treinadas, as forças iraquianas, auxiliadas pelos “peshmerga” curdos e por uma manta de retalhos de milícias cristãs e xiitas de diferentes tendências políticas, conseguiram recuperar a cidade e empurrar os fundamentalistas para o deserto na fronteira com a Síria.
Outro grande teste seguir-se-ia pouco depois, quando o Curdistão, resolvido o problema do Estado Islâmico à sua porta, apostou numa jogada de alto risco, realizando um referendo pela independência. Bagdad avisou e cumpriu a promessa, esmagando essa tentativa pela força das armas com tamanha eficiência que as autoridades de Erbil rapidamente perceberam que não valeria a pena prosseguir com ela. O Governo central do Iraque era finalmente uma força considerável e a respeitar no seu próprio país.
Divididos
Os mais céticos dirão que não existe um povo iraquiano, existem vários povos que vivem no Iraque. Se Saddam Hussein presidia a um regime dominado por sunitas que mantinha a maioria xiita oprimida, a queda do ditador abriu uma caixa de pandora que provou ser quase impossível de voltar a fechar.
Os xiitas rapidamente tomaram o poder no país e este caiu num estado de guerra civil não declarada. Não passava um dia em que não se registava um ataque, um atentado ou um massacre. Milícias xiitas matavam sunitas e sunitas matavam xiitas a um ritmo alucinante, com detalhes de malvadez terríveis, como os casos em que terroristas matavam um homem depois ligavam do seu telemóvel para os seus familiares, dizendo ser as autoridades e indicando um local para virem recolher o corpo. Quando chegavam, matavam-nos também. Tornou-se hábito os iraquianos andarem com dois cartões de cidadão, um com um nome tipicamente xiita, outro com um nome sunita. Casais novos davam nomes neutros aos seus filhos. O medo e a morte eram constantes.
Pelo meio, as minorias religiosas sofreram terrivelmente, ou por mero ódio ao “infiel”, ou para os forçar a deixar o país, deixando vagas casas e bairros inteiros que seriam ocupados pelo mais forte, consoante o caso. Muitos não resistiram à pressão e saíram mesmo. Os cristãos, que andavam perto dos dois milhões, são agora menos de 300 mil, segundo algumas estimativas.
Para horror dos Estados Unidos, não obstante os muitos avisos dos especialistas, o vazio político foi preenchido por xiitas leais ao Irão, a grande potência xiita no mundo e antigo inimigo de estimação do Saddam Hussein. Os americanos perceberam que ao derrubar um ditador sanguinário que, na verdade, não lhes colocava grande ameaça tinham acabado por entregar de bandeja um país inteiro ao país do Médio Oriente que mais os odeia.
O ataque cirúrgico que em 2020 matou o líder da Guarda Revolucionária do Irão, Qassem Soleimani, durante uma visita ao Iraque é prova de que essa influência se mantém.
Apesar disto, o Iraque é agora um país muito mais pacificado. A eleição de Mustafa Al-Kadhimi, um político com credenciais de resistência e oposição a Saddam mas que teve ampla experiência internacional e não está demasiado próximo de qualquer partido ou fação religiosa no país ajudou a diminuir a tensão política e inter-religiosa entre sunitas e xiitas. A derrota quase definitiva do Estado Islâmico, primeiro no Iraque e depois na Síria também ajudou a restaurar a segurança interna. Ainda acontecem atentados esporádicos, mas nada que se pareça com a situação há uma década.
A morte de Soleimani foi uma mensagem para Teerão que parece ter sido ouvida. O Irão reclamou e lançou alguns ataques de retaliação, mas estes foram mais simbólicos do que outra coisa e a situação acabou por ficar por aí, mas os persas mostraram não estar dispostos a apostar a sobrevivência do seu regime numa guerra aberta com Washington.