O reverendo Angus Morrison, ex-moderador da Igreja da Escócia – o cargo mais alto da hierarquia – foi convidado, em 2006, para fazer parte da Capelania Real, servindo as necessidades espirituais da Família Real quando esta se encontra na Escócia. A Igreja da Escócia, conhecida localmente como “Kirk”, é a Igreja oficial naquele país membro do Reino Unido, tal como a Igreja Anglicana é em Inglaterra.
Recentemente, depois de se reformar, o reverendo esteve durante alguns meses em Portugal, a cuidar da Igreja de Santo André, que pertence à Igreja da Escócia, situada na Lapa, em Lisboa.
Em entrevista à Renascença, conduzida por email e por videochamada, fala da sua experiência enquanto capelão real e daquilo que espera do reinado de Carlos III, em termos de fé.
O Rei Carlos sempre falou da importância da religião em geral, e para ele pessoalmente. Teve algum contacto com ele a esse nível?
É muito claro que a religião e a fé são questões da maior importância para o Rei Carlos, tanto em termos gerais como a nível pessoal. A sua fé foi alimentada na Igreja de Inglaterra, cujos serviços ele sempre frequentou, mas gosto de pensar que nós, presbiterianos escoceses, também contribuímos de alguma forma para o seu crescimento espiritual.
A última vez que contactei com ele foi em Crathie Kirk, a paróquia que abrange o Castelo de Balmoral, no Domingo de Páscoa do ano passado. Nessa celebração tive o privilégio de poder pregar sobre a Ressurreição, tema fundacional da fé cristã. Foi uma homilia bastante ortodoxa, e depois foi-me dito que ele tinha gostado bastante.
Sempre considerei o nosso Rei, tal como a anterior Rainha, um crente profundamente espiritual e atento.
Um dos títulos do Rei é “Defensor da Fé” [Defender of the Faith], que diz respeito à fé cristã, mas enquanto Príncipe de Gales o Rei Carlos chegou a dizer que preferia ser conhecido como Defensor da fé em geral [Defender of Faith]. Na sua opinião, faz sentido, hoje, ter um chefe de Estado que é simultaneamente chefe da Igreja nacional? Não faria mais sentido o Rei desempenhar um papel de promoção do diálogo ecuménico e inter-religioso? Existe sequer espaço para uma Igreja de Estado atualmente no Reino Unido?
Essa questão de “Defender of Faith” por oposição a “Defender of the Faith” remonta a um comentário que Carlos fez há cerca de 30 anos. Desconfio que já na altura fez-se demasiado alarido em torno disso, e tem-se continuado a fazer. Carlos já clarificou a sua posição explicitamente. Claro que isto pode traduzir uma clareza maior na sua própria mente, o que é perfeitamente normal. Todos temos o direito a desenvolver-nos e amadurecer com a passagem dos anos!
No primeiro encontro que teve, enquanto Rei, com líderes de diferentes religiões no Palácio de Buckingham, ele reafirmou a sua fé cristã e o compromisso para com a Igreja de Inglaterra. Ao mesmo tempo, falou do seu dever menos “formal”, bem como a sua determinação pessoal em contribuir para que exista um espaço seguro para todos os que optam por seguir “outros caminhos espirituais, bem como aqueles que procuram viver as suas vidas de acordo com ideias seculares”.
Esta é claramente a atitude cristã e correta. A defesa da fé cristã por parte do Rei fornece uma espécie de tenda debaixo da qual pessoas de diferentes fés sabem que podem também encontrar guarida.
Compreendo perfeitamente o ponto sobre o Chefe de Estado ser também chefe da Igreja nacional, bem como todas as dúvidas sobre a existência de uma religião oficial no mundo moderno. Existem argumentos sólidos contra e outros a favor, e não há espaço para ensaiarmos aqui esse debate.
Os acidentes da História deixam-nos, por vezes, com estranhas anomalias e procurar corrigi-las pode ter consequências inesperadas. Eu diria que um dos aspetos positivos, como já notámos, é a proteção que daí advém para pessoas de fé, numa altura em que a perseguição e a opressão dos crentes está a aumentar e a espalhar-se cada vez mais.
O Rei Carlos tem falado muito firmemente em defesa dos cristãos perseguidos no mundo. Eu tenho uma excelente relação com o Arcebispo Angaelos, da Igreja Copta Ortodoxa em Londres, e sei que o Príncipe Carlos visitou o centro mais do que uma vez, e que quando aqueles jovens coptas foram assassinados na Líbia mostrou uma grande solidariedade. Também tem instado os políticos a fazer mais em defesa da Igreja perseguida.
