Em entrevista à Renascença, o presidente do Comité Europeu das Regiões (CoR) fala desses desafios, especialmente importantes no rescaldo de uma pandemia e com uma guerra na Ucrânia que nunca mais termina.
O socialista Vasco Cordeiro foi eleito há dois anos e meio para fazer a segunda parte do mandato de cinco anos. A primeira foi assegurada pelo grego, do PPE, Apostolos Tzitzikostas. Vasco Cordeiro, que na altura era presidente do Governo Regional dos Açores, é o primeiro português a exercer o cargo.
Já referiu várias vezes que é preciso fazer uma reflexão profunda sobre o futuro da política de coesão; que é preciso tirar lições da pandemia e da guerra da Ucrânia. Na sua opinião, que alterações é que deviam ser feitas?
Vamos primeiro às lições porque ajudam a responder à pergunta. Quer a situação da pandemia quer a da guerra evidenciaram de forma muito concreta a importância das cidades e das regiões, dos poderes locais. Não apenas na concretização de objetivos europeus, mas sobretudo nestas situações de emergência.
No caso da pandemia, as regiões e cidades estiveram na linha da frente da criação de linhas de apoio, não só à saúde pública e prevenção, mas também às famílias e empresas, nomeadamente na defesa dos rendimentos e postos de trabalho.
E aconteceu novamente no caso da guerra: não só as regiões e poderes locais dos países mais próximos da zona do conflito tiveram – e têm - um papel fundamental no acolhimento dos refugiados, como, por toda a Europa houve - e há – um amplo movimento de solidariedade ao nível dos poderes locais e regionais, face aos seus congéneres ucranianos.
Esta é uma componente que deve ser aproveitada nessa reflexão sobre o futuro da Europa, mas há outros elementos. Está a decorrer um período financeiro (2021-2027). Até 2027 não se preveem alterações, embora a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tenha falado num ajustamento de instrumentos e no que isso pode significar para a coesão. Penso que essa reflexão deve centrar-se no que é necessário fazer no pós-2027.
Temos uma situação em que o próprio Mecanismo de Recuperação e Resiliência dá lições importantes quanto à maneira como podemos aproveitar os fundos europeus: guiar-se por metas, pelo cumprimento de objetivos e não tanto como noutros fundos, do sucesso ser aferido pela capacidade de absorção das verbas. São realidades diferentes.
Em segundo lugar, penso que é importante simplificar, desburocratizar o funcionamento da Política de Coesão, seja ao nível dos beneficiários ou dos próprios mecanismos de controle.
Isso tem vantagens óbvias que desembocam no 3º aspeto: nós ainda não gastámos um cêntimo, um euro dos Fundos de Coesão deste Quadro Comunitário. Acontece a nível nacional e europeu.
É verdade que a prioridade tem sido dada ao PRR. E também é uma lição: não será por falta de capacidade dos poderes locais e regionais porque estão a usar essas verbas. Mas a forma como está desenhada a política de coesão, com uma multiplicidade de fundos, com regras ligadas a cada um dos fundos, muitas vezes leva a que haja, não digo menor apetência, mas maior dificuldade no uso.
Era preciso maior simplificação, menos burocracia?
Completamente. Tudo isto num pressuposto que me parece essencial que é o de continuarmos a ter uma política de coesão forte, dotada de recursos e que seja capaz de, no terreno – em muitos casos, por ação dos poderes locais – assumir também a tarefa de construção da Europa em cada uma dessas nossas comunidades locais e regionais.
O Comité Europeu das Regiões representa mais de um milhão de eleitos locais e regionais em toda a União Europeia; são os que estão mais próximo das populações. Há vários anos que reivindica um papel mais interventivo na definição da política europeia, não apenas consultivo. Esse continuará a ser um tema central no discurso do Presidente do CoR?
Concordo em absoluto. Apesar de aqui e ali haver discursos que salientam a importância das cidades e regiões, acho que há um défice de reconhecimento das instituições europeias quanto à importância que os poderes locais e regionais têm na Europa.
O Comité das Regiões é um órgão consultivo, muitas vezes mais considerado como órgão administrativo do que verdadeiramente como uma assembleia política das regiões e cidades. E é isso que ele é. Ora, a assunção plena dessa natureza e dessa legitimidade de intervenção do CoR, levaria, obviamente, a outro tipo de atuação, ao reconhecimento ou à abertura da possibilidade de outro tipo de atuação do (Comité) no processo de decisão comunitário.
