Jose Gregorio Angel Luque é pároco em Motatán, uma localidade venezuelana situada junto à cordilheira dos Andes, na diocese de Trujillo. Nos últimos meses, tem vivido e testemunhado de perto a crise humanitária no país: as crianças têm fome, há gente a morrer por falta de medicamentos e cada vez mais pessoas a emigrar.
De passagem por Portugal, o sacerdote, de 48 anos, falou com a Renascença sobre a “triste realidade do povo venezuelano” e aponta que, apesar de Juan Guaidó se ter proclamado presidente, o poder continua nas mãos de Nicolas Maduro.
Sendo pároco, lida de perto com os problemas e aflições das pessoas. Como é que se vive na Venezuela neste momento?
É uma realidade que se agrava mais a cada dia, porque os serviços básicos que um município e uma família deveriam ter não existem. Agora, passámos por oito ou doze dias sem luz elétrica. Temos também o problema dos alimentos, que são difíceis de encontrar. Vamos ao supermercado e as prateleiras estão vazias. A situação médica também é muito complicada. Se se tem dinheiro para comer, não se tem dinheiro para os medicamentos. É a triste realidade do povo venezuelano. Quando as pessoas falam comigo na paróquia dizem-me "padre, não aguento mais, não sei o que fazer". A solução que resta a muitos é emigrar.
Contava-me, no início da entrevista, que a sua mãe precisa de medicamentos...
Sim, foi operada há dois meses e está muito fragilizada. É difícil encontrar medicamentos. A farmácia não tem e, quando é possível encontrá-los, são muito caros por causa da inflação. Há muitos casos assim. A minha avó sofre de cancro e não tem fármacos. Tenho vários paroquianos com diabetes sem medicação.
Como é que contornam essa falta de medicamentos?
A minha mãe esteve internada no hospital central da cidade. Estando com ela diariamente, e lamento muito o que vou dizer, dei-me conta de que há pessoas que chegam ao hospital e se vão embora porque não têm como comprar os medicamentos. Algumas morrerão por causa disso.
As crianças são as mais afetadas por esta crise?
Nos últimos dois meses, a Venezuela enfrentou uma falha elétrica - estivemos oito a doze dias sem luz. Ao terceiro/quarto dia sem luz, começaram a chegar-me mães desesperadas porque os filhos de um, três e até nove anos não se acalmavam à noite. No outro dia, falava com algumas pessoas que me diziam que estas crianças vão ficar com traumas por crescerem neste ambiente. Na paróquia, além de lhes dar comida, tento sempre fazer alguma atividade ou jogo. Alguns perguntam-me o que se passa. Crescem desanimadas, com falta de esperança.
Em janeiro, quando Juan Guaidó se proclamou presidente, muitos venezuelanos acreditavam que a situação do país iria melhorar e que as pessoas passariam a ter uma vida mais digna. Oito meses depois, o que mudou?
É preciso ser objetivo, quando se fala na situação do governo e da oposição. A figura de Guaidó surgiu de repente, passando, inclusivamente, por cima de outros candidatos, outras personagens políticas. Talvez tenha boas intenção, mas quem conhece a realidade da Venezuela sabe que Guaidó está sozinho no seu caminho político. Está sozinho no país. Tem um grupo de pessoas que o acompanha, é verdade. São simpatizantes da oposição. Mas, na realidade, quem tem o poder absoluto é Maduro, o Presidente. Porquê? O Presidente tem o poder militar, toda a cúpula militar, os generais a seus pés. Controla também os resultados eleitorais, o poder judicial, fiscal. Guaidó tem apenas os deputados da assembleia e o governo tem a assembleia constituinte. Guiadó assina documentos, diz uma coisa, mas, no final, não vemos nada. Esperávamos que surgisse alguma coisa boa. Os meses vão passando, ele sai às ruas, convoca as pessoas, andam para cá e para lá, mas na realidade não se vê nada.
E a população com quem está?
Desde há alguns anos, a massa de pessoas que acompanhava Maduro tem vindo a desvanecer-se. Isso não significa que não tenha seguidores - tem. Por outro lado, o grupo de pessoas que quer uma Venezuela livre, progressista, que dê segurança económica e social ao país e que está ao lado de Guaidó também se desanima por não ver uma saída concreta. Também se diz que há países que apoiam Juan Guaidó, mas, na hora da verdade, não se veem ações concretas.
Falava de um certo desencanto como Guaidó. E Maduro como é visto?
Os que são próximos de Maduro vêem-no como um salvador. Seguem o seu ideal - há um doutrinamento de anos do tempo do Presidente Chávez. No outro grupo ligado a Guaidó, há a esperança de que haverá eleições, de que tudo irá mudar, mas não sabemos quando. É a frustração da Venezuela. É a ideia de que tudo vai mudar, mas estamos há mais de oito meses com um plano que até agora não deu fruto. Tudo está igual ou pior.
Como vê o recente bloqueio económico, financeiro e comercial dos Estados Unidos à Venezuela?
