A maioria democrata na Câmara de Representantes dos Estados Unidos decidiu na quinta-feira avançar com a acusação formal do processo de destituição de Donald Trump, na sequência da divulgação do relatório final dos inquéritos e investigações feitos ao longo dos últimos dois meses.
A decisão nada tem de surpreendente. As 300 páginas do relatório elaborado pela Comissão dos Serviços Secretos da Câmara de Representantes são concludentes no que toca à implicação de Trump em condutas consideradas ilegais à luz da Constituição americana.
Abuso de poder, obstrução à justiça e obstrução ao Congresso são provavelmente as três acusações formais a Trump, que deverão ser redigidas nos próximos dias e que constituirão o fundamento legal para o processo, os chamados “artigos do impeachment”.
O abuso de poder consubstancia-se na utilização do cargo de presidente para pressionar uma potência estrangeira a interferir nas eleições nos Estados Unidos. A obstrução à justiça nas inúmeras tentativas para evitar que a investigação avançasse e na intimidação pública de testemunhas chamadas a depor. A obstrução ao Congresso na proibição de que funcionários e advogados da Casa Branca prestassem depoimento e na recusa de entrega de documentos solicitados.
Suborno é uma acusação que poderá também ser incluída na lista, embora não haja ainda consenso entre os democratas neste ponto. Quer a líder da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, quer o líder da Comissão de Serviços Secretos, Adam Schiff, apelidaram a conduta do presidente de “suborno” a dada altura do processo.
Em seu entender, aquilo que Trump fez com a Ucrânia foi um suborno. Ao suspender a ajuda militar de 400 milhões de dólares ao país até que o presidente Zelensky anunciasse uma investigação a Joe Biden e ao seu filho, Trump estaria a servir-se daquela verba aprovada pelo Congresso para submeter Zelensky à sua vontade. Estaria, afinal, a “comprar” o presidente ucraniano.
Mas seja ou não incluído este artigo, os três restantes são, na visão dos democratas, mais do que suficientes para configurar os “crimes e contravenções” alegadamente cometidos por Trump, nos termos constitucionais. Traição é uma alegação que estará excluída à partida.
Condenado e… absolvido
Os “artigos do impeachment” funcionarão como uma espécie de despacho de pronúncia, para utilizar uma analogia imperfeita com o sistema judicial português. Só que neste caso elaborados pela acusação e não por um juiz independente. É a acusação — neste caso, a maioria democrata na Câmara de
Representantes — que decide levar o presidente a julgamento, aprovando ou não a sua destituição do cargo.
E são justamente os artigos do impeachment que vão a votos, um a um, na Câmara de Representantes. Prevê-se que a votação decorra ainda antes do Natal e os democratas estão determinados em votar favoravelmente a destituição do presidente. Basta-lhes para isso a maioria simples que detêm. Caso se concretize, o presidente é considerado culpado de conduta ilícita e destituído do cargo.
Mas é uma sentença não transitada em julgado. O processo sobe depois ao Senado — a câmara alta do Congresso — que funciona como uma espécie de segunda instância, de tribunal superior. E aqui, o processo terá certamente um desfecho diferente, já que os republicanos têm a maioria (53-47) e o presidente só pode ser destituído por maioria de dois terços. Seriam, portanto, necessários 67 votos — mais 20 do que os democratas que ali têm assento.
O Senado transforma-se num tribunal, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Alguns membros da Câmara de Representantes funcionam como os procuradores e conduzem a acusação ao presidente, enquanto este tem a defendê-lo uma equipa de advogados por si escolhidos. Os senadores funcionam como o júri que avalia a situação e delibera sobre o arguido.
Salvo qualquer mudança de opinião sobre o processo de muitos senadores republicanos, Trump será absolvido nesta segunda instância e continuará na Casa Branca até ao fim do mandato. Foi justamente isto que aconteceu com o presidente Clinton em 1998 — condenado na Câmara de Representantes pela então maioria republicana e absolvido no Senado pela maioria democrata.