Tudo isto sugere uma pessoa muito comprometida com a sua fé cristã, mas que também pretende que pessoas de outras religiões beneficiem da sua proteção.
Seria de esperar que um líder religioso tivesse liberdade para comentar temas sensíveis, ou assuntos da ordem do dia que possam ter uma vertente religiosa, mas Carlos, precisamente por ser Rei e não poder intervir em assuntos políticos, tem as mãos atadas…
Antes de ser Rei, Carlos era conhecido por enviar notas e recados a políticos sobre assuntos que lhe eram caros, e chegou a meter-se em sarilhos por isso. Mas neste país o monarca é visto como alguém que está acima da política, como o aglutinador de todo o fenómeno político, o que obriga à neutralidade em assuntos políticos. Ele tem de ser visto como estando acima do debate político, mas defensor das estruturas e das instituições existentes.
Creio que sim, que Carlos, em particular, se sentirá frequentemente frustrado por não poder dizer as coisas que gostaria de dizer, por causa do papel que desempenha como Rei num país destes, com o sistema político que temos. Concordo que não será fácil.
Agora, isto não significa que ele não possa falar da fé cristã. Uma das coisas que eu espero é que Carlos siga o exemplo da sua mãe para usar as suas mensagens de Natal, por exemplo, para articular a mensagem cristã, de forma quase evangélica. Acho que ela fez isso cada vez mais ao longo dos anos, e era maravilhoso.
Isabel II uma espécie de evangelizadora da nação, todos os Natais, e espero que enquanto Rei, Carlos siga esse exemplo e que o possamos ouvir a falar claramente sobre a sua própria fé cristã.
A ascendência do Rei Carlos, do lado do pai, é ortodoxa e ele tem manifestado frequentemente interesse nesse legado. Qual é o papel da ortodoxia na sua vida, e de que forma é que isso contribuiu para a sua visão religiosa?
Estou ciente do profundo interesse do Rei pela ortodoxia, mas não consigo comentar detalhadamente sobre o impacto que isto teve na sua espiritualidade.
Sei que já visitou algumas vezes o Monte Athos, o complexo monástico no norte da Grécia, pelo qual tem uma atração especial. Também já visitou frequentemente o Centro Copta em Londres e recebeu em visita o Papa copta Tawadros II. Tem um conhecimento apreciável da iconografia ortodoxa e estima muito a extensa coleção de ícones bizantinos que recebeu ao longo dos anos.
Pode ajudar-nos a compreender a relação entre a Igreja da Escócia e a Igreja Anglicana? A Igreja da Escócia faz parte da Comunhão Anglicana?
Não, a Igreja da Escócia não faz parte da Comunhão Anglicana. Historicamente, o protestantismo desenvolveu-se de forma muito diferente na Escócia e na Inglaterra. Por exemplo, a Igreja da Escócia e a Igreja Anglicana representam duas formas diferentes de governo eclesial, respetivamente presbiteriano e episcopal.
Ambas são Igreja de Estado, reconhecidas na lei como as Igrejas oficiais das suas respetivas nações, mas, novamente, a forma como isto se concretiza é diferente de um lado ou de outro da fronteira. Em Inglaterra o monarca é chefe da Igreja Anglicana, mas na Escócia é apenas membro da Igreja da Escócia.
Vale a pena referir que as relações entre a Igreja da Escócia e a Igreja Anglicana têm melhorado muito nos últimos anos. Durante o meu mandato de moderador, em 2015, celebrou-se um acordo histórico, conhecido como a Declaração de Columba, que foi assinado por ambas as denominações, que reconhece a sua longa relação ecuménica e prepara o terreno para futuros trabalhos conjuntos.
Há dois anos, um segundo acordo, a Declaração de Saint Andrew, foi celebrado entre a Igreja da Escócia e a Igreja Episcopal Escocesa, o ramo escocês da Comunhão anglicana. São desenvolvimentos ecuménicos promissores.
Para um católico pode parecer estranho alguém pertencer a uma Igreja, quanto mais ser chefe da mesma, e frequentar regularmente celebrações de outra, ou pertencer a duas Igrejas ao mesmo tempo que não estão em comunhão uma com a outra…
Acho que é um bocado forte dizer que não estamos em comunhão. A nossa relação com a Igreja de Inglaterra tem-se tornado mais próxima nas últimas décadas.
No ano em que fui moderador trabalhámos muito nesse sentido, já com base em anos de trabalho anterior, e reconhecemo-nos como Igrejas reformadas. A declaração de Columba procurou criar as bases para poder desenvolver projetos conjuntos e permitir que clérigos de uma sirvam noutra.
