O presidente da Comunidade Vida e Paz (CVP), Horácio Félix, assume que as dificuldades económicas “estão a colocar em causa o funcionamento” da instituição, que se aproxima "da beira do abismo".
"Estamos a aproximar-nos muito rapidamente da beira do abismo", alerta, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Horácio Félix, queixando-se da falta de apoio “por parte dos responsáveis”.
Apesar das dificuldades, o responsável da CVP deixa uma palavra de esperança para 2024: “Quando a situação está muito negra, acontece sempre alguma coisa que nos permite ir sobrevivendo. Não gostamos muito de recorrer aos milagres, mas eles já aconteceram algumas vezes e esperamos que continuem a acontecer para que possamos continuara apoiar as pessoas que confiam em nós."
Às dificuldades económicas, a CVP junta a subida dos pedidos de ajuda: no último ano, registaram um “aumento de 25 por cento”, tendo sidotambém ultrapassada a barreira das “500 pessoas/dia”, só no que respeita “às que estão em situação de sem-abrigo”.
O responsável assinala, por outro lado, um grande aumento do apoio à população imigrante e revela que a instituição teve mesmo de alterar a ementa das ceias que distribui para “respeitar cultura e religião” dos beneficiários das ajudas.
Noutro plano, o presidente da CVP confirma o aumento do fenómeno do consumo de droga em Lisboa, aludindo, em particular, à zona da Avenida de Ceuta, onde muitos toxicodependentes passam fome. “É algo que nos deve deixar envergonhados”, desabafa.
"O tratamento de pessoas em situação de adição não parece ser uma preocupação politica no momento”, lamenta Horácio Félix, pedindo "clareza" aos partidos políticos nas propostas eleitorais sobre o combate à pobreza e às pessoas em situação de sem-abrigo. “Temos que ser muit o claros, algo que me parece que não tem acontecido nas campanhas eleitorais".
"Temos que ser muito claros nas questões que têm a ver com a vida das pessoas”, reforça.
A Comunidade de Vida e Paz apoia, em média, 450 pessoas por dia. Esse é o número que tem sido constante ou tem havido uma subida da procura?
Tem havido uma subida da procura, especialmente neste último ano, em que registamos um aumento de cerca de 25%. Já estamos a ultrapassar as 500 pessoas dia em relação às que estão em situação de sem-abrigo. O foco da comunidade não é só nestas pessoas. Portanto, nós temos um projeto integrado de irmos ao encontro, de tratarmos e, depois, de reinserirmos na sociedade.
Por dia, tocamos cerca de 800 pessoas, entre as que estão na situação de sem-abrigo, na rua, nas comunidades terapêuticas, comunidades de inserção e apartamentos de reinserção.
Notam um aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo em resultado da crise na habitação?
Eu diria mais: é uma consequência da situação de pobreza que se tem acentuado e que os últimos números registam com muita preocupação: salvo erro, 42% de pessoas em situação de pobreza ou em risco de pobreza, se retirarmos os apoios sociais. Para o país é extremamente preocupante.
Os números que foram revelados esta semana no que diz respeito às pessoas em situação de sem-abrigo, referentes a 2022, apontam para cerca de 10.700 pessoas nessa situação, um aumento de cerca de 19% relativamente a 2021...
Sim, sim, claramente. Neste momento serão seguramente bem mais, bem mais.
Notam também crescimento do número de pedidos de apoio por parta de pessoas ou famílias que trabalham e recebem salário? A chamada "pobreza envergonhada" está a aumentar?
Os nossos voluntários das equipas de rua levam todas as noites, além de uma palavra de carinho e de proposta de mudança de vida, uma pequena ceia que acaba por ser a forma de nos aproximarmos das pessoas que estão em situação de sem-abrigo.
Registamos, e eles registam, infelizmente, que muitas pessoas vêm procurar recolher essa ceia, mas têm habitação. Portanto, de facto, os seus rendimentos é que já não chegam para tudo, nomeadamente para a alimentação ou para a saúde, ou para as duas coisas.
Essas situações de maior fragilidade, que por vezes também estão associadas a comportamentos desviantes, também influenciam o aumento do consumo de droga?
Temos registado, especialmente em Lisboa, um grande aumento de consumo de substâncias toxicodependentes. A zona da Avenida de Ceuta é o sítio mais preocupante, onde neste momento, além do elevado número de pessoas nessa situação, muitas delas passam fome. E pouco mais lhes chega do que a nossa pequena ceia, o que, como sociedade, é algo que nos deve deixar envergonhados.
