É a última previsão da série “Black Mirror” tornada realidade: o governo chinês anunciou que vai implementar, a partir de maio, um sistema de classificação dos cidadãos que impedirá pessoas de embarcarem em comboios e aviões durante até um ano, caso tenham cometido delitos ou atos impróprios.
Quem já viu “Nosedive” (“Em queda livre”), o episódio que abre a terceira temporada da popular série da Netflix que reflete sobre os perigos da tecnologia, vai achar a história familiar. Neste episódio, os membros da sociedade distópica criada por Charlie Brooker são julgados por uma avaliação numérica que lhes é dada pelas pessoas com quem interagem.
Com base nesta premissa, o episódio conta-nos como rapidamente é imposta uma ditadura das pontuações, visíveis para todos e para as quais todos contribuem. As personagens tornam-se obcecadas por “vender” ao mundo uma imagem pessoal positiva, em troca de um estatuto social.
Com avaliações mais baixas, as personagens têm menos oportunidades e serviços à disposição – ao ponto de uma vida poder ser destruída por meia dúzia de avaliações negativas.
Uma sociedade distópica fictícia ou a realidade chinesa atual?
O governo chinês divulgou em 2014 os planos de criar um sistema de crédito social até 2020. Apesar de a informação só agora ter sido oficializada, a agência Reuters sugere que o sistema já esteja a funcionar há algum tempo. Numa conferência de imprensa, no ano passado, o governo afirmou que mais de seis milhões de chineses tinham sido impedidos de viajar de avião por maus comportamentos sociais.
O governo terá dado autorização a oito empresas privadas para criar algoritmos para sistemas de crédito social. Os dois algoritmos mais conhecidos são o da China Rapid Finance, parceira da Tencent na aplicação WeChat, com 850 milhões de utilizadores, e o da Ant Financial Services, uma afiliada da Alibaba e a maior empresa de serviços financeiros online da China.
Esta empresa desenvolveu o Crédito Zhima, que já avalia os utilizadores do Alipay, o principal meio de pagamento online na China, com 520 milhões de utilizadores.
O sistema avalia, com uma pontuação que vai de 350 a 950 pontos, não só o histórico financeiro dos indivíduos, mas também padrões de consumo, educação e até mesmo conexões sociais.
Uma investigação da Wired, no ano passado, chegou à conclusão de que um utilizador com uma avaliação baixa no Crédito Zhima tinha que pagar um depósito extra para alugar uma bicicleta ou um quarto de hotel, era impedido de alugar quartos em hotéis de luxo e até mesmo de requisitar um guarda-chuva, um serviço habitualmente gratuito.
Por outro lado, pessoas com boa pontuação chegaram mesmo a escapar a controlos de segurança no aeroporto e tiveram acesso a vistos de viagem mais rapidamente.
Lucy Peng, CEO da Ant Financial, afirmou mesmo que o sistema “vai garantir que as pessoas más na sociedade não vão ter para onde ir, enquanto as boas pessoas podem mover-se livremente, sem restrições”.
Quem avalia e quais serão as consequências de uma pontuação baixa?
Segundo a investigação da Wired, a Alibaba não divulga o "complexo algorítmo" que usa para calcular a pontuação de cada pessoa, mas revela os cinco factores levados em conta.
O primeiro é o historial financeiro do utilizador, ou seja, se paga as contas a tempo, por exemplo. O segundo é a capacidade de cumprimento, definida pela "capacidade do utilizador de cumprir as suas obrigações contratuais". O terceiro fator são as características pessoais, que verificam a informação pessoal, como número de telefone e morada. Mas a quarta categoria - comportamento e preferência - é onde tudo fica mais interessante, segundo esta investigação.
Neste sistema, os hábitos de compras de cada pessoa tornam-se um medidor de caráter. A Alibaba admite que julga as pessoas pelos tipos de produtos que compram. "Uma pessoa que jogue computador 10 horas por dia, por exemplo, seria considerada improdutiva", disse Li Yingyun, o Diretor de Tecnologia do Crédito Zhima, à Wired. "Uma pessoa que frequentemente compre fraldas vai ser considerado pai ou mãe, o que faz com que provavelmente tenha mais sentido de responsabilidade". Isto significa que o sistema não só investiga o comportamento dos utilizadores, mas julga-o conforme os gostos do governo.
A quinta categoria diz respeito às relações interpessoais. Partilhar "energia positiva" online, ou seja, mensagens simpáticas sobre o governo e a economia, faz aumentar a pontuação pessoal. Pelo contrário, partilhar opiniões negativas sobre o governo pode ter uma influência direta na mesma.
Segundo o comunicado do governo chinês, usar bilhetes de transportes expirados ou fumar em comboios poderá também contribuir para uma má pontuação. Não se sabe ainda como estas "infracções" serão registadas.
O "castigo" agora divulgado para uma má pontuação é a interdição de se deslocar para o estrangeiro em determinados transportes por um período de tempo, mas as consequências podem ir muito mais longe. Em 2020, quando o sistema estiver completamente aplicado, uma baixa pontuação poderá levar à diminuição da velocidade da internet, à restrição no acesso a restaurantes e outros serviços, a empréstimos, a aluguer de casa e até mesmo a empregos.
Pelo contrário, os "prémios" para uma boa pontuação são muitos e variados. Pontuações altas já se transformaram num símbolo de alto estatuto. Ceca de 100 mil pessoas ter-se-ão vangloriado, no Weibo (o equivalente chinês ao Twitter), por terem pontuações altas. Pontuações essas que têm consequências positivas em aplicações de encontros online.
O aplicação do Crédito Zhima já sugere formas de aumentar a pontuação - divulgando por exemplo as desvantagens de ser amigo de alguém com baixa avaliação. Já houve utilizadores a denunciar amigos e membros da família, para ganhar mais pontuação.
O Sistema de Crédito Social é basicamente uma versão digitalizada dos métodos de vigilância do Partido Comunista, com um factor muito mais preocupante: o acesso do governo aos dados pessoais de cada um deverá ser, dentro de pouco tempo, cada vez mais profundo e incontrolável.