Em setembro de 2016, explodiram várias bombas artesanais em duas ruas de Nova Iorque, ferindo mais de 20 pessoas. Três dias depois, o FBI identificava e detinha o suspeito do atentado terrorista e as autoridades policiais solicitavam à Apple que desbloqueasse o seu telemóvel para aceder a toda a informação útil que pudesse desvendar os contornos do crime.
O gigante tecnológico recusou, argumentando que isso abriria um precedente que descredibilizaria todos os procedimentos de segurança da companhia e a confiança que os consumidores nela depositam.
Decorria, então, a campanha eleitoral para as presidenciais de 2016. Donald Trump disputava com Hillary Clinton a possibilidade de chegar à Casa Branca e, na sua habitual linguagem desbragada, não poupou nas palavras para caraterizar o suspeito do atentado, mas também a atitude da Apple. Para o então candidato, a recusa da Apple em desbloquear o telemóvel do suspeito do atentado era inadmissível e nos comícios apelou repetidamente a um boicote dos consumidores à empresa.
Hoje presidente, Trump e a sua administração lançaram uma ofensiva diplomática junto dos países aliados para evitar que a gigante chinesa Huawei seja escolhida como parceira na adoção da tecnologia 5G. A razão é clara: apesar de ser uma empresa privada, a Huawei jamais poderá escapar ao controlo das autoridades chinesas, que poderão forçá-la a ceder informação sensível sempre que isso lhes seja conveniente.
Num regime ditatorial como o da China não existe liberdade empresarial, nem garantia de autonomia industrial e tecnológica, que possam evitar a interferência do poder político. A própria classe empresarial confunde-se com a classe política. Ninguém na China singra nos negócios sem o beneplácito do poder político e muitos dos homens de negócios atuais são, foram, ou tornaram-se, membros do Partido Comunista Chinês.
Mesmo quando alguém consegue construir um negócio próspero à margem dos favores políticos, o partido põe em prática mecanismos que garantem o alinhamento ou, no mínimo, a não hostilização ao poder. Mecanismos que oscilam entre a cenoura e o pau. Podem ir de benesses fiscais ou outras de caráter financeiro à criação de obstáculos ao desenvolvimento do negócio como liberdade de circulação ou boicote dos circuitos de distribuição. Tudo a troco de fidelidade política, naturalmente.
Não é por acaso que não há notícias de magnatas chineses que se opõem ao Partido Comunista, ao contrário do que sucedeu durante anos na Rússia, antes de Putin os ter mandado para a cadeia ou para o exílio. Na China não há estado de direito e não há poder à margem do poderoso Partido Comunista. O que aconteceu nas últimas semanas com aqueles que ousaram dizer a verdade sobre o coronavirus, aliás, ilustra-o bem.
É, por isso, totalmente impensável que a Huawei algum dia pudesse dizer às autoridades chinesas que se recusava a desbloquear alguma informação contida nos seus sistemas, como a Apple fez nos Estados Unidos. E nem é preciso pensar num caso extremo como o de um atentado terrorista.
Donald Trump, então apenas candidato, limitou-se a apelar a um boicote à empresa, mas se já fosse presidente gostaria certamente de obrigar a Apple a desbloquear o telemóvel, a avaliar pelos abusos de poder que tem praticado desde que foi eleito. A empresa, contudo, só teria de defender a sua atuação em tribunal, onde a esperaria um julgamento independente do poder político e das autoridades policiais.
Trump pode não ter moral para pressionar os aliados a excluir a Huawei do 5G, mas tem a razão do seu lado. Por uma vez. O que a sua administração está a fazer um pouco por todo o mundo ocidental não é diferente do que faria, neste caso, qualquer outra administração americana. Deixar nas mãos de uma empresa chinesa infra-estruturas de telecomunicações por onde passarão biliões de “bytes” de informação diariamente é oferecer a Pequim de mão beijada um trunfo decisivo nesta era da informação em que vivemos.
Mais do que nunca, informação é poder e as guerras do futuro serão sobretudo ciberguerras, ou pelo menos terão uma forte componente de ciberguerra, uma área em que a China se tem vindo a especializar com sucesso. Quando as vantagens competitivas se medem pela capacidade em obter informação sobre as potências rivais ou conseguir “piratear” os seus sistemas de informação, facilitar a Pequim essa tarefa equivaleria ao “desarmamento unilateral” que alguns defendiam no Ocidente nos tempos da guerra fria.
Uma alternativa à Huawei?
É para isso que a administração americana tem vindo a alertar os aliados e foi isso que o secretário adjunto para a comunicação cibernética disse esta terça-feira em Lisboa. Deixou um aviso: se Portugal adjudicar a sua rede 5G à Huawei a cooperação entre os dois países passará a ser limitada. Leia-se, cooperação ao nível de informações sensíveis, confidenciais, que os serviços de informação ocidentais trocam frequentemente entre si.
Isto é, Portugal poderá ficar excluído do acesso a um nível de informação mais restrito, já que os EUA considerariam que enviá-la para o nosso país seria o mesmo que torná-la acessível a Pequim. A “intelligence” portuguesa poderá ser assim a maior vítima colateral da adjudicação do 5G à Huawei.
