Como os votos brancos e nulos podem ajudar o PS a chegar à maioria absoluta
19-09-2019 - 17:21
 • Inês Rocha

Considerados por muitos um “voto de protesto”, os votos brancos e nulos podem favorecer os partidos maiores. Carlos Jalali, especialista em sistemas políticos, tira todas as dúvidas sobre as “regras do jogo” do sistema eleitoral português.

Sabia que a percentagem de votos que dá maioria absoluta a um partido varia de eleição para eleição e que pode mesmo ser inferior a 39%? E que quanto maior for a percentagem de votos brancos e nulos, mais fácil se torna para um determinado partido chegar à maioria absoluta?

E sabia que há uma maneira de aproveitar os votos “deitados ao lixo”, ou seja, que não se traduzem em mandatos - mas que essa solução não é praticada em Portugal?

Quais as consequências da redistribuição de deputados nas próximas eleições legislativas, com Viseu e Guarda a perderem um deputado para Lisboa e Porto?

A reforma do sistema político foi um dos temas do debate da rádio entre os líderes dos seis partidos com assento parlamentar esta semana.

Nesse debate, transmitido pela Renascença, a Antena 1 e a TSF, o líder do PSD propôs círculos eleitorais mais pequenos como forma de aproximar eleitores e candidatos. Já André Silva, do PAN, disse preferir exatamente o contrário: reduzir os círculos de 22 para 9, correspondentes às Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos (NUT).

Carlos Jalali, professor da Universidade de Aveiro e especialista em sistemas políticos, explica à Renascença as “regras do jogo” do sistema eleitoral português.

43% ou 39%? Afinal, que percentagem de votos é necessária para um partido obter maioria absoluta?

Na campanha para as legislativas de 1985, Almeida Santos e o PS decidiram pedir aos eleitores maioria absoluta. Para isso, fizeram cartazes com uma meta – 43% (que consideravam a fasquia mínima para a maioria parlamentar) - mas conseguiram pouco mais de 20%.

Em 1999, o PS de Guterres conseguiu mais do que isso - 44,1% dos votos. Ainda assim, não alcançou a almejada maioria absoluta – ficou com 115 deputados, exatamente metade dos assentos na Assembleia da República.

34 anos depois, António Costa afirma e volta a afirmar que a maioria absoluta não é um objetivo do PS – e que é até “virtualmente impossível” de alcançar.

No entanto, o diretor da Eurosondagem, Rui Oliveira e Silva, afirmou, num artigo no Público, que, tendo em conta os números das sondagens, poderá bastar ao PS ter 39% dos votos para atingir esse objetivo.

Também Pedro Magalhães, em entrevista ao Observador, afirmou que as intenções de voto com que o PS tem aparecido nas sondagens, entre 38% e 43%, são “compatíveis com uma maioria absoluta”.

Mas afinal, qual a percentagem necessária de votos para se alcançar a maioria absoluta? À Renascença, Carlos Jalali diz que não é possível adivinhar valores antes da ida às urnas.

“A percentagem de votos que um partido precisa para obter maioria absoluta vai sempre variar consoante a distribuição geográfica dos votos e como os votos se dividem pelos vários partidos, e a mesma percentagem pode dar resultados completamente diferentes.”

É sempre possível traçar cenários, extrapolando os resultados das sondagens – terá sido esse o exercício de Oliveira e Costa. No entanto, a percentagem necessária para uma maioria absoluta, em cada eleição, pode variar muito. “É possível um partido obter maioria absoluta com 39% ou menos, até”, refere Jalali.

Como é possível um partido ter maioria absoluta com menos de metade dos votos?

Para perceber como se chega a uma maioria absoluta em Portugal, há que entender como funciona a conversão de votos em mandatos – um processo que é baseado num sistema eleitoral específico.

“Um sistema eleitoral é um conjunto de regras que converte votos em mandatos”, explica Carlos Jalali. “Transforma os votos em deputados. O nosso sistema é de representação proporcional. A lógica é que o número de mandatos é proporcional aos votos que o partido obtém, mas não é perfeitamente proporcional”, explica.