Às vezes, os bloqueios não ajudam muito para se chegar o que se quer. Há uma linha política, uma pressão internacional para tirar Maduro do poder. O que se passa é que essa pressão não é feita ao governo, mas à população. A comida não chega, os serviços não chegam, os preços sobem e para os mais pobres é impossível adquirir estes recursos. Gostava de acreditar que o bloqueio irá permitir a realização de eleições livres, mas não é assim.
Tem esperança na intervenção da Noruega, enquanto mediadora entre o governo e a oposição?
Tenho esperança de que não apenas a Noruega, mas todos os países que veem com objetividade a situação da Venezuela fomentem o diálogo. Tenho esperança de que estas conversações deem fruto, mas também tenho dúvidas. Era bom que os políticos venezuelanos, seja o governo seja a oposição, fossem sinceros, não atuassem tanto com base nos interesses pessoais, que se sentassem à mesa pelo bem do povo venezuelano. Um dos grandes perigos que enfrentamos é que a paciência se acabe e possamos chegar a uma guerra civil que não seria conveniente a ninguém.
Ao longo deste processo, têm surgido inúmeras notícias falsas...
É preciso ter muito cuidado com a informação. Surgem notícias falsas a cada momento que nada têm a ver com o que se passa. Ainda assim, muitas das notícias sobre perseguições são verdadeiras. Estas acontecem desde os tempos do Presidente Chávez. Não há muita liberdade de imprensa, os jornalistas têm sido perseguidos. Alguns tiveram de sair da Venezuela...
Esta luta pela democracia, com todas as perdas e mortes que tem implicado, continua a valer a pena?
Penso que se tem de defender a democracia, custe o que custar. Há dois meses, um jovem de 17 anos que saiu a manifestar-se perdeu a visão porque foi atingido pelos militares. São casos que nos fazem pensar. Vale a pena continuar a lutar pela liberdade? A liberdade não se negoceia. É algo por que se tem de lutar, algo que tem de se querer, mais ainda num país como a Venezuela que já teve liberdade e que agora está sujeito a um regime ditatorial. A pobreza não é liberdade nenhuma.
Como é o seu dia-a-dia?
Levanto-me às cinco da manhã, faço as minhas orações para poder ter forças para a jornada. Se houver comida, tomo o pequeno-almoço. Se não houver, sigo em frente - nem sempre há. De manhã, dedico-me às atividades ordinárias: atendo pessoas alguma necessidade, algum problema familiar, visito idosos doentes. Depois do meio dia, aproveito para organizar todas as atividades que tenho. Não trabalho apenas no centro da paróquia, mas também nas comunidades ligadas à paróquia. Como tenho de ir até lá, e há dificuldade nos transportes, falta de gasolina, tenho de ir a pé. Pode ser 15-20 minutos, meia hora ou quarenta minutos para chegar lá.
Que impacto tem tido este contexto de crise e de carência na sua fé e na fé dos seus paroquianos?
A história da Igreja venezuelana é muito viva. Recebemos, inclusivamente, duas visitas do Papa João Paulo II. Se não alimentasse todos os dias esta relação forte com o Senhor, não sei onde estaria. Sem Deus seria impossível. Vejo isto também em muitas pessoas que vão à Igreja, que vão aos círculos de oração, que buscam esta força que os ajude a continuar. A situação é má, mas sabemos que, um dia, o Senhor nos vai escutar, como escutou o povo de Israel. É a única esperança que temos. Assentamos este desespero na fé em Deus e na Virgem.
Que papel tem tido a Igreja venezuelana nesta crise?
Os bispos venezuelanos tiveram um encontro com o Papa Francisco, o ano passado, para expor toda esta situação. Têm assumido um protagonismo muito bonito de serem profetas no meio de um povo que sofre tanto e é perseguido. Alguns bispos foram ameaçados, vítimas de violência física, e continuam ali ao lado do povo. Nós, sacerdotes, procuramos seguir a mesma linha. A Caritas tem procurado ajudar seja com medicamentos, seja com comida. Li, há pouco, que a conferência episcopal [venezuelana], em particular o departamento da Caritas, conseguiu importar geradores para alguns hospitais, por causa das falhas de eletricidade. São pessoas que estão a fazer possível para que se salvem muitas vidas e para que não morram à fome tantas pessoas, sobretudo crianças.
Qual foi o caso mais dramático a que assistiu?
O relato de uma pessoa que estava a ser ameaçada. “Padre, estão a cobrar-me as vacinas. Se não pagar, matam-me. Tenho de ir embora”. Disse-lhe para ir. O discurso do Presidente e do governo tem sido um discurso de muito ódio e violência. Muitos não se importam em matar uma pessoa honesta e trabalhadora. Graças a Deus, nunca achei que me pudessem fazer mal, mas tenho sido muito prudente. Se não tivesse sido assim, provavelmente já não estaria aqui.
O que o trouxe a Portugal?
A minha prima veio viver para cá com o marido, que é filho de madeirenses. Não conseguiam pagar o apartamento na Venezuela. Decidi viajar para dar o meu testemunho e para tentar encontrar alguma ajuda. Felizmente, e graças a Deus, já houve gente que mostrou a sua solidariedade.