Da freguesia de Asseiceira, no concelho de Tomar, à Herdade do Rocim, entre os concelhos de Cuba e Vidigueira, no Alentejo, são mais de 250 quilómetros.
Sem olhar a distâncias, e com vontade de mostrar a sua profissão, José Miguel Figueiredo fez-se à estrada para mostrar ao mundo, durante a iniciativa “Amphora Wine Day”, uma atividade, toda ela artesanal, que pode estar em risco de se perder.
O empresário fabrica talhas em barro, usadas para vinho ou azeite, com recurso a uma técnica que tem mais de 300 anos e que aprendeu no seio familiar.
“Estou nesta atividade quase desde que nasci”, conta, em tom bem-disposto, à Renascença.
“O meu pai já fazia talhas, o meu avô, o meu bisavô, na minha família estamos nesta atividade desde 1837. Aprendi esta técnica com o meu pai e neste momento há muito pouca gente a fazer desta forma – se calhar três ou quatro pessoas em Portugal”, assegura.
Na empresa familiar chegou a ter uma dezena de funcionários, mas entre 2000 e 2005, o negócio passou por uma crise que quase levou ao encerramento da olaria. Felizmente, as coisas mudaram e a crescente procura deste produto por parte das grandes adegas e a transformação do forno de gás para lenha, tornaram o negócio rentável.
Para receber o vinho, a talha precisa de um revestimento que a torne menos permeável. O método tradicional de impermeabilização chama-se “pesga” ou a “pesgagem” da talha.
“Depois de cozido o barro, a talha leva um banho por dentro, com um produto que fazemos com pez louro, cera de abelha e azeite”, explica-nos o oleiro. Feita uma espécie de “calda bem fervida”, a talha é “toda barrada com essa calda que serve para a impermeabilizar”, refere.
Um processo que demora o seu tempo. Por exemplo, “uma talha com 90 centímetros demora cerca de três semanas a um mês a ser feita”, indica José Miguel, e custa “à volta de 190 euros”.
Inteiramente manual, este é um investimento que compensa, segundo o empresário, já que “uma talha “pesgada” dura pelo menos 25 anos”.
O que parece ter o tempo contado é a atividade em si. José Miguel Figueiredo queixa-se da falta de mão-de-obra. “Não há jovens que queiram aprender a fazer isto e qualquer dia esta profissão perde-se”, lamenta, ao mesmo tempo que defende “mais apoios”, nomeadamente por parte dos centros de emprego.
“É preciso que as pessoas comecem a olhar para isto de forma diferente, pois é um trabalho tão digno como qualquer outro”, considera.
Para os jovens fica também uma mensagem: “não tenham vergonha de andar com as mãos sujas de barro”.
Vinho de talha. “Faz parte do DNA” do Alentejo
Desenvolvido pelos romanos, o vinho de talha chegou a Portugal há cerca de dois mil anos. Atributo do Alentejo, a região sempre soube preservar, e passar de geração em geração, esta prática de vinificação tradicional.
A técnica de fazer vinho em grandes vasilhas de barro, as ânforas ou talhas está enraizado nos costumes culturais da região da Vidigueira, no baixo Alentejo, e nos hábitos dos alentejanos.
“Aqui na região, isto é mais que uma tradição, faz parte do DNA destas gentes e desta terra. Toda a gente em sua casa tem uma ou duas talhas para produzir o seu próprio vinho”, afirma à Renascença, o enólogo Pedro Ribeiro, diretor-geral da Herdade do Rocim, localizada entre a Vidigueira e Cuba, no distrito de Beja.
O espaço voltou a abrir a adega e as ânforas para desvendar as novas colheitas, tendo recebido cerca de 30 produtores portugueses e de várias regiões do mundo que se juntaram, no “Amphora Wine Day”, para mostrar a sua autenticidade e celebrar a tradição de S. Martinho.
Que vinho é este?
Cada vez com mais apreciadores, o vinho de talha português – candidato a Património Cultural e Imaterial da Humanidade – tem características muito específicas.
“Uma delas é a forma da talha que promove um movimento constante do vinho, ou seja, remexe a borra do vinho e produz um vinho mais cremoso, com mais estrutura”, explica Pedro Ribeiro. Outro aspeto importante, acrescenta, “é a micro-oxigenação, pois a porosidade da talha permite que haja pequenas entradas de oxigénio, fazendo com que o vinho fique pronto a beber, de forma mais rápida”.
O vinho de talha esteve a quase a desaparecer, mas, nas últimas décadas, conquistou novos consumidores. Também muitos produtores adotaram esta técnica de fermentação feita 100% em talha de barro.
“Até recentemente, o vinho de talha não era um vinho engarrafado, era um vinho para consumo local, mas alguns produtores começaram a engarrafá-lo, e tem sido um sucesso muito grande em Portugal, mas também noutros países, esta prática, este nicho, tem crescido exponencialmente nos últimos anos, agregando valor à região”, afirma o enólogo.
Portugal (Alentejo), Geórgia e Itália são os países que se destacam na produção de vinhos de talha, tendo, por isso, marcado presença no evento “Amphora Wine Day”. Para a Herdade do Rocim, em concreto, o vinho de talha representa um total de cerca de 200 mil euros na produção global, com 10 mil garrafas de branco e outras 10 mil de tinto a serem disponibilizadas no mercado nacional e internacional.
Sobre a qualidade do vinho, Pedro Ribeiro refuta a ideia de que tenha um curto tempo de vida – de resto, uma ideia que existia apenas porque estes vinhos eram consumidos diretamente da talha e não engarrafados.
“Hoje em dia, não é assim. No nosso caso, começámos a engarrafar em 2011, 2012 e temos vinhos que têm agora 10 anos e estão ótimos”, assegura.
“São vinhos com castas. Pelo menos, aqui na herdade tentamos que assim seja, com variedades de uva da região, que são perfeitas para este tipo de vinho”, conferindo “uma acidez e uma frescura, que em contacto, mais os taninos, produzem vinhos com grande capacidade de envelhecimento”, nota o enólogo.
A Herdade do Rocim, no Baixo Alentejo, com cerca de 120 hectares, dos quais 70 são de vinha e 10 de olival em regime biológico, vende anualmente um milhão de garrafas, entre Portugal e mais 39 países. Dispõe de um restaurante, enoturismo e, no próximo ano, vai investir na construção de um hotel rural.