Atualmente tem uma intervenção consultiva e há aí potencial, mas que se limita às áreas que têm incidência local e regional. Talvez não seja desproporcionado pensar que se é uma assembleia política, possa também participar quanto à forma como esta União se constrói, mesmo noutras áreas que não têm nada a ver com política regional e local. Curiosamente, no âmbito da Conferência sobre o Futuro da Europa, esse é um dos aspetos que está referido nas conclusões.
Ainda está longe de acontecer? Esse protagonismo poderia facilitar a aproximação dos cidadãos à União Europeia?
É um facto, o distanciamento entre as populações e as instituições europeias. Embora, face a emergências, como a pandemia e a guerra da Ucrânia, comece a ser crescente o número de cidadãos que reconhece a importância e a utilidade da União Europeia.
Mas nesse distanciamento, as culpas não estão apenas num dos lados. Acho que os políticos nacionais, incluindo os regionais e locais têm ainda uma grande margem para salientar o contributo da União ara aquilo que nas suas comunidades é feito. É mais fácil dizer que algo menos positivo é culpa de Bruxelas; é mais difícil dizer que o investimento que está a ser feito numa estrada, num centro de saúde, na qualificação, acontece porque há fundos comunitários, porque estamos na União Europeia e a União Europeia apoia.
Do ponto de vista das instituições comunitárias, há um esforço. A Comissão anunciou recentemente o lançamento de um movimento de consulta permanente aos cidadãos. Aliás, na sequência do que o anterior presidente do Comité+ das Regiões, Karl- Heinz Lambert, defendeu: a existência de um mecanismo permanente de diálogo. É um bom sinal, vai no sentido correto. Não deve ser algo que substitui a democracia representativa, mas também é um elemento essencial para aproximar os cidadãos da realidade e da atuação das instituições europeias.
Depois da Covid-19, a guerra, a inflação a subir. Há já muitas famílias a empobrecer, com grandes dificuldades, entre as de rendimentos mais baixos e mesmo da classe média baixa. Qual o impacto das políticas de coesão? A União Europeia deveria aprovar ajudas suplementares, à semelhança do que aconteceu durante a pandemia?
A União Europeia tem criado e dispomos de um conjunto de mecanismos, sobretudo na componente energética, para fazer face a esta situação.
É suficiente? Os problemas vão muito além da energia.
É verdade. E tendo em conta o que alguns anunciam para 2023, teremos de ir muito mais além no apoio às famílias e empresas para enfrentarem um momento particularmente difícil. E acho que há várias componentes em que a União Europeia o pode fazer.
Para começar, no domínio da energia: o inverno que vem aí é um momento particularmente desafiante para os 27, pelas consequências que poderá ter em termos de coesão. Não da Política de Coesão, mas da própria coesão, desta solidariedade que tem sido manifestada para com a Ucrânia.
Em segundo lugar, ainda no domínio da energia, acho que há uma tentação muito forte de voltar atrás (nas sanções). Ou seja, face às dificuldades que existem neste momento, a tentação é grande. Alguns cedem, é compreensível, mas isso não quer dizer que se deva ir por esse caminho.
Até que ponto é que estas circunstâncias põem em causa a transição energética? Há países, como a Alemanha, a voltar ao uso do carvão?
Acho que o caminho deve ser o de se ir o mais rapidamente possível nessa transição energética.
Com todos estes condicionalismos, é possível?
Não pode ser um objetivo a colocar em “modo de espera” porque isso, no futuro agravará as condições das famílias, das empresas, das comunidades; não haverá melhoria. O caminho deve ser exatamente o de acelerar essa transição energética e em algumas situações, isso tem sido feito. Mas obviamente, também há aqui alguns sinais em sentido contrário.
Nomeadamente vindos de países que são mais dependentes da energia russa e se sentem mais atingidos por esta crise energética.
É compreensível que a decisão seja tomada, mas preocupa-me, obviamente, pelo que isso possa significar em termos de coesão.
Relativamente a 2023, parece que além destas medidas que podem ser consideradas mais de “conjuntura” para acudir a emergência, é importante não perder de vista a agenda mais estrutural, que tem a ver com transformações profundas na vida da União Europeia. Para tal, obviamente que a utilização e execução do Quadro financeiro plurianual é absolutamente determinante.
