João Paulo Malta é médico e obstetra e foi porta-voz dos movimentos que, em 2007, se organizaram para defender o “não” no referendo que acabaria por liberalizar o aborto em Portugal.
Com muitos anos de experiência profissional, Malta colabora activamente com organizações que ajudam mulheres e raparigas em situações de gravidez difícil e, nesta entrevista, sublinha que um dos principais problemas com que a sociedade se defronta hoje é a pressão a que estas estão sujeitas por parte de maridos, namorados, pais e até patrões.
As emendas feitas à lei do aborto, que a esquerda quer revogar, chegaram a ser aplicadas?
Que eu saiba, a lei não foi implementada na sua totalidade, até porque demora algum tempo. A lei visava, essencialmente, a protecção da maternidade e não são factos que se implementem de um dia para o outro ou de uma semana para a outra.
Com a prometida revogação, volta-se à lei que se criou após o referendo. Esse articulado reflecte o que era proposto pelos partidários do "sim"?
Não reflecte. Todas as pessoas, nos dois referendos que existiram, quer os partidários do sim quer os do não, defendiam a protecção da vida, defendiam o apoio às mulheres grávidas e, nomeadamente, às mulheres grávidas em dificuldades. A lei que foi implementada em 2008 representa tudo menos isso.
A iniciativa legislativa de cidadãos pretendia plasmar na lei uma representação um bocado mais prática do que se viu que era a vontade dos portugueses nos dois referendos. Era, essencialmente, uma lei de protecção da maternidade. O que esta possível revogação mostra é que há pessoas que, na verdade, não querem que a protecção da maternidade vá para a frente, pretendem deixar as mulheres sozinhas com a sua decisão, isto numa altura em que tanto se fala dos advogados dos doentes, como alguém que apoia, acompanha e ajuda na decisão de tantas situações difíceis que os nossos doentes têm. Mais uma vez, vamos deixar as pessoas sozinhas com a sua decisão, sem apoio, sem que façamos a nossa obrigação como sociedade.
O aconselhamento, na prática, pode mudar decisões?
Como qualquer ginecologista e obstetra, já aconselhei mulheres em situações difíceis nesta área, de decisões sobre manter ou não manter uma gravidez. Tal como noutras decisões difíceis no que respeita a saúde, é evidente que a opinião do médico pode informar melhor a pessoa que tem de tomar a decisão.
Estamos numa fase da nossa civilização em que há consentimentos informados para tudo. A pessoa tem de estar informada sobre as consequências da decisão que toma no que respeita à sua saúde - os benefícios e os prejuízos. A informação que um médico dá pode, evidentemente, levar que uma pessoa que achava que ia numa direcção reconsidere a sua decisão. Portanto, a decisão de acompanhar a pessoa, informar a pessoa e ajudar fisicamente a pessoa, na vida do dia-a-dia, é evidente que pode mudar uma decisão.
O que lhe parece o facto de a lei impedir os objectores de consciência de participarem nas consultas prévias?
O que se está a fazer é lançar uma suspeição sobre os médicos e os enfermeiros objectores de consciência. E é uma suspeição absolutamente injusta.
Porque é que eu, como objector de consciência, sou impedido de participar numa consulta de aconselhamento e um colega que não é objector de consciência pode participar nessa consulta? Para isso teríamos de afastar completamente os médicos, porque eu, como objector de consciência, inclinar-me-ia para levar a grávida numa direcção e outro colega, como favorável ao abortamento levaria, a mulher nessa direcção.
Não podemos lançar suspeições deste tipo sobre os profissionais de saúde. Os profissionais de saúde, na sua grande maioria e na sua generalidade, informam os doentes da melhor forma que sabem, do ponto de vista científico, e tentam apoiar as pessoas da melhor forma que sabem. E não há nenhuma razão para que se suspeite de um profissional de saúde só porque é ou deixa de ser objector de consciência.
Já lhe aconteceu conseguir, através de aconselhamento, que uma mulher não aborte e, mais tarde, ela lhe dizer que se arrepende de ter avançado com a gravidez?
Nunca. Já me aconteceu várias vezes conseguir levar as mulheres a reconsiderarem a sua posição e a não abortarem e o que sempre pude testemunhar, durante as gravidezes que lhes segui, e durante os partos e após os partos, foi a enorme alegria que as mulheres e os maridos dessas mulheres têm quando vêem o seu bebé. Nunca aconteceu alguém dizer-me “estou arrependida”.
Existe muita pressão sobre as mulheres da parte de terceiros?
É talvez um dos problemas mais importantes que nós temos. É, precisamente, essa pressão. A pressão por parte dos namorados, companheiros, maridos. A pressão por parte de famílias, a pressão por parte dos pais das próprias jovens que engravidam. A pressão por parte dos empregadores.
Em resumo, a pressão de todos nós, que na realidade não fazemos o nosso trabalho como sociedade. Dizemos que as pessoas podem fazer o que quiserem, só não lhes damos condições para poder fazer aquilo que quiserem. E, na verdade, estamos a empurrá-las para uma rua de sentido único, em vez de lhes mostrarmos que há vários sentidos e que alguns desses sentidos as podem fazer sentir mais felizes.
Nesse sentido, a revogação da lei é um passo atrás?
Sem dúvida. Esta lei era uma lei de protecção da maternidade, de promoção da maternidade e, principalmente, de dignificação da mulher. Voltamos mais um passo atrás, mas, se Deus quiser, havemos de dar mais passos à frente.
Em toda a conversa, nunca falou de um dos temas que apareceram mais associadas a esta lei: a questão das taxas moderadoras. Não é um assunto importante?
É uma questão importante, mas é uma questão menor. O que é importante é a maneira como lidamos com as pessoas.
É evidente que a taxa moderadora é um sinal. Não há razão nenhuma para que uma mulher que decide abortar a sua gravidez até às 10 semanas por vontade própria, sem que haja nenhum outro motivo, seja dispensada de uma taxa moderadora que doentes com outras situações realmente patológicas têm de pagar. É uma questão de justiça. Mas, do meu ponto de vista, o que mais conta aqui é a noção de que o Estado, mais uma vez, vai transmitir que as mulheres são deixadas sozinhas.