Ligado à formação dos novos padres há mais de duas décadas, o padre José Miguel Barata Pereira esteve na Renascença para falar da sua experiência como reitor do seminário do Cristo Rei, nos Olivais, em Lisboa, da formação que é dada e do rigor com que o perfil psicológico dos candidatos é avaliado. Talvez por isso metade fique pelo caminho, refere.
No rescaldo da Cimeira sobre a Proteção de Menores, no Vaticano, vê no atual momento uma boa oportunidade de a Igreja “não esconder as coisas debaixo do tapete”. Também defende a comunicação de todos os casos de abuso sexual de crianças às autoridades eclesiais e civis, e a divulgação das estatísticas que haja em cada diocese.
O Papa alertou para a necessidade de se ser muito exigente na seleção e formação dos candidatos ao sacerdócio. Há hoje mais cuidado na seleção e na formação de quem se candidata a ser padre?
Sim. Com certeza que toda esta publicidade justa e boa nos obriga a não esconder as coisas debaixo do tapete, faz pressão e leva a tomarmos consciência dos cuidados e das atenções. Mas também gostava de dizer que não é um exclusivo de agora. Já se vem a caminhar neste processo há alguns anos.
Sobretudo desde Bento XVI?
Até antes. No meu tempo de seminarista, nos anos 1990, ainda que não fosse uma coisa para todos, já éramos sujeitos a um escrutínio de personalidade, psicológico, onde se essas coisas fossem identificadas eram depois mais atendidas. Claro que isso se generalizou.
Hoje penso que nos vários seminários do país, e posso falar pelo dos Olivais, ninguém é admitido à fase prévia ao Seminário -- portanto no tempo propedêutico, em Caparide -- sem uma análise ao perfil psicológico, não apenas no campo afetivo-sexual, mas nas várias dimensões da personalidade. E nos casos onde é identificada alguma necessidade de atenção, neste campo ou noutro, é mesmo proposto ao candidato se aceita fazer uma psicoterapia a par do caminho que vai fazer no seminário.
Essa proposta pode surgir no tempo propedêutico, onde se identificou, ou posteriormente, já na fase do seminário, quando a nível da direção espiritual, ou dos outros padres formadores, vão despertando a necessidade de trabalhar questões de relação, de autoestima, de equilíbrio afetivo, questões de autoridade ou autoritarismo, questões diversas que têm hoje, muitas vezes, a ver com a forma de crescimento e os ambientes de crescimento.
Essa psicoterapia é requerida pelos próprios candidatos?
Tem de ser. Ninguém pode ser imposto a uma psicoterapia, e a psicóloga que nos acompanha deixa isso muito claro, tem de haver uma liberdade do próprio. Agora, isso também servirá para a equipa formadora perceber se a pessoa está em verdade e com vontade de transparência, e de acolher todos os dinamismos de formação, ou se está fechada em alguns aspetos à formação, e isso será um alerta.
A pessoa tem toda a liberdade de não ter psicoterapia, mas se em última análise a equipa formadora não conseguir ter uma capacidade de compreensão e ficar com dúvidas, isso pode servir para a equipa dizer assim: 'Olha, não conseguimos dissipar as dúvidas, e portanto não podes continuar a avançar sem que a gente consiga dissipar isso.’
“Acho muito importante o Santo Padre chamar a atenção no documento final para a questão da sexualidade digital hoje”
Falou de autoritarismo e sobre um conjunto de fatores que são avaliados. Vai muito para lá da questão do equilíbrio, do ponto de vista sexual, ou outros?
Sim, porque a questão sexual muitas vezes potencia ou esconde outros dinamismos, e se os outros dinamismos não estão suficientemente amadurecidos, o sítio onde isto vai ter escape e vai rebentar muitas vezes é na questão sexual. Depois, acho muito importante o Santo Padre chamar a atenção no documento final para a questão da sexualidade digital hoje, que mina muitas vezes a força da vontade, gera algumas dependências.
Também aí têm de estar atentos ao acesso, através da internet, a sites de pornografia?
Com certeza. É assim, não vale a pena impedir a internet, a internet é uma realidade hoje, eles nascem quase mergulhados na internet, portanto não se trata aqui de impedimentos ou de diminuição da autonomia. Trata-se é de acompanhar e ir ajudando o próprio a perceber que liberdade é que vai ganhando em relação, por um lado, à dependência da internet e depois à dependência em relação a sites que possam ser desordenados ou provocar afetos desordenados.
“É infundado associar o celibato, seja como causa, seja até como condição de risco"
Os candidatos ao sacerdócio também aprendem ao longo da sua formação a lidar com a questão do celibato, que é inerente a ser padre. Há quem defenda que devia deixar de ser obrigatório. Acha que poderia ter um efeito positivo nos casos de abusos?
Creio que é infundado associar o celibato seja como causa, seja até como condição de risco. Porque nós verificamos que a maioria das situações de abuso não são praticadas por celibatários, e que aquelas realidades que muitas vezes se aduzem como possibilidade de risco para um celibatário, acontecem também nos casais ou noutras pessoas não casadas, solteiros até, mas sexualmente ativos. Ou seja, a questão da solidão é uma realidade em muitos casais, e mais ou menos na mesma faixa etária. Às vezes também há casamentos que logo à partida quando começam a viver juntos aquilo dá para o torto, mas os primeiros anos normalmente são anos de alegria, de realização, depois vêm os filhos, etc. E depois é na meia-idade, quando os filhos começam a sair, quando têm de ficar os dois e a intimidade já não responde, que se geram os espaços de solidão.
