Cardeal, teólogo e poeta, D. Tolentino Mendonça lança nesta sexta-feira um novo livro – uma obra que diz ver como um caderno de práticas da oração.
“Rezar de olhos abertos” reúne um conjunto de textos que o cardeal escreveu ao longo do tempo, muitos deles no âmbito da atividade pastoral e que devem ser lidos por cada um em silêncio. Mas sempre de olhos abertos.
Nesta entrevista à Renascença, D. Tolentino Mendonça fala ainda do sentido de vulnerabilidade que a pandemia trouxe como aprendizagem.
Sente, no atual momento, que as pessoas se sentem perdidas?
Sem dúvida que há um sentimento de uma certa desesperança ou de cansaço interno que se abate sobre todos, porque há muitos meses que estamos a lutar contra esta doença. O sentido de responsabilidade que todos somos chamados a ter sobrepõe-se à fadiga, mas é um momento de muita incerteza. Talvez, para muitos adultos que não passaram por uma experiência de guerra, este talvez este seja o momento da sua história de maior incerteza e de maior pessimismo em relação ao futuro.
Nestes tempos, é preciso voltar ao essencial e encontrar palavras – porque muitas vezes é aquilo que nos falta – palavras para poder, espiritualmente, rezar a este tempo. Palavras novas. Muitas vezes as das orações são codificadas, tradicionais, que têm o seu sentido, mas também precisamos de palavras originais, inesperadas, com uma frescura nova que possam ajudar a encontrar esperança para esta hora das nossas vidas.
E porquê rezar de olhos abertos?
Muitas vezes, fechamos os olhos quando rezamos porque queremos, sobretudo, ver aquilo que está dentro de nós. Mas é preciso também aceitar o desafio de olhos abertos, isto é, de rezar a partir da vida; a partir dos acontecimentos, das notícias difíceis e felizes; a partir daquela irradiação do nosso quotidiano.
Nesse sentido, é uma oração mais universal, porque a que fazemos de olhos fechados é a que cada um pode transportar dentro de si; a que fazemos de olhos abertos é aquela na qual todos nos encontramos e podemos escolher, como diz o Papa Francisco, um sentido forte de fraternidade.
Há uma maneira correta de rezar?
Tenho pensado muito nisso e a conclusão a que chego é que todas as formas de rezar são boas. O que importa é verdadeiramente rezar e aí há uma espécie de tabu, seja cultural seja entre os crentes, entre os cristãos e católicos, que muitas vezes não colocam a oração como uma prática central nas suas vidas.
Ora, dizia Novalis que “rezar está para a religião como pensar está para a filosofia”. E, de facto, rezar é fazer religião.
Não posso dizer-me crente se não tenho uma prática de oração. Qualquer que ela seja. Os pontos de partida, penso eu, são todos bons. Não podemos dizer que esta oração é melhor do que a outra. São pontos de partida de um percurso interior e de fé, que depois necessariamente vão crescer, vão maturar e confrontar-se com os desafios normais da nossa existência e da forma como Deus se vai manifestando na história.
O que já aprendeu nesta crise?
Duas coisas fundamentais. Uma, o sentido da vulnerabilidade. De facto, estamos todos no mesmo barco. Uma das coisas que me marcou muito foi, naqueles primeiros meses, quando atravessei a praça e perguntei a um sem-abrigo que vive ali como estava, ele respondeu e perguntou-me: e você como está? Isso marcou-me, porque sentimo-nos todos iguais, sentimo-nos todos vulneráveis perante a mesma situação e essa é uma grande aprendizagem.
A segunda grande aprendizagem é que as horas de crise são horas para levantar ainda mais alto a esperança. E nós temos visto, ao longo destes meses, e voltamos a ver agora, nesta repetição, que a humanidade mais bela é a dos que se oferecem a si mesmo, dos que se esquecem de si e partem ao encontro para proteger, para curar, para atender, para não abandonar ninguém. Essa é, sem dúvida, a humanidade mais bela e é uma aprendizagem desta pandemia.
Escreve muitos livros e a grande velocidade. O seu trabalho na biblioteca do vaticano permite-lhe isso?
O livro anterior era fundamentalmente o discurso do 10 de junho e este reúne orações que fui escrevendo ao longo de muitos anos. Mas uma biblioteca é um lugar de produção, não é simplesmente de conservação – essa é uma missão muito importante de uma biblioteca e de uma biblioteca patrimonial e histórica como é a vaticana – mas a biblioteca vaticana é também um lugar de produção cultural e o bibliotecário tem de dar o exemplo.
O meu trabalho não é simplesmente um trabalho de gestão e administração, é também um trabalho de pesquisa e de investigação; também me sento nas carteiras dos leitores da biblioteca, também peço para consultar os manuscritos e também passo horas a ler dentro desta biblioteca.
Porque uma biblioteca – e esse é um dos aspetos maravilhosos desta grande invenção humana – é um lugar inacabado. A biblioteca não é só os livros que conserva, é também os livros que neste momento se estão a escrever e os que se escreverão a partir destes.
Por causa do agravamento da pandemia, já não vai tomar amanhã (sábado) o hábito branco dos dominicanos. A celebração teve de ser adiada. Como sente este adiamento?
Foi um convite da província portuguesa dos dominicanos, que aceitei com muita alegria, para fazer parte da família, não como um dominicano professo, mas como um terceiro dominicano, alguém que é vizinho e próximo da espiritualidade dominicana.
Para mim, é uma grande alegria, porque ao longo da vida cultivei sempre um grande amizade e recebi muito de tantas dominicanas e dominicanos e porque o Papa me confiou, como cardeal, a diaconia da Igreja de São Domingos, que é uma das igrejas dos dominicanos aqui em Roma. De maneira que sinto, de facto, uma afinidade espiritual com esta tradição.
O adiamento impõe-se no atual momento, mas nas coisas espirituais como nas coisas de oração o nosso coração chega primeiro. Essa familiaridade já existe e neste momento é o mais importante e depois, quando puder ser a celebração, num ambiente mais normalizado, assim se fará.