“Escrever é um exercício um pouco duro”, confessa José Carlos Barros. O vencedor do Prémio Leya 2021 viu o livro “As Pessoas Invisíveis” ser escolhido entre 732 originais. A obra, que lhe levou mais de seis anos a escrever, conta histórias de pessoas sem rosto, do chamado “interior”.
Nas páginas de “As Pessoas Invisíveis”, que não quis o autor que fosse um romance histórico, cabem mais de 50 anos de História. Da Guerra Colonial, ao 25 de Abril, está tudo no livro que, segundo o autor, fala também da escravatura.
Em entrevista à Renascença, o escritor que tem já livros de ficção e obras de poesia editadas diz-se ainda incrédulo com a atribuição do Prémio Leya que lhe vai valer a edição do seu novo livro. Herberto Hélder e Vergílio Ferreira são os seus autores portugueses de referência.
Como reage à atribuição do Prémio Leya. Havia 732 originais a concurso de mais de 20 países. Como se sente ao ver a sua obra ser escolhida pelo júri?
Estou muito feliz e ainda um pouco incrédulo. Não tenho propriamente uma carreira literária, tenho escrito essencialmente poesia e tenho publicado dois romances. Diria que vencer o Prémio Leya é sempre muito importante do ponto de vista literário, mas neste momento nem consigo avaliar as implicações. Estou muito feliz e simultaneamente incrédulo.
"As Pessoas Invisíveis", segundo o júri, "é uma viagem por vários tempos da história recente de Portugal desde a década de quarenta do século XX". Que história quis contar nesta obra?
Como o próprio título indica, gostaria que fosse lido essencialmente como um livro sobre pessoas invisíveis que não têm um rosto, como se não existissem, como se não pudessem sequer ser olhadas. Vivem nessa permanente invisibilidade. São pessoas, por exemplo, disso que convencionamos chamar o interior ou a província, pessoas das aldeias, por exemplo se forem mulheres serão vítimas, estarão duplamente apagadas por serem mulheres, viverem no campo e afastadas do mundo. Portanto, é um pouco sobre essa invisibilidade.
O júri refere também que é um livro que retrata várias épocas, como a de Salazar, a Guerra Colonial até aos primeiros anos da democracia.
Há um episódio que acaba por ser central no livro, e que nos leva à história da escravatura. Nesse caso, os escravos corresponderão a esse grau mais baixo de indignidade e, portanto, de invisibilidade. Individualmente nem chegam a existir! Só existem enquanto grupo e olhados em conjunto. Portanto, é essencialmente sobre isto que este livro fala e claro, sobre os poderes. Sobre o contrário, sobre o que está do outro lado do espelho da invisibilidade que é o poder e os são os poderes.
Mas este é um romance histórico?
Não pretendia escrever um romance histórico, mas servir-me de alguns acontecimentos como metáforas para poder falar de outras coisas. Há acontecimentos históricos. O livro abarca um período temporal de 50 anos, desde os anos 30 e a Guerra Civil Espanhola, até o pós 25 de abril. E tem um elemento muito central que tem a ver com a escravatura.
Vai buscar episódios reais?
Na epigrafe o autor diz que este livro não tem nada a ver com os acontecimentos de fevereiro de 1953, em São Tomé e Príncipe, acontecimentos que ficaram conhecidos como o massacre de Batepá. Mas se o autor entende fazer esta advertência, alguma coisa estará a indicar e o leitor confrontar-se-á com esses acontecimentos em que terão morrido mais de mil pessoas, muitas décadas depois do trabalho escravo ser abolido em termos legais, muito depois do regime de contratos já não poder vigorar. Ainda assim, por causa das roças de cacau e das obras públicas, com grande exigência de mão de obra, levaram a este processo de escravatura que ainda permanecia em outras formas em 1953.
Já teve outras funções, como diretor do Parque Natural da Ria Formosa. Tem formação noutra área que não a das letras. Que espaço ocupa a escrita na sua vida? Nomeadamente a poesia.
Não escrevo a tempo inteiro. A poesia permite uma indisciplina que o romance não possibilita tanto que é poder escrever um poema e poder retomar a escrita muito tempo depois. Eu passei largos períodos sem escrever e outros em que escrevi muito intensamente.
E o romance?
Este romance por exemplo, anda comigo há uns seis ou sete anos. Já teve uma outra versão. Comecei a escrevê-lo, parei, retomei. É assim, quem não pode escrever a tempo inteiro vai escrevendo como pode. É isso que tem acontecido. Vou escrevendo de uma forma mais ou menos intermitente, com alguns períodos mais obsessivamente entregue à escrita, outros em que nem posso escrever. Além da questão da falta de tempo, de que todos nos queixamos, há também uma questão de disponibilidade mental para escrever que é afastarmo-nos um pouco das tarefas das quais nem sempre nos podemos afastar.
Nesse sentido a escrita para si é um escape?
Não sei. Escrever é um exercício um pouco duro. Escrever é como estarmos sentados à frente de um muro e, portanto, não é um escape de outras coisas, é um tempo que procuramos resgatar de outras coisas e que, portanto, lhe atribuímos uma grande importância porque senão não estaríamos a escrever! Há coisas muito mais divertidas para fazer do que estar a escrever um livro. Não é um escape, é um tempo que se procura ter e resgatar ao restante do tempo que temos.
Quem são os seus autores portugueses de referência?
Bela pergunta que se calhar amanhã responderia de outra forma! Há autores que sempre me acompanharam. Diria o Vergílio Ferreira da Aparição e até ao fim. Depois poetas, necessariamente o Herberto Hélder de quem tenho um livro de eleição, "Os Passo em Volta". Mas o Vergílio Ferreira é central nos autores que ao longo do tempo me acompanharam.