Gostaria de salientar que julgo que a União Europeia está desperta para este assunto, quanto à possibilidade de flexibilizar regras ou criar mecanismos de apoio para fazer face a esta situação. A confirmarem-se algumas previsões, não serão tempos fáceis para a União, no seu todo.
Isso incluiria, a possibilidade de adiamento de projetos no âmbito do PRR, para além de 2026, como o primeiro-ministro António Costa sugeriu e pediu? Concorda?
Por exemplo, essa é uma matéria em reflexão no CoR. Ainda não há decisões tomadas, mas o que me parece fundamental é que a União Europeia apoie as regiões e as cidades, quando de se trata da recuperação económica e de atingir os objetivos, seja de transição energética -Green Deal - ou outros. Se tal necessitar de flexibilidade – e a posição do nosso país vai nesse sentido – julgo que a questão deve ser analisada e discutida.
Um dos workshops da Semana Europeia é dedicado ao apoio que as regiões e cidades deram (e dão) aos refugiados. Agora, há uma nova realidade, na sequência da mobilização parcial decretada por Vladimir Putin, que é a de milhares de russos a fugir do país e a entrar ou a tentar entrar em países da União Europeia. Embora vários a tenham proibido. Como é que esta nova crise deverá ser resolvida pela União Europeia e nomeadamente, que apoio é que poderá ser dado aos países, cidades e regiões que já estão a sofrer este impacto?
As regiões e cidades estão confrontadas com o efeito mais direto: é o acolhimento, o alojamento, o emprego, a assistência. No fundo, é lidar com essa massa humana que de repente, traz mais pressão, mais tensão, sobre as comunidades para onde se dirigem, do ponto de vista social, das estruturas de saúde, educação, para citar apenas algumas.
Independentemente da questão de fundo e da decisão que possa ser tomada quanto ao acolhimento ou à restrição da entrada desses cidadãos, há já um problema que tem de ser resolvido, especialmente nas regiões que estão mais próximas das fronteiras (com a Rússia) e que já sentem essa pressão.
Obviamente que as cidades e regiões nessas zonas precisam de apoio. No final, o que resta são seres humanos que precisam de acolhimento, de apoio; muitas vezes precisam de cuidados de saúde. E não se sabe quanto tempo é que permanecerão nessas comunidades.
Independentemente de haver países que estão a bloquear a entrada...
Isso evidencia outro problema que é a dificuldade da União Europeia em chegar a uma abordagem comum em relação a essas matérias. Mas do ponto de vista das cidades e regiões onde essas pessoas estão a chegar, já se sente a pressão sobre as estruturas dessas entidades. Devem ter apoio? Claro que devem ter apoio, independentemente da questão de fundo. Não estamos a debater se abrimos ou não abrimos e como é que vamos lidar com a situação. Já está criada, é um facto: há muitos milhares de pessoas a movimentar-se para as regiões de fronteira.
A taxa de desemprego continua a baixar na União Europeia e a do desemprego jovem também, embora a um ritmo mais lento. É a geração mais qualificada, mas os jovens têm dificuldade em conseguir um emprego estável, com um salário que lhe permita ter uma vida independente, aceder a uma casa, ter uma família e filhos, o que é grave, especialmente numa Europa envelhecida. Como é que as regiões podem ajudar a reverter essa situação?
Ainda há um longo caminho a percorrer nesse sentido. Também nesta questão de criar condições de atratividade e fixação dos jovens, os poderes locais têm, pelas suas competências, um papel importante.
Podemos começar pelos municípios, para tomar como referência a realidade do poder local no nosso país. Podem e devem criar essas condições.
A União Europeia definiu 2022 como o Ano Europeu da Juventude. O que é que o Comité das Regiões tem feito? Num projeto conjunto com o Fórum da Juventude, em março lançou um processo para a Carta Europeia para a Juventude e Democracia. No fundo, é um instrumento que está a ser construído, ouvindo associações de jovens, envolvendo eventos locais que salientem a sua importância.
Pretende-se também ter um conjunto de recomendações relacionadas com a participação democrática dos jovens na vida social, económica, política, cívica. Seja a nível local e regional; seja a nível nacional e europeu.
Obviamente que neste contexto de turbulência que vivemos, os jovens – na passagem para a vida ativa -sofrem de forma particular. E esta iniciativa do CoR, o que pretende é evidenciar a importância de ter, não apenas políticas diferenciadas, mas uma abordagem europeia, dos estados membros, para fazer face a esses desafios