Num determinado momento, em declarações à Renascença, falava do surgimento, em Lisboa, de "pequenos casais ventosos" e criticava, de alguma forma, a atuação das autoridades no que diz respeito ao combate à toxicodependência. Mantém esse reparo?
Sim, não se vê alteração nas políticas nem na preocupação com esta questão. Temos, se calhar, que recuperar aquilo que foi feito nos anos 90, desde a prevenção a nível das escolas, ao tratamento das pessoas que estão nessa situação.
Aliás, registo com desagrado que o valor que as instituições recebem para o tratamento dessas pessoas, que foi estabelecido em 2008 e que continha uma cláusula de atualização anual, só foi atualizado em 2023, depois de muita pressão, num valor de 12,5%, que é claramente insuficiente para o custo do tratamento dessas pessoas nessa situação. Isso já implicou o fecho de muitas camas no país. Portanto, o tratamento de pessoas que estão em situação de adição não me parece que seja uma preocupação política do momento e tem estas consequências também.
Com o aumento do consumo volta-se a ter também mais consumo a céu aberto...
Sim, sim. O que se via nos anos 90 no casal Ventoso vê-se agora na Avenida de Ceuta, claramente.
A não atualização da comparticipação do Governo está também a ter consequências na própria saúde financeira da CVP?
Sim, nós passamos por uma situação muito complexa. Neste momento cerca de 50% da receita da CVP provém dos benfeitores e a situação económica do país tem-se agravado. Portanto, há uma redução significativa a nível dos donativos, quer em géneros alimentares quer em donativos monetários.
Paralelamente, as comparticipações dos protocolos com o seguro social têm sido atualizadas não à medida das necessidades. Por exemplo, os lares tiveram uma atualização, recentemente, de mais 6% e nós tivemos uma atualização de 3%, ou seja, parece que somos filhos de um Deus menor.
A nível da saúde, desde 2008 até agora tivemos esta atualização de 12,5%, este ano. Portanto, claramente insuficiente. E isto está a colocar em causa o funcionamento da Comunidade Vida e Paz. Já fechámos algumas respostas menores, mas estamos a aproximar-nos muito rapidamente da beira do abismo. Teremos que fazer opções entre a quem é que pagamos: se aos colaboradores, se aos fornecedores.
É algo que nos está a deixar muito, muito preocupados porque não vemos da parte dos responsáveis o apoio que seria necessário.
Enfrentam também essa ameaça de ter que encerrar mais serviços?
Claramente. Quando o dinheiro acabar, vamos ter que tomar decisões que vão ser duras. Vão ser duras para todos e não queremos chegar aí.
Esse momento está perto?
Esse momento está perto... Esse momento está perto....
Temos tido, nos dois últimos anos, prejuízos de cerca de 200 mil euros, essencialmente que são aumentos de custos com o pessoal. E nós pagamos, temos claramente essa noção, vencimentos baixos. Pagamos aquilo que é obrigatório em termos legais, mas não conseguimos ter compensação a nível da receita para esse aumento de custos, que também é cerca de 200 mil euros por ano a mais, nos custos com o pessoal.
Recordo que as nossas unidades terapêuticas, as nossas unidades de inserção, etc., são formadas por técnicos, técnicos superiores, e que a comunidade tem cerca de 180 profissionais que permitem que esta máquina funcione. Naturalmente, têm que receber o seu vencimento.
Estamos também já a defrontar-nos com muita dificuldade de manter talentos. Os melhores técnicos, os mais antigos vão saindo porque têm propostas mais compensadoras. Temos que ver isto por um lado bom. Vamos, de certa forma, educando jovens que estão no início de carreira, mas que, naturalmente, isto tem implicação na própria qualidade do acompanhamento das pessoas que confiam em nós.
Os indicadores que nos está a dar parece que apontam para um cenário muito sombrio. Como é que avalia a estratégia nacional para retirar as pessoas da rua que estão em situação de sem-abrigo? Não está a resultar?
Isto é um fenómeno complexo, muito complexo. A estratégia tem dado alguns resultados. Se calhar, não os resultados que nós gostaríamos de ver atingidos. Mas não é só a estratégia, porque a questão do aumento do consumo de substâncias toxicodependentes e a forma como ajudamos essas pessoas, de certa forma, até foge do âmbito da estratégia. Portanto, é algo mais vasto e tem muito a ver também com o Ministério da Saúde.
Essa integração, a falta de apoios governamentais, põe em causa a própria execução da estratégia?