Investigação profunda
Para dar os termos da sua acusação como provados, a Câmara de Representantes conduziu uma investigação tão profunda quanto possível, que não se limitou à audição de testemunhas. O relatório final dá conta de inúmeros telefonemas feitos pelo advogado pessoal de Trump, o ex-mayor de Nova Iorque Rudy Giuliani, que demonstram a coordenação entre a sua ação junto de entidades ucranianas e a Casa Branca.
Apenas dois exemplos. A 24 de abril, dia em que a embaixadora americana em Kiev foi chamada a Washington e afastada do cargo, Giuliani teve sete conversas telefónicas com responsáveis da Casa Branca, podendo estar aqui incluído o próprio presidente.
A 25 de abril, dia em que Joe Biden lançou a candidatura à presidência, Giuliani falou com um comentador conservador que escreveu um artigo a “revelar” duas teorias conspirativas: a) a Ucrânia estaria na origem das acusações de que a Rússia interferiu na campanha eleitoral americana; b) Joe Biden teria pressionado para afastar o procurador-geral ucraniano para evitar que ele investigasse a empresa em que o seu filho trabalhava.
Nessa noite, Giuliani falou com a vedeta da Fox News Sean Hannity, que ia entrevistar Trump. Hannity perguntou ao presidente sobre as teorias conspirativas. Resposta: “Isso parece muito, muito importante. Não me surpreende”.
A tese conspirativa sobre a Ucrânia foi refutada pelos serviços secretos americanos, que apresentaram provas aos congressistas de que aconteceu exatamente o inverso: foi a Rússia que interferiu na campanha para favorecer Trump e tentou desviar a responsabilidade para a Ucrânia. A tese sobre o vice-presidente Joe Biden nunca foi corroborada por nenhuma entidade ucraniana e o afastamento do procurador foi um objetivo perseguido igualmente pela União Europeia e pelo FMI em prol da luta contra a corrupção.
Devin Nunes de novo em xeque
Mas o relatório revela também que o luso-americano Devin Nunes participou nestas movimentações conspirativas, reforçando as suspeitas noticiadas na semana passada. Em alguns dos momentos de maior atividade de Giuliani na nebulosa ucraniana, Nunes falou ao telefone com ele, assim como com um dos seus colaboradores, um americano de origem russa chamado Lev Parnas, hoje preso sob a acusação de fraude no financiamento de campanhas eleitorais. O atual advogado de Parnas acusou publicamente Nunes de ter participado nos esforços de Giuliani para pressionar a Ucrânia a investigar Joe Biden.
E o próprio Giuliani falou também ao telefone com um ex-colaborador de Nunes, que uma das especialistas em assuntos da Rússia interrogada no inquérito definiu como uma espécie de consultor discreto de Trump para as questões ligadas à Ucrânia.
Na Fox News, Nunes disse que conhecia Giuliani há muitos anos e que tinha falado com ele sobre Robert Mueller, o procurador especial que iniciou as investigações à interferência da Rússia na campanha eleitoral. Acrescentou que não se lembrava do nome Parnas, mas que era possível que tivesse falado com ele, teria de verificar os registos das suas chamadas. “Mas parece-me pouco provável que tenha atendido chamadas de desconhecidos”, concluiu.
Devin Nunes é deputado eleito pela Califórnia e foi líder da Comissão dos Serviços Secretos enquanto o Partido Republicano deteve a maioria na Câmara de Representantes, até 2018. Nessa qualidade, foi sempre o defensor mais incondicional de Donald Trump neste processo.
Na semana passada, a CNN revelou que Nunes se encontrou em Viena há cerca de um ano com um dos procuradores afastados na Ucrânia e que os republicanos erigiram em “vítima” das alegadas conspirações de Joe Biden. O deputado processou a CNN, a quem exige uma indemnização choruda, mas não esclareceu cabalmente se se tinha encontrado, de facto, com o antigo procurador ucraniano. A sua proximidade acrítica a Trump tem-lhe valido o epíteto de “lacaio” por parte de muitos comentadores.