Este é um ponto particularmente delicado no que toca ao Reino Unido, que há cerca de duas semanas admitiu que a Huawei possa fornecer equipamento para a rede 5G britânica. Embora com restrições — nada para a parte “sensível” da rede e não mais de 35% dos equipamentos periféricos — a decisão de Londres enfureceu Donald Trump, que terá feito um telefonema agreste ao primeiro-ministro Boris Johnson. É que a troca de informações entre as “secretas” dos EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia é muito mais profunda do que com qualquer outro grupo de países e isso pode ficar em causa com a decisão de Johnson.
Em Lisboa, o secretário adjunto americano revelou que Washington está a tentar criar um “ecossistema de companhias ocidentais que partilham os mesmos valores no que diz respeito ao uso dos dados, privacidade, exercício da liberdade na internet, como não acontece na China”. E citou três empresas: Nokia, Ericsson e Samsung, que, juntamente com companhias americanas, poderiam construir um sistema de “arquitetura aberta” que funcionasse com segurança para todos os países ocidentais.
A vantagem competitiva da Huawei parece ser o preço, e o sistema de plataforma a criar por empresas ocidentais visaria competir também neste aspeto com a empresa chinesa. Para além de dar garantias para a segurança nacional de cada país.
Ao contrário do que é frequente nas relações internacionais, em que os governos se pressionam mutuamente para que empresas dos seus países ganhem concursos internacionais, neste caso nem sequer se pode argumentar que os EUA estejam empenhados em combater a Huawei para favorecerem empresas americanas no negócio. As três companhias citadas pelo secretário adjunto para a comunicação cibernética não são americanas e parecem ser as mais bem colocadas para implementarem a tecnologia 5G pelo mundo fora. A Nokia é finlandesa, a Ericsson é sueca e a Samsung é sul-coreana.
Nokia aposta em investigação
As duas primeiras dominam o mercado americano, com a Samsung em terceiro lugar com uma quota menor. E todas apostam agora no lançamento do 5G. Uma visita feita na semana passada ao Centro de Investigação da Nokia situado em Murray Hill, New Jersey, a cerca de uma hora de Nova Iorque, permitiu aos jornalistas estrangeiros perceber um pouco melhor a realidade desta nova tecnologia.
Segundo os seus especialistas, o 5G vai implicar um investimento de 275 mil milhões de dólares, vai criar 3 milhões de empregos e vai ser responsável por 600 mil milhões de dólares em crescimento económico. O lançamento comercial das redes americanas foi feito em abril do ano passado e os primeiros aparelhos aparecerão este ano. Entre 2021 e 2024, o 5G dominará o mercado, garantem.
Enquanto na quarta geração (4G) as diferenças de lançamento entre países desenvolvidos chegaram a ser de 28 meses, com o 5G não deverão ultrapassar os seis meses. Nos EUA, onde Nova Iorque é o maior mercado, haverá um período de 90 dias para aprovar os locais dos retransmissores de sinal ou de infra-estrutura e calcula-se que os preços das adjudicações sejam bastante mais baixos do que foram os da quarta geração. Haverá seguramente concursos —talvez sob a forma de leilões — a promover pela entidade pública respetiva, que no caso de Nova Iorque é a cidade. A Nokia, ou as suas concorrentes, ficarão responsáveis pela instalação das infra-estruturas, nas quais os operadores de telecomunicações fornecerão os seus serviços aos clientes.
Quando se fala de 5G fala-se fundamentalmente de infra-estrutura, de disponibilização de banda muito mais larga do que a atual, voltada sobretudo para a internet das coisas, automação, casas e escritórios inteligentes, sensores, telemedicina, robotização, redes de grande capacidade que permitam velocidades de acesso à informação muito mais rápidas do que hoje.
É neste segmento que a Nokia se especializou nos últimos anos, depois de ter sido criador de telemóveis com sucesso, mas ter sido ultrapassada pelos iPhones. Após vários anos de prejuízos, regressou aos lucros recentemente graças à nova aposta. “Hoje somos uma companhia de infra-estruturas”, definiu um dos responsáveis em Murray Hill. Neste centro de investigação trabalham 1500 pessoas, mas em todos os EUA a Nokia emprega 11 mil pessoas, com quartel-general em Dallas, Texas.
Graças à massa cinzenta reunida, a empresa já registou mais de duas mil patentes relacionadas com o 5G. “Há dez anos que trabalhamos no 5G”, revelou o CEO, Marcus Weldon, explicando que cada nova geração de tecnologia precisa de dez anos de pesquisas. “Precisamos de dez anos para inventar o futuro”, referiu, e só quando uma determinada tecnologia é aplicada é que se percebem bem as suas limitações e se começa a trabalhar na seguinte. Por isso, o investimento em investigação e desenvolvimento é enorme — atingiu os 125 mil milhões de dólares.
Isso talvez explique o facto de, apesar de ser uma empresa europeia, ter uma presença tão forte no mercado americano. Possui 66 acordos comerciais ligados ao 5G e trabalha com os quatro grandes operadores de telecomunicações americanos: AT&T, Verizon, T-Mobile e Spring.
Está presente em 100 países. “Na Nokia, o sol nunca se põe”, ironiza um dos seus quadros, com visível orgulho.
Questões de segurança? A controvérsia em torno da Huawei? O assunto é tabu perante os jornalistas. “Nunca falámos dos nossos concorrentes”.
Mas se houver uma “arquitetura aberta” para o 5G que reúna as principais empresas ocidentais do setor, a Nokia estará seguramente presente. É o que se deduz das declarações do secretário adjunto americano para a cibernética em Lisboa.