“Não é porque, por um lado, usa a fórmula de Hondt, que não é a mais proporcional das fórmulas, mas principalmente por dividirmos a distribuição dos deputados pelos distritos. Não temos um único círculo, temos a eleição por distrito e isso afeta bastante o grau de proporcionalidade”, diz o especialista.

“Há distritos que só elegem dois deputados e havendo só dois deputados para eleger, só dois partidos, no máximo, podem conseguir representação parlamentar. Partidos que tenham 10%, 15% dos votos, será praticamente impossível conseguirem representação.”

Há votos que valem mais que outros?

Jalali adapta uma citação do escritor britânico George Orwell para explicar como é possível um partido ter maioria absoluta com menos de metade dos votos. "Todos os votos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros", ironiza, numa referência ao famoso livro de Orwell, "O Triunfo dos Porcos".

Também no sistema eleitoral português, “há três conjuntos de votos que têm menos peso na representação final do Parlamento”, explica o especialista. “Os que valem menos são os brancos e nulos – são contabilizados como os outros, mas não se traduzem em mandatos. Se os tirarmos, a percentagem de votos válidos nos partidos aumenta.”

O segundo conjunto a tirar deste “bolo” é o de votos em partidos que não conseguem garantir representação parlamentar. “Esses votos também não vão ter consequência na distribuição de mandatos”, ressalta Jalali.

Por fim, há que retirar os votos em partidos que conseguem eleger deputados mas não em todos os distritos. “Um partido que tenha 10% dos votos tanto em Portalegre como em Lisboa, em Lisboa vai conseguir eleger bastantes deputados, mas em Portalegre não consegue eleger nenhum, portanto aqueles 10% saem da contabilidade, não têm impacto na conversão de votos em mandatos. Têm uma leitura política, mas não tem impacto.”

O resultado de todo este processo é um favorecimento dos partidos maiores, que conseguem eleger deputados sobretudo nos círculos eleitorais mais pequenos – daí a famosa definição de "voto útil".

Veja o número de deputados que cada círculo eleitoral elege, em Portugal Continental. A Madeira elege seis deputados, os Açores cinco e os círculos da Europa e resto do mundo elegem dois deputados cada.

Então os votos brancos e nulos podem favorecer os partidos maiores?

Sim, responde Carlos Jalali, e dá um exemplo “extremo”.

“Numa eleição em que houvesse 95% de votos brancos e nulos, 5% dos votos ficava com o Parlamento todo, com 100% dos mandatos. É um cenário irreal, mas quanto mais dispersão houver em partidos que não conseguem representação parlamentar, e quanto mais brancos e nulos, mais fácil se torna conseguir a maioria absoluta.”

Nas últimas legislativas, registaram-se 2,09% de votos em branco e 1,66% de votos nulos – 3,75%, ao todo. No entanto, as sondagens têm apontado para uma subida destes valores nas eleições do próximo dia 6 de outubro, com os inquéritos de opinião a apontarem 5% a 8% destes "votos de protesto" nas intenções de voto declaradas.

O facto de o segundo partido ter uma percentagem muito inferior à do primeiro facilita a maioria absoluta?

A tese de que um PSD enfraquecido leva o PS a ter uma maioria absoluta com grande facilidade é refutada por este especialista em sistemas eleitorais. Carlos Jalali defende que esse pode ser um fator importante, mas não é o único.

“A percentagem de votos que um partido precisa para obter maioria absoluta vai sempre variar consoante a distribuição geográfica dos votos e pelos vários partidos, e a mesma percentagem pode dar resultados completamente diferentes”, explica.

Assim, a fragmentação da direita, por si só, poderá não ser potenciadora de uma maioria do Partido Socialista.

