Numa intervenção de improviso, na conferência comemorativa dos 50 anos do Expresso, António Guterres traçou um retrato do mundo com tintas carregadas a negro, onde elencou as encruzilhadas globais do presente.
"O Expresso nasceu quando Portugal estava num beco sem saída. E a imprensa livre tem hoje um papel igualmente essencial num mundo que está também num beco sem saída”, começou por sublinhar o secretário-geral da ONU, na celebração de um jornal em que também foi acionista fundador.
Elogiando o papel de Francisco Pinto Balsemão no processo que levou à fundação do semanário lançado há meio século, António Guterres lembrou que assistiu ao desenvolvimento dos acontecimentos do dia 25 de Abril de 1974 a partir da redação do Expresso em Lisboa.
O antigo primeiro-ministro partiu depois para a ilustração do retrocesso em diversos direitos humanos, que considera dar corpo ao “beco” para o qual o mundo se foi empurrando. Guterres disse estar “absolutamente convencido “ de que se hoje se tentasse fazer uma Declaração Universal dos Direitos Humanos “acabaríamos com um texto muito pior do que o que temos”, assinalando que 2023 marca também os 75 anos do texto aprovado pelas Nações Unidas.
O secretário-geral da ONU diz que “continua a não se vislumbrar a curto prazo” uma saída para a guerra na Ucrânia e considera que “o impacto no sofrimento do povo ucraniano e nas consequências na economia e bem-estar a nível global são hoje verdadeiramente devastadores”.
Guterres insistiu nos adjetivos negativos ao sustentar que é “ preocupante que estejamos a perder a guerra contra as alterações climáticas” apesar de saudar algum “êxito relativo” que significou o acordo global sobre biodiversidade conseguido recentemente em Montreal, apesar da biodiversidade estar “profundamente ameaçada”.
O líder da Organização das Nações Unidas sublinha que o mundo continua a “mover guerra à natureza, não tendo previsto que a natureza responde com força e às vezes com uma brutalidade que vai destruindo as condições de vida e capacidade de sobrevivência de muitas sociedades em circunstancias particularmente trágicas”.
Lembrando que houve consenso global para definir os chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – sucessores dos Objetivos do Milénio – para 2030, Guterres denunciou logo de seguida que, a meio caminho para essa meta, “é verdadeiramente dramático constatar que, em vez de os estarmos a cumprir, estamos a andar para trás em relação a muitos desses objetivos”.
O secretário-geral da ONU considerou ainda que a igualdade de género “está de novo andar para trás de uma forma particularmente chocante” no mundo, assinalando que é cada vez mais difícil introduzir as questões de género nas negociações de textos nas organizações internacionais.
“Há um renascer da capacidade do patriarcado se afirmar como a forma dominante de exercer o poder nas nossas sociedades, o que é preocupante”, constatou Guterres, que observa uma tendência global de recuo na democracia, liberdade de imprensa e na cidadania.