Mas a meia-idade já não está no âmbito dos jovens que estão a ser formados para ser sacerdotes...
Eu estou a dizer a idade média dos que hoje são acusados de abuso. Parece que, dentro da Igreja, será à volta dos 39 anos, a idade média. Claro que há muitos casos de gente mais antiga. E um estudo que eu li, num mestrado que está disponível na internet, indica os 41 anos.
Portanto, o compromisso do celibato no processo de formação pode estar consolidado, mas mais à frente, na prática sacerdotal mais avançada, nos 40 anos, a questão vai colocar-se?
Claro, como acontece com os casais, ou como acontece com os solteiros que não se casam.
E por isso é que o Papa também alerta e nas suas orientações fala da formação permanente e acompanhada dos sacerdotes ao longo da vida. Isso já existe?
Existe. Aliás, o Conselho Presbiteral aqui da nossa Diocese de Lisboa há umas sessões atrás centrou-se nesta questão da formação permanente.
Como é feita essa formação permanente?
Além de jornadas de reflexão e de aprofundamento de temas variados, seja de ordem pastoral, ou da identidade ou espiritualidade do sacerdote. Depois a oferta também de momentos de enraizamento e recentramento na fé, porque às vezes os ritmos levam-nos, aos sacerdotes, a não valorizar e não cuidar suficientemente da espiritualidade e da sua consagração a Cristo. Depois a insistência para que os padres não estejam desacompanhados, não se sintam solitários, que haja acompanhadores, que tenham diretores espirituais, momentos de partilha em conjunto, que tenham situações até de lazer, ou de retiro, onde possa haver confiança para a partilha, para que ninguém se vá fechando em si próprio à procura de compensações, e que depois também haja uma consciência cada vez maior de uma Igreja que é toda ela comunidade crente, onde os padres não são uma classe ou uma casta separada, mas são fiéis no meio do povo, e que também com essas pessoas de outras vocações, das suas comunidades, dos movimentos que acompanham, que haja uma salutar convivência humana que permita esta harmonia.
“50% dos candidatos [a padres] avançam por outros caminhos”
Ao longo do processo de formação nos seminários quantos alunos ficam pelo caminho?
Não sei uma percentagem fixa, mas posso dizer que à entrada do ano propedêutico nos Olivais temos tido entre dez e 20, 24 candidatos, de várias dioceses. E à saída, também das várias dioceses, temos tido entre sete e dez ordenações. Direi que uns 50 por cento dos candidatos que entram no propedêutico avançam, outros avançam por outros caminhos.
E atribui isso a este rigor no acompanhamento?
Não exclusivamente. Porque eu acredito que, quando há verdade, a saída não é, necessariamente, uma exclusão, é uma descoberta de que afinal as motivações se podem recumprir e concretizar noutros caminhos.
“Que o compromisso não seja 'eu aguento' sem fazer asneiras, mas seja 'eu experimento', o Senhor chama-me a esta forma de amar e de cuidar. O celibato só se pode assumir assim”
Em relação às orientações que saem da cimeira do Vaticano, o que é que podemos esperar que aconteça na prática nos seminários portugueses, na Igreja portuguesa?
Bem, algumas (medidas) estão prometidas pelo cardeal patriarca que lá esteve, e que indicou que antes de Abril vai rever as práticas que foram acordadas entre os bispos em 2012. É cada vez mais uma necessidade dos bispos, e de todos os fiéis, estarmos despertos e denunciarmos, apresentarmos às autoridades religiosas e civis quando, de facto, é caso disso, e não desvalorizar o testemunho das possíveis vítimas, ou das reais vítimas. Penso que isso é um desafio. Depois, no seminário dos Olivais, é continuarmos toda esta dimensão, seja do apoio psicólogo, seja da proposta formativa que valorize a visão cristã da antropologia e da sexualidade, a dimensão do celibato como uma proposta esponsal, não uma renúncia à sexualidade, mas uma proposta de esponsabilidade e de paternidade que integra o corpo, a carne, o espírito e a alma, numa harmonia diferente da conjugalidade, mas não menos esponsal nem menos paterna. Portanto, que o compromisso não seja 'eu aguento' sem fazer asneiras, mas seja 'eu experimento', o Senhor chama-me a esta forma de amar e de cuidar, e isto basta'. E porque basta eu posso dizer 'agora faz isto para sempre'. O celibato só se pode assumir assim, depois de uma convicção profunda.
“Procuramos orientar para que haja comunicação às autoridades eclesiais e civis”
Mas, ainda relativamente ao que pode mudar na Igreja em Portugal, para além do reforço das diretrizes seria importante revelar estatísticas?
Creio que sim, sobretudo para evitar a suspeição, sem cair no atropelo das vítimas e das famílias, sem cair no judicialismo de apresentar estatísticas antes dos casos estarem confirmados em juízo, fechados. Mas, uma vez fechados, uma vez verificados e condenados, sim.
Qual é o procedimento se acontece um problema no caso do seminário, é de comunicar?
Estamos a falar de um seminário onde são todos maiores, mas pode ter havido situações antes. Portanto, é comunicar ao Bispo, ver com o próprio maior a possibilidade de ele ir e comunicar às autoridades, ajudá-lo a dizer à família, porque muitas vezes nem na família se soube. Ou então se foi da família, como é que ele quer lidar com isso, porque às vezes as situações podem ser da família. E sem ultrapassar, procuramos orientar para que haja comunicação às autoridades eclesiais e civis.
Já lhe passaram casos desses pelas mãos?
Já tive que acompanhar nessa situação e dar essas indicações.