Admite que o palco lhe “faz falta”. Desde outubro que não dá um concerto. Sérgio Godinho tem aproveitado o tempo para escrever canções para outros, como o fado que escreveu para Camané, mas tem também aproveitado o tempo que a pandemia lhe impôs para outras escritas.
Em entrevista ao "Ensaio Geral", da Renascença, o músico diz que tem um terceiro romance pronto, mas têm-se dedicado ao seu mais recente livro. “Palavras são imagens são palavras” é o livro que está a editar pela Quetzal e que reúne um conjunto de 30 poemas e outras tantas fotografias que tirou.
O livro “Palavras são imagens são palavras” tem um título que coloca em diálogo a poesia e a fotografia. Esta é uma obra que faz essa relação?
É um título que funciona em “loop”, poderia continuar para sempre. Palavras são imagens, são palavras, são imagens, são palavras… E o próprio título mostra uma interação entre poemas e imagens. Essas imagens são fotografias que eu tirei e que nem todas tinham a intenção de se conectar, de se acasalar, como eu diria, com palavras, com poemas. São trinta e tal poemas e trinta e tal imagens. Às vezes há duas imagens por poema, mas cada caso foi cada caso.
Escreve logo no primeiro poema o verso “a cada degrau escrevo”. É assim que a poesia lhe acontece?
Houve poemas, talvez uns oito, que foram suscitados por uma fotografia que eu tirei e que me despertou um poema. São uma minoria. Em muitos outros casos, fui escrevendo poesia pouco a pouco, assim despreocupadamente, como sempre faço, e senti que elas podiam ser acasaladas com imagens que eu tinha tirado, muitas vezes sem essa intenção. A interação pode ser mais ou menos obvia.
Um dos poemas, intitulado “Uma mão e uma Bic”, remete-nos para a ideia de escrita à mão. Aliás, é a fotografia que faz a capa do livro. Como é esse laboratório de escrita? Escreve à mão?
De facto, achei que essa fotografia que tirei, de uma Bic que estava em cima de uma mesa preta que refletia as paredes, seria uma ótima imagem para a capa. Foi com essa Bic que eu escrevi o poema. É parcialmente verdade, mas eu, de facto, acabo por escrever no computador. Aquilo que faço na poesia, na ficção narrativa e também nas letras de canções faço no computador. Não preciso explicar as vantagens. O facto de se poder corrigir na hora, se poder avançar, se poder guardar cópias, se poder voltar atrás, poder guardar mais do que uma cópia do que se fez, etc. As minhas obras anteriores de ficção, e mesmo o livro “O Sangue por um fio”, que é um livro de poemas já antigo, foram escritas no computador. Acho que dá um grande avanço em termos de leitura global.
As fotografias que surgem neste livro dão a ideia de instantâneo, remetem para as Polaroid...
Sim, graficamente parecem Polaroids, mas de facto não são. Foi uma ideia do gráfico deste livro.
Mas há esse lado instantâneo na forma como escreve e fotografa?
São atitudes diferentes. No caso das fotografias, se for um objeto inanimado como as que tenho de céus e de nuvens, acho que estão enquadrados pelo meu olho. Depois, o instantâneo, coisa de passagem, há inclusivamente duas fotografias tiradas num carro em movimento e aí, sim, são realmente instantâneos.
Eu vi qualquer coisa e quis apanhá-lo depressa. Há um poema chamado “Quase Noite na A23”, o título diz tudo. Estava na A23, não estava a guiar e vi aquele céu que se ia tornar noite, mas onde brilhava ainda algo do dia que passava e achei que isso era uma metáfora evidente do dia que eu tinha passado, para aquilo que tinha acontecido e iria acontecer no dia seguinte. Há outra fotografia tirada em movimento, a mais de 100 à hora, também não estava a guiar na Patagónia.