Para explicar, Jalali dá um exemplo prático: “Vamos supor que há uma eleição que acaba com 19% de votos brancos e nulos e para partidos que não conseguem representação parlamentar. Imaginemos que o partido mais votado tem 37% e o segundo mais votado tem 36%. A diferença entre eles é de apenas um ponto percentual. Neste cenário, o partido com 37% ficava com maioria absoluta. Ficava com 118 deputados e o de 36% ficava só com 108. Um ponto percentual dava uma diferença de 10 deputados e uma maioria absoluta”.

Já no mesmo cenário, mas com o segundo partido a ter apenas 20% dos votos, e com essa percentagem a ir para os mais pequenos – com o terceiro partido a conseguir 16% dos votos, por exemplo – o número de mandatos para o mais votado diminui. O primeiro partido fica com 117 deputados, não perde a maioria absoluta mas também não ganha força - pelo contrário.

"A diferença aumenta, porque o segundo ganha apenas 60 deputados, mas não aumenta a maioria absoluta ao primeiro”.

Esse efeito poderá ter significado, no entanto, em círculos mais pequenos, como Portalegre, que tem apenas dois deputados.

“O que eu frisaria é que a percentagem de votos necessária para ter uma maioria absoluta diminui à medida que aumentam os votos brancos e nulos e à medida que aumentam os votos em partidos que não vão ter representação parlamentar”, explica Jalali.

O que muda com a redistribuição de mandatos, com Viseu e Guarda a perderem um deputado cada para Lisboa e Porto?

O número de deputados que cada círculo eleitoral tem direito a eleger, em cada sufrágio, é proporcional à população residente nesse distrito. Assim, a diminuição da população em dois distritos do interior do país levou a que o número de deputados também diminuísse.

Para Carlos Jalali, a mudança favorece “muito ligeiramente” os partidos mais pequenos, tornando mais fácil eleger nos círculos eleitorais maiores – Lisboa e Porto.

“Nas eleições anteriores, um partido que tivesse menos de 1,06% dos votos não conseguiria eleger nenhum deputado em Lisboa. Se conseguisse mais do que 2,08%, tinha de certeza deputados."

Com o aumento de um deputado, as percentagens passam a ser de 1,04% e 2,04%, uma diferença pouco expressiva. "Reduz o limiar que um partido precisa de atingir para eleger deputados, mas não é brutal.”

Por outro lado, a mudança “torna muito mais difícil eleger deputados nos distritos que os perderam", adianta o professor da Universidade de Aveiro. "Nas eleições anteriores, na Guarda, um partido abaixo de 10% não conseguia representação, acima de 16% conseguia de certeza. Agora é preciso ter 20% para eleger um deputado.”

Este aumento de deputados em Lisboa e no Porto, conclui Jalali, "torna ligeiramente mais fácil eleger deputados onde já era mais fácil, mas torna muito mais difícil eleger nos distritos que perderam.”

O que se poderia fazer com os votos “deitados ao lixo”? Seria possível criar um círculo eleitoral nacional, para aproveitar estes votos?

Para Carlos Jalali, este é um debate “que deve mobilizar os cidadãos como um todo”.

Ter um círculo nacional que aproveite os votos não utilizados nos vários distritos “tem vantagens, mas tem também aspetos que a literatura considera negativos”, explica.

“A vantagem é somar uma maior representação das vontades dos eleitores, e evitar que as preferências de alguns eleitores não se traduzam em mandatos. Isso é bom. A desvantagem é que aumenta a fragmentação parlamentar. Teremos Parlamentos com mais partidos, com grupos parlamentares mais pequenos e, provavelmente, com uma maior diversidade ideológica, o que tem consequências em termos da capacidade de governabilidade no sistema”, diz o especialista.

“Será certamente muito mais difícil ter maiorias estáveis, forçará um tipo de entendimento entre vários partidos, algo que em alguns países tem resultado melhor, noutros nem tanto”, remata.

Caso essa mudança ocorresse, “toda a dinâmica da política nacional mudaria”, assevera. É por isso que Jalali considera este um tema que merece muita reflexão, para perceber “se aquilo que priorizamos é a representatividade ou a governabilidade”.