A prisão sul-africana de Westville, onde João Rendeiro está detido, era uma das que ia ser visitada em outubro do ano passado pelo relator especial das Nações Unidas contra a tortura.
A inspeção acabou por ser adiada por causa da Covid-19 e do aparecimento da variante Ómicron, precisamente na África do Sul, e embora não tenha sido ainda reagendada, deverá realizar-se este ano.
A informação é avançada à Renascença por Duarte Nuno Vieira, consultor forense do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que faz parte da equipa criada o ano passado para visitar várias prisões sul-africanas.
“A África do Sul era de facto a visita que estava prevista para outubro/novembro do ano passado, visita que foi adiada face ao contexto evolutivo da pandemia, porque naquela altura estava precisamente a aparecer esta nova variante da Covid-19 na África do Sul. E essa prisão ia ser, muito provavelmente, um dos estabelecimentos a ser visitado, pelo menos constava do plano inicial da visita”, revela Duarte Nuno Vieira.
O perito português não sabe ainda quando irá realizar-se a viagem, porque é “uma decisão que depende exclusivamente do relator especial das Nações Unidas para a tortura, o professor Nils Melzer, da Suíça, mas a perspetiva é que possa ocorreu durante este ano de 2022”.
Duarte Nuno Vieira, professor catedrático de Medicina na Universidade de Coimbra, presidente da Associação Nacional de Medicina e um dos mais conceituados peritos internacionais em medicina forense, explica à Renascença que a inclusão da África do Sul no plano de inspeções resulta do acumular de queixas que chegaram às Nações Unidas.
As denúncias “visam, obviamente, os problemas de sobrelotação prisional nalgumas prisões, alguma violência interna, alguma situação de condicionamento ou más práticas dos guardas prisionais em relação aos detidos, alguns problemas em termos de higiene e salubridade das prisões, carências de cuidados médicos”, refere o especialista.
Um tipo de queixas “que se inserem dentro daquilo que lamentavelmente se vai encontrando em várias partes do mundo, e desde logo em África, onde em muitos países as queixas são significativas”.
Em causa está a fiscalização de regras definidas depois da II Guerra Mundial, que abrangem todos os espaços de privação de liberdade, sejam prisões, centros tutelares de menores, estabelecimentos psiquiátricos de internamento compulsivo, ou centros para imigrantes clandestinos.
Em 1955, na sequência da II Guerra Mundial e das atrocidades que se cometeram na detenção de pessoas, foram criadas regras mínimas internacionais para as condições de detenção. Estipulam vários aspetos, desde a dimensão das celas em função do número de detidos que estão lá dentro, o número de horas de ar livre a que esses detidos têm direito, o tipo de cuidados médicos, cuidados dentários e psiquiátricos, a quantidade de litros de água a que um detido tem direito para beber e para a higiene pessoal, o tipo de alimentação, o vestuário, tudo isso está contemplado nessas regras”, sublinha Duarte Nuno Vieira.
A equipa da ONU analisa as condições concretas de detenção, mas estas visitas “permitem também prevenir desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais que nalguns países menos democráticos tendem a acontecer, promover e proteger a saúde dos detidos, assegurar que os detidos têm direito às garantias judiciais que estão previstas na lei, e muitas vezes restabelecer o contacto com as famílias, que às vezes nem sabem onde é que está o seu familiar”.
“O relator visita o que quiser, quando quiser, e à hora que quiser”
Nesta entrevista à Renascença, Duarte Nuno Vieira explica que estas visitas são programadas na sequência do volume ou gravidade das denúncias que chegam ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e têm as mais variadas origens: os reclusos e as suas famílias, as organizações não-governamentais (ONG) que trabalham nestas áreas e, por vezes, os próprios Governos, interessados em saber até que ponto cumprem a Lei.
As visitas têm que ser autorizadas pelos Estados, mas “uma vez autorizado a entrar, o relator especial e a sua equipa podem visitar qualquer centro de privação de liberdade, a qualquer hora do dia ou da noite, e sem dizer onde vai e quando vai. Nos dias em que permanecer no país, o relator visita o que quiser, quando quiser, e á hora que quiser, e nenhum centro de detenção lhe pode fechar as portas”. E que efeitos práticos têm estas inspeções? Para que servem os relatórios que estes peritos elaboram?
O especialista português acredita que ajudam a melhorar as condições de quem está privado de liberdade, porque “chamam a atenção da comunidade nacional e internacional para o que está a acontecer, e isso muitas vezes tem efeitos concretos”.
Duarte Nuno Vieira dá o exemplo da visita ao Uruguai, quando apresentaram ao Presidente José Alberto Mujica os resultados sobre duas das principais prisões do país.
“Ele ficou de tal forma espantando e emocionado com aquilo que lhe foi transmitido, que promulgou imediatamente um decreto presidencial mandando encerrar essas prisões. Mandou libertar os presos por delitos mais pequenos, transferindo os reclusos de delitos mais graves para outras prisões, e mandando depois construir duas novas prisões.”
“Como é que um ser humano resiste?”
Duarte Nuno Vieira trabalha para a ONU como consultor forense há quase 20 anos, e essa larga experiência no terreno leva-o a pensar muitas vezes “como é que um ser humano resiste a viver naquelas condições”.
“Muitas vezes, devido à sobrelotação, os detidos são obrigados a permanecer continuamente dentro das celas, sem terem acesso àquelas horas de ar livre que são fundamentais para o bem-estar físico e psíquico, muitas vezes celas sem iluminação, sem ventilação e de cuidados sanitários adequados.”
O consultor forense da ONU diz que “em África ainda é muito frequente, em muitas prisões, o sistema de balde onde o detido faz as suas necessidades para um balde à frente de todos os outros reclusos, às vezes sem papel para se limpar nem água para se lavar, ficando depois ali o balde a espalhar aquele odor que se imagina, apenas a contribuir para espalhar doenças contagiosas”.
“A falta de camas, com os reclusos a dormir no chão, por causa da sobrelotação, a falta de alimentação adequada. Tudo isto são coisas que se veem com frequência nas prisões em África, mas também noutros continentes.”
Duarte Nuno Vieira aguarda orientações do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, mas a próxima viagem deverá ser à África do Sul, aquela que esteve prevista para o final do ano passado.