Estive na Argentina, mesmo antes da pandemia se declarar e haver os primeiros casos em Portugal, e achei que aquela imagem das nuvens a afunilar numa terra onde praticamente não chove era uma imagem simbólica do que poderia ser uma promessa de chuva. Fiz essa fotografia que não tem grande qualidade, mas achei expressiva.
Há em alguns poemas um reflexo do que é a sua vivência enquanto músico. Isso também cabe na poesia?
A minha poesia não é autobiográfica, tal e qual. Mas é evidente que é o reflexo daquilo que eu vou praticando durante o dia. Às vezes é algo de uma fotografia. Por exemplo, uma das fotografias que existe, aliás feita no Tivoli, foi tirada antes dos concertos. À tarde, antes do ensaio de som, costumo tirar uma fotografia da minha vista com o microfone à frente e a sala vazia. Acho que é algo mais testemunhal do que outra coisa, mas que mostra o que é a minha vivência, o que é o palco vazio que se vai encher de pessoas.
Eu gosto muito do palco. Acho, aliás, que as canções e a música existem realmente quando são cantadas ao vivo. Sempre valorizei isso, porque há aquele grau de risco e imprevisibilidade. Nós estamos a transmitir, a dar uma energia e o público está a dar-nos uma outra energia que nós recolhemos. Acho que essa troca é fundamental. Essa fotografia de palco é de certo modo autobiográfica.
Tem também aqui uma homenagem muito pessoal ao músico Bernardo Sassetti, numa fotografia e num poema...
Tem por razões óbvias consonantes, autobiográficas. Eu tinha feito uma canção há pouco tempo com o Bernardo, chamada “Em dias consecutivos”. Ele tinha-me dado uma música e eu tinha feito uma letra. Aliás, há uma introdução ao poema “Bernardo” que refere isso. E o poema é um poema daquele momento que nós só podemos imaginar na nossa cabeça, daquele último voo para o mar, aquela coisa terrível que resultou na sua morte. Para tanta gente, foi algo extremamente chocante. No meu caso, que tinha uma amizade com o Bernardo que seria concretizável em futuras canções, foi também doloroso a esse nível.
Queria saber se alguns destes poemas que agora publica, podem fazer adivinhar futuras canções...
Não, de maneira nenhuma. São matérias diferentes. Eu geralmente quando faço canções começo pela música, ou no caso de parcerias gosto que me deem uma música e eu faço uma letra depois. É raro que seja ao contrário. Eu não começo pelas palavras. A música é uma matéria mais abstrata. Dá-nos sugestões, mas é abstrata. E as palavras são mais do concreto e enquadra aquilo que se vai chamar canção, num todo. Mas aqui, os poemas, são quase todos irregulares. Há alguns, como esse “Uma mão e uma Bic” de versos regular que é lúdico, mas não gostaria de pôr em música. É raríssimo nestes poemas haver essa métrica regular. É outra matéria.
Para terminar, estes quase dois anos ficam marcados pela quase ausência de espetáculos. Tem saudades do palco? Como tem aproveitado o tempo?
Tenho estado longe do palco desde outubro. É algo que me faz falta e faz falta aos músicos. É o nosso meio de sobrevivência. Estamos todos neste barco complicado. E portanto, para já dediquei-me estes últimos meses a pôr de pé este livro “Palavras são imagens, são palavras”. Depois avancei, porque eu preciso também da escrita de ficção. Comecei a precisar disso quando engrenei nessa via. Tenho de facto, um terceiro romance terminado, embora possa e deve ter revisões. E tenho estado a escrever contos que é uma outra maneira de encarar a matéria ficcional.
Os contos têm aquele tempo curto onde se sugere muita coisa, até mais do que muitas vezes se diz. Também quero voltar à música, mas isso devagarinho. Desde Nação Valente que tenho composto pouco, compus para outros. Fiz letras para os Clã, fiz uma canção com letra e música para o Camané, “O Fado que Em tempos Cantei”. Ponho a hipótese de vir a gravar essa canção, embora sem aquela sapiência fadista do Camané.