Nessa altura eu estive bastante envolvido, e cheguei mesmo a ser convidado pelo Arcebispo de Cantuária para ir falar ao sínodo geral da Igreja Anglicana, sendo a primeira vez que o moderador da Igreja da Escócia o fazia, por isso foi bastante inovador. Eu e a minha mulher, Marion, ficámos no Palácio de Lambeth com o Arcebispo Justin Welby e a sua mulher Caroline, que nos trataram lindamente, e tivemos momentos de comunhão muito bonitos.
Regressando à sua questão, o monarca, quando está na Escócia, costuma ir ao culto da Igreja da Escócia, enquanto Igreja oficial da nação, e isso tem corrido bem. Por razões históricas, como se sabe, o monarca é chefe da Igreja Anglicana, mas isso não acontece com a Igreja da Escócia, porque o presbiterianismo não o permite, mas a Rainha Isabel II era uma grande apoiante da Igreja da Escócia, e muito amada na “Kirk”. E também Carlos, sempre que está a norte da fronteira, participa nos serviços da Igreja da Escócia.
Admito que seja uma combinação pouco comum, mas são anomalias da história e temos de fazer delas o melhor que podemos. No nosso caso, as coisas têm corrido bem, e agora acontece num contexto de relações cada vez melhores entre as Igrejas cristãs, incluindo a Igreja Católica, na Escócia.
O Reino Unido é visto muito como um país secular hoje em dia. O facto de a cerimónia central da coroação ocorrer durante uma celebração religiosa, numa catedral, mostra que o Cristianismo ainda desempenha um papel social importante, ou não passa de um resquício de outros tempos, sem influência na vida das pessoas?
Essa é uma questão muito interessante. Fiquei admirado ao ver, na semana passada, que uma sondagem da Sociedade Bíblica mostra que, surpreendentemente, a maioria dos britânicos quer que a Coroação seja uma cerimónia inteiramente cristã, em vez de secular ou multirreligiosa. Claro que isto tem de ser entendido à luz da diminuição do número de cidadãos que se identificam como cristãos.
Sim, o Reino Unido é um país cada vez mais secular. Existe entre nós uma espécie de amnésia coletiva sobre as raízes cristãs de tanto do que há de melhor nas nossas instituições, valores e cultura. Ao mesmo tempo, nota-se entre muitos jovens, especialmente, uma abertura crescente para as dimensões espirituais da vida. O desafio que se nos coloca, enquanto Igreja, é de sermos melhores embaixadores da fé cristã e que possamos representar o tipo de comunidade acolhedora e amável de que toda uma geração solitária e desiludida possa querer fazer parte.
A Igreja Católica também mudou muito ao longo das últimas décadas. Os católicos passaram de cidadãos de segunda, em muitos aspetos, para estarem perfeitamente integrados na vida diária. Os dias do anticatolicismo britânico passaram definitivamente à história?
Tristemente, dentro do Reino Unido, a Escócia ganhou uma reputação lamentável de especial sectarismo. Este ainda existe, até certo ponto, em certos lugares e em alguns jogos de futebol. Mas no geral, o tipo de preconceito a que se refere já desapareceu, e os católicos e os protestantes vivem e trabalham alegremente lado a lado.
No contexto eclesial, as relações entre a Igreja da Escócia e a Igreja Católica desenvolveram-se ao ponto de que em 2021 se celebrou uma declaração histórica de amizade entre as duas, a Declaração de Saint Margaret. Já percorremos um longo caminho!
Contudo, os católicos estão explicitamente barrados de serem monarcas, o que na prática significa que o Rei Carlos, ou os seus herdeiros, teriam de abdicar caso optassem por se tornar católicos. Convém realçar que o mesmo não se aplica a outras religiões. Em sua opinião, isto faz sentido?
Numa era de ecumenismo crescente, de facto isto parece não fazer sentido e compreendo perfeitamente que as pessoas fiquem chocadas. Mas voltamos à questão das anomalias históricas. Um outro exemplo seria a regra que exclui os protestantes de comungarem nas igrejas católicas, embora eu conheça padres que não se importam de fechar os olhos a essa questão.
Vivemos num mundo imperfeito, e numa Igreja imperfeita. Sobre este assunto em particular, as implicações constitucionais de se mudar a situação atual seriam consideráveis, e certamente para além do meu entendimento. O que é verdadeiramente importante, a meu ver, e para a nossa missão comum, é que nos aproximemos cada vez mais da unidade na verdade e no amor pelo Evangelho de Cristo.