Se calhar, ultrapassa o âmbito da estratégia. E eu percebo que, muitas vezes, os documentos são muito bem elaborados, mas, na prática, o efeito não é aquele a que se aspirava. De facto, nós, portugueses, somos bons a construir documentos.
Se calhar, podemos dizer mesmo que se falhou porque havia uma intenção, manifestada inclusivamente pelo próprio Presidente da República, para se acabar com a população sem-abrigo até este ano. O que nós reparamos é que os números referentes a 2022 mostram um grande aumento daspessoas nessa situação...
Sim, houve uma série de contingências que também contribuíram para isso. Mas, pegando nas palavras do Evangelho, já Jesus dizia que pobres sempre os tereis. Portanto, isso seria uma aspiração, diria mesmo uma utopia. Mas, sendo mais realista, temos que tentar criar condições para ir diminuindo as pessoas que estão em situação de sem-abrigo. Eliminá-las claramente não vamos conseguir. Aliás porque isto é um fenómeno especialmente do mundo ocidental e não vejo nenhum país que o tenha conseguido levar para números próximos de zero.
Foi também aprovada uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Pode ser o instrumento que faltava para uma verdadeira luta contra o fenómeno?
É mais um instrumento, é mais uma ferramenta, é mais uma forma de auxiliarmos as pessoas. Embora, e isto é uma opinião pessoal, pense que o combate à pobreza passa, essencialmente, por uma economia pujante que pague ordenados decentes. É por aí que temos que começar. Depois, acessoriamente, ver as contribuições sociais para as situações que, de facto, precisam disso. Parece-me que estamos a inverter um pouquinho a situação: vamos primeiro por via do subsídio e menos por via de uma economia pujante. Mas, como digo, é uma opinião pessoal.
A Comunidade Vida e Paz sente-se envolvida nessa estratégia de combate à pobreza?
Nós não fomos consultados, mas sentimo-nos sempre envolvidos em tudo aquilo que tem a ver com a ajuda às pessoas que mais necessitam.
Este momento eleitoral que Portugal vai viver, de possível mudança de ciclo político, poderá ser mais um atropelo a estas estratégias, seja aquela da reintegração das pessoas em situação de sem-abrigo, seja a da luta contra a pobreza?
Pode haver agora uma suspensão, de certa forma, das estratégias, mas, ao mesmo tempo, vai permitir uma clarificação a nível dos projetos políticos que são apresentados aos portugueses. Independentemente de ser o mesmo partido ou outro, penso que virão novos dinamismos que nos permitam auxiliar as pessoas em situação de grande debilidade económica e social.
Apela aos candidatos que olhem para estes setores com redobrada atenção?
Exatamente. Temos de ser muito claros, que é isso que não me parece que tem acontecido nas campanhas eleitorais. Temos de ser muito claros nas questões que têm a ver com a vida das pessoas. Desde o combate à pobreza, desde as situações, por exemplo, que têm a ver com a vida.
Não receia que o crescimento eleitoral de forças populistas possa, de alguma forma, prejudicar estratégias mais musculadas de combate à pobreza?
Não sei, porque também nunca experimentámos. Às vezes é uma pedrada no charco que obriga os outros partidos a clarificar as suas posições, ou seja, a saírem um bocadinho de uma zona cinzenta que é quase “nim”, serve para tudo. Espero que, pelo menos, as propostas dos partidos sejam muito claras no que tem a ver com o combate à pobreza e, especialmente, em relação às pessoas que estão em situação de sem-abrigo.
No novo ano, termina a medida IVA Zero para bens essenciais e está previsto também - acontece todos os anos - um aumento generalizado dos preços, a começar pelos indispensáveis no dia-a-dia, como água e eletricidade. Falávamos do período eleitoral em curso: podemos estar perante uma espécie de tempestade perfeita que pode arrastar mais pessoas para uma situação de maior fragilidade?
Pode acontecer isso. Pode, perfeitamente. De qualquer forma, o IVA Zero é uma boa medida para diminuir o custo dos bens alimentares. Mas quando nós olhamos para a inflação, que agora nos dizem que está em 2 por cento ou dois e qualquer coisa, a nível dos géneros alimentares, ela é muito superior.
Falta um controle dos preços...
Eu acho que não falta, propriamente... Quando criamos artifícios para baixar os preços, nem sempre isso resulta. Precisamos é de dizer que, a nível de géneros alimentares, o aumento verificado - e eu sei porque faço a gestão de um centro social paroquial e temos um lar - o aumento dos bens alimentares está acima dos dois dígitos.
Podemos ter mesmo uma tempestade perfeita porque se juntarmos continuidade do aumento dos preços a um aumento do rendimento muito menor, a situação vai se agravando.
