“Panama Papers”. Separar causas e efeitos?
10-04-2016 - 13:46
 • José Bastos

“É preciso aumentar a investigação”, defende Álvaro Almeida. “O problema é global e resulta do modelo dominante”, diz Nuno Teles.

Desde 2009, quando o G20 anunciou o fim do sigilo bancário, a evasão fiscal terá aumentado 25% em todo o mundo. A tese é de um professor de Berkeley, da “escola Piketty” e autor do livro “A Riqueza Oculta das Nações. Gabriel Zucman aponta a ineficácia das medidas da OCDE e União Europeia nos últimos seis anos.

Nos números de Zucman, a riqueza mundial oculta, em vez de diminuir aumentou e chega aos 7,6 biliões de dólares – 8% da riqueza global. Gabriel Zucman foi citado no programa “Conversas Cruzadas” desta semana.

“Este caso ‘Panama Papers’ não é um escândalo, no sentido em que não há um só tema. Identifico diferentes questões e sugiro a análise separada. Se misturarmos não chegamos a conclusão nenhuma”, é o ponto prévio de Álvaro Santos Almeida.

“Um tema é a concorrência fiscal. Distintas fiscalidades em diferentes países. Aqui nada de novo. Não é um problema do Panamá. É problema do Panamá, da Irlanda, da Holanda do Luxemburgo ou de Portugal ou Espanha na questão do preço dos combustíveis”, diz o professor de economia da Universidade do Porto.

“Introduzir na análise este elemento de o Panamá ter uma tributação inferior à de outros países é desviar o tema para o que de menos relevante existe no contexto da informação agora divulgada”, defende.

“A segunda questão, a mais importante, é a diversidade e universalidade da corrupção. Até agora, estão envolvidos, pelo menos, 140 políticos. Políticos da Rússia, China, Paquistão, de todo o mundo. O que ficamos a saber – desconfiávamos, mas agora temos a certeza – é que há corruptos em todo o mundo, independentemente do regime ideológico em que se inscrevam”, afirma Álvaro Santos Almeida.

“O Partido Comunista Chinês está envolvido. Como está o senhor Putin. Como está o Presidente do Paquistão, como está, indirectamente, até o primeiro-ministro do Reino Unido. O grau tão generalizado desta corrupção significa que estão errados todos aqueles que tendem a associar esta prática à pessoa A ou pessoa B, ao partido A ou partido B”, indica o economista numa referência tácita à convivência, nas listas do “Panama Papers”, de líderes com impecáveis credenciais democráticas ao lado de ditadores. Da indistinta “harmonia ideológica” da direita com esquerda nestes perturbadores, mas não surpreendentes, papéis do Panamá.

“Caso representativo é o das suspeitas sobre oito membros do actual e anterior politburo comunista chinês e do dirigente, entretanto caído em desgraça, Bo Xilai”.

Nuno Teles. “Um dos problemas é a crescente desigualdade mundial”

“Aqui a corrupção é algo inerente à actividade política, não querendo eu dizer que todos os políticos são corruptos. Não se interprete isso. O que estou a dizer é que há casos em que a corrupção e o exercício do poder político surgem associados”, pontua Álvaro Santos Almeida.

Neste ponto, Nuno Teles, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, interpela o professor da Universidade do Porto: “Quase se poderia dizer, então, que a consequência lógica desse raciocínio seria “naturalizar” a corrupção?”.

“Não. O raciocínio é o contrário”, contesta Álvaro Santos Almeida. “É o de que uma forma de reduzir a corrupção é limitar-se o papel e a intervenção dos políticos nas questões económicas. Se não lhes dermos oportunidade, eles não são corruptos”.

“A outra questão que eu levantava é que não vi demonstrada qualquer corrupção do sector privado nestes ‘Panama Papers’. O que vi foi uma lista de accionistas de empresas no Panamá”, aponta o economista.

“Se me disserem que o Presidente do Paquistão ou membros do PC chinês têm empresas no Panamá, eu desconfio, porque não antecipo objectivos legais para serem donos de empresas no Panamá. Quanto a uma empresa privada não desconfio. Ter uma empresa no Panamá é uma actividade perfeitamente legítima”, sublinha o antigo quadro superior do FMI, em Washington.

Já Nuno Teles, especialista na área da financeirização da economia mundial, acentua as consequências dos aparentes paradoxos do capitalismo globalizado.

“Um dos problemas que está a montante destes escândalos é a crescente desigualdade mundial. É o que o economista Thomas Picketty tem chamado a atenção: a concentração de riqueza numa fracção muito pequena da população mundial, uns 0,1%. A desigualdade é de tal ordem que este 0,1% da população desloca a sua riqueza para estes paraísos fiscais”, diz Nuno Teles.

“Na verdade este é um problema de fuga de capitais dos países. Quando vemos estimativas do economista Gabriel Zucman apontar para portugueses terem depositados 69 mil milhões de euros em paraísos fiscais, estamos a falar de capital que não está a ser investido em Portugal. Isto é um problema. É uma fuga de capitais que provoca o empobrecimento que, em última análise, dá origem aos desequilíbrios macroeconómicos que estiveram na origem da crise financeira”, defende o investigador da Universidade de Coimbra.

Álvaro Santos Almeida: “Circulação de capitais é alimento do crescimento económico”

Álvaro Santos Almeida sustenta que a livre circulação de capitais é o alimento do crescimento à escala global. “Não é um problema. É a base do crescimento da economia mundial, porque os capitais dirigem-se para onde são mais produtivos. Se não fosse assim a China não se tinha desenvolvido ou Portugal não se tinha desenvolvido nos anos 60”, observa.