Esse aumento dos preços será ainda mais notório com o fim do IVA Zero. Em relação ao novo ano, está pessimista ou está otimista?
Nós, cristãos, por natureza, somos otimistas. E alegres. Embora às vezes não sejamos muito exemplo disso...
E realisticamente?
Somos pessoas de esperança. A esperança é um dos grandes valores da Comunidade Vida e Paz. A esperança e a gratidão, a gratidão a todos aqueles que nos permitem ajudar as pessoas que confiam em nós. E a esperança de um novo dia. Porque, se não fossemos pessoas de esperança, não conseguiríamos propor uma reconstrução de sentidos de vida. A esperança, de facto, é fundamental.
Temos assistido na nossa casa a muitos milagres. Quando a situação está muito negra, acontece sempre alguma coisa que nos permite ir sobrevivendo e continuando a apoiar as pessoas que estão em situação de sem-abrigo. Portanto, encaramos o novo ano também com este sentido da esperança de que virá um tempo novo e que será melhor.
Espera milagres para que não tenham de fechar serviços?
Esperamos milagres... Não gostamos muito de recorrer aos milagres, mas eles já aconteceram algumas vezes e esperamos que continuem a acontecer para que possamos continuar a apoiar as pessoas que confiam em nós.
Vivemos na última semana a Festa de Natal da CVP. O que representam estes gestos solidários para quem deles mais precisa?
Uma das marcas da nossa festa é a alegria. Os abraços grátis, por exemplo. E, depois, a mudança, eu não diria tanto de vida, mas a mudança da pessoa ao olhar para si. Quando entra uma pessoa em situação de sem-abrigo que, pelas circunstâncias em que está, vem com o cabelo comprido, vem sujo, e recebe uma roupa nova, vai ao cabeleireiro, sai de lá com outra cara, sai uma pessoa nova, a nível da imagem. E se tiver falta de documentos, por exemplo, às vezes, podemos dizer que entra quase como uma não-pessoa e, a nível da cidadania, consegue ter atendimento de saúde, consegue tratar do seu cartão de cidadão, consegue tratar de problemas jurídicos, consegue resolver problemas na Segurança Social... Tudo isso que nós possibilitamos durante a festa faz das pessoas pessoas novas, especialmente a nível dos seus direitos e também da sua imagem, da sua autoestima.
E a nível das pessoas que permitem que aconteça essa transformação de outras pessoas: as ajudas, os voluntários, as instituições marcam presença nesta festa de Natal, e depois, ao longo de todo o ano?
A festa de Natal tem um contexto muito próprio. Há pessoas que são habituais voluntários durante o ano, há pessoas que são voluntários mais da festa. Este ano registámos, por um lado, um grande aumento de pessoas, de convidados, e, por outro lado, também decorrente da situação económica, uma diminuição de cerca de 30% nos donativos, o que dificultou que a festa tivesse a expressão que nós gostaríamos. Mas tivemos um aumento muito grande de convidados, cerca de 35%, a nível da alimentação também próximo de 40% de refeições fornecidas.
40% a mais em relação ao habitual?
Sim, sim. Tivemos muitas famílias que vieram a uma refeição: pai, mãe, filhos.
Que indicador é esse?
Esse indicador é o indicador da pobreza, das pessoas que têm casa, mas que já têm dificuldade na alimentação. E tivemos muitas crianças.
E entre as pessoas que ajudam, também têm muitos imigrantes?
Temos cada vez mais imigrantes. Acaba por ser algo de novo, porque são grupos grandes que podemestar num sítio, depois vão para outro. Tem sido difícil também, até a nível do diálogo, pela língua. Nas nossas voltas, tivemos que alterar as ementas das ceias, com sandes com tudo aquilo que não leva porco, para respeitar a sua cultura e a sua religião. Tem sido um esforço muito grande, porque aquilo que nos preocupa sempre é o bem da pessoa. E é isso que sempre está em causa, dentro daquilo que nós consigamos fazer. E temos conseguido satisfazer esta necessidade de os imigrantes terem alguma alimentação e que essa alimentação não seja contrária à sua cultura e religião.
Que mensagem deixa neste Natal para quem vai passar estes dias em situações de maior dificuldade ou solidão?
Jesus nasceu pobre, sem nada. Tinha com ele o carinho, o calor e o amor. E é isso que nós vamos tentar e que os nossos voluntários fazem todas as noites, levando a todas as pessoas que estão nesta situação o calor humano, o carinho, uma palavra especialmente de esperança e uma proposta de transformação.