“Portugal desenvolve-se porque recebe capitais estrangeiros. Não vale a pena dizer que estamos abertos à entrada de capital estrangeiro, mas quando se trata de saídas de capital, aí já não queremos”, diz Álvaro Santos Almeida.

“Neste debate é preciso separar várias questões e não as misturar. Uma questão é haver corrupção. Outra é a fuga ao fisco, a evasão fiscal. Outra ainda é haver impostos mais baixos no Panamá. Totalmente diferente é ainda haver o direito à privacidade, ao sigilo”, enfatiza o ex-quadro superior do FMI.

“É perfeitamente legítimo, por exemplo, eu ter uma empresa que vai constituir uma ‘joint venture’ com uma empresa chinesa para actuar em Angola. Por que razão a sede não pode estar no Panamá, se o Panamá me garante, por exemplo, que os meus concorrentes não podem descobrir que tenho essa empresa? É ou não legítimo poder proteger dos meus concorrentes o facto de ter uma parceria com os chineses? Ou então acaba-se com a privacidade dos segredos de negócios? É esse o mundo que se quer?”, questiona Álvaro Santos Almeida.

Nuno Teles contrapõe: “Acho que há aí uma confusão entre privacidade pessoal, não ser público, o meu sigilo fiscal a minha declaração de rendimentos, outra coisa é, nesta questão do Panamá Papers saber por que razão era sigiloso. E era por dois motivos: fuga ao fisco ou corrupção”, defende o académico.

Nuno Teles. “Concorrência fiscal é corrida em direcção ao fundo”

“Aqui há um problema: o capital que se pode deslocar e as pessoas não”, sublinha Nuno Teles com Álvaro Santos Almeida a contraditar com o exemplo PSI 20. “A realidade é que a maior parte das empresas cotadas na Bolsa de Lisboa são detidas por accionistas com sede fiscal na Holanda. Esta é a realidade”, afirma o professor da Universidade do Porto.

Nuno Teles objecta: “Mas esse é o problema. O problema da concorrência fiscal – e estamos a falar dos rendimentos de capital, não dos rendimentos do trabalho – é uma corrida em direcção ao fundo. No limite não vamos ter qualquer taxação. Na minha opinião há um problema a priori: quando se fala do Panamá ou da Suíça há a questão da livre circulação de capitais. O ‘não perguntar nada a ninguém’”, afirma o especialista na financeirização da economia.

Álvaro Santos Almeida discorda. “Mas esse é o cenário alternativo. A única forma de evitar com a concorrência fiscal é acabar com a livre circulação de capitais. Só que a livre circulação de capitais está na base do desenvolvimento da economia mundial nos últimos 200 anos. Acabar com a livre circulação de capitais será acabar com o desenvolvimento da economia mundial”, defende o economista.

“Não estou de acordo”, contraria Nuno Teles. “O período de crescimento mais dinâmico da economia mundial – o pós-Segunda Grande Guerra – é um período de forte controlo de capitais, contrariamente ao que antes tinha acontecido dando origem à Grande Depressão”, afirma o investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

A tese não colheu junto de Álvaro Santos Almeida. “Não concordo. A livre circulação de capitais está na origem de todo o crescimento económico mundial”, defende. Mais regulação, mais controlo é a receita quando, por exemplo, bancos como o HSBC (caso Falciani) são acusados de terem produtos para os clientes fugirem ao fisco? Repto para Nuno Teles.

Álvaro Almeida. “Vale a pena esforço mundial para a investigação criminal”

“É fundamental apostar na transparência. É preciso ter acesso à informação do que os grandes bancos estão a fazer. Não é apenas um banco ou dois. É um problema sistémico da banca internacional, sobretudo na área da gestão das fortunas. E, depois, temos de repensar esta questão dos fluxos a nível internacional, sobretudo, no plano da taxação. No caso nacional, acho que devemos começar pelo nosso paraíso fiscal. o offshore da Madeira”, diz Nuno Teles.

Mas não é excessivo associar um centro de negócios regulamentado a este debate? O investigador do CES Coimbra defende que a questão deve também ser analisada num plano moral.

“É um centro de negócios na Madeira. Não tenho dúvida de que terá mais supervisão que o Panamá. Agora lembro também as questões que se levantaram à volta do número de empresas e de negócios quando o maior importador e exportador nacional era uma empresa que tinha dois funcionários no ‘offshore’ da Madeira”, afirma.

“Na verdade não havia qualquer mercadoria a passar por ali. Nós temos um problema. Acho que neste debate há um lado, se quiser, moral onde se tem de dar o exemplo”, afirma o investigador do CES.

“O problema é global e tem a ver com este actual modelo dominante. Um modelo de liberalização de fluxos de capitais e a questão da desigualdade. Aí os sistemas fiscais têm um papel importante no sentido de corrigir as desigualdades”, conclui Nuno Teles.

Álvaro Santos Almeida encerra o seu particular círculo de análise acentuando duas ideias: nenhum país sozinho resolve o(s) problema(s) e só um esforço, entre todos, de cooperação internacional pode apontar soluções.

“Um dos temas que faltava referir é a questão do sigilo. Aí sim, podemos trabalhar, mas o Panamá não é o pior. A Suíça ou os Estados Unidos têm estados onde o quadro é muito mais grave. A única coisa que acho valer a pena um esforço mundial – não pode ser apenas um só país – é em reforçar a troca de informação para fins de investigação criminal”.

“Aí sim! É preciso reforçar a troca e penalizar os estados que não colaboram para fins criminais para acabar com actividades ilegais, incluindo a corrupção”, conclui Álvaro Santos Almeida, numa emissão de “Conversas Cruzadas” onde se discutiu também a presença do presidente do Banco Central Europeu, Mário Draghi, em Lisboa e a ajuda do FMI a Luanda.