Foi logo nas primeiras interações, por mensagens, que admitiu estar radiante por uma filha estar a caminho. Miguel Crespo, de 27 anos, diz que era um sonho e que o timing do nascimento – quando a época termina – é bom. Teme as noites mal dormidas, foi o que viu com companheiros ao longo da carreira. O descanso é sagrado para este fino futebolista.
O jogador do Rayo Vallecano encontra-se com a Renascença num hotel de Madrid, na Calle de Toledo. Chega dentro de um fato de treino cinzento, com um sorriso impecável e um trato de senhor. A felicidade mais genuína surgiu quando se falou nos seus tempos em Viana do Castelo, uma altura em que se dividiu entre os juniores e os seniores com apenas 17 anos. De rastos, faltava às aulas na segunda-feira – “A minha mãe matava-me”. Foi nessa altura que aprendeu uma coisa ou duas sobre futebol e tudo começou a ficar mais sério.
Emprestado pelo Fenerbahçe, um clube com o qual tem contrato até 2025 e onde se cruzou com Jorge Jesus e Vítor Pereira, Crespo está feliz na capital espanhola, admitindo que a luta pela permanência é um sentimento diferente. Não lamenta nada, foi ele que quis este destino, também para estar perto de craques como o seu ídolo, Luka Modric. “Há um mês joguei contra ele, coisas da vida. Foi incrível.”
Com que então vais ser pai…
Sim, verdade. É mais um sonho realizado.
O que sentes já a mudar em ti?
Ainda não penso muito, só estou preocupado com o que falam da falta do sono, de dormir pouco, mas de resto estou ansioso porque sempre foi uma coisa que eu e a minha mulher quisemos. Agora estamos a realizar, está quase a nascer. Estamos muito contentes.
Ia perguntar isso, se como atleta profissional te preocupava alguma coisa do que viste com colegas. Era o sono, então?
É o único... não é receio, mas para mim é uma coisa importante, o meu descanso. Sempre tive cuidado com isso em toda a minha carreira. É o único ponto menos positivo, vamos assim dizer.
E que tal se está por Madrid?
Fantástico. Estou a adorar. Nunca tinha vindo cá, por incrível que pareça. Adoro Madrid.
Imagino que Bebé já tenha mostrado todos os segredos da cidade…
[risos] Já. Andamos a conhecer os cantinhos.
Tiveste muitas presenças no Fenerbahçe e até renovaste o contrato em outubro. Porque vieste para o Rayo?
Foi uma situação complicada. Não é complicada... eu queria sair já no início da temporada, mas depois, com conversas com colegas e com o treinador que sempre gostou de mim, acabei por ficar no clube e estou muito grato ao Fenerbahçe. Gosto muito do Fenerbahçe, sempre dei tudo por eles. Agora, no mercado de janeiro houve a oportunidade por causa do limite de estrangeiros, eles reforçaram a equipa em janeiro e havia jogadores a mais da quota de estrangeiros. Como eu tinha a ambição de vir conhecer a Liga Espanhola, então, vamos dizer, acabei por ajudar o clube a libertar uma vaga de estrangeiro, e ajudei-me a mim a vir conhecer um campeonato que tinha muita ambição de conhecer.
Presumo que aprecies a La Liga. Encaixa-se bem nesses pés, ou não?
Estou a adorar, sim. Era o que eu pensava, há muita qualidade nos jogadores e nas equipas, acho que há um nível muito equivalente em muitas equipas e é um jogo que me atrai, sim. Há muita qualidade técnica, há muito o lado tático também, é o que eu gosto. Estes meses estão a ser fantásticos.
Como resumes esta estadia no Rayo? Mudaram de treinador.
Sim, gosto muito do treinador novo. É um clube humilde, trabalhador, a malta gosta do clube, os jogadores são todos fantásticos, tudo gente boa, como se diz em Portugal. Está a correr bem, temos agora bons jogos para ganhar para atingir o objetivo e isso é que é o mais importante.
Como é a relação com os adeptos? Há ali uma claque que é muito da comunidade e que defende determinados valores.
O clube é do bairro, o estádio é mesmo no meio de um bairro e as pessoas do bairro amam o clube. São fanáticas pelo clube, até um bocado como no Fenerbahçe mas numa escala menor. É um bocado essa paixão que eles transmitem e que querem que os jogadores transmitam também dentro de campo, o que é fantástico.
Alguma vez tinhas andado numa luta por não descer?
Já, no meu primeiro ano de profissional, na equipa B do Braga, na II Liga. Claro que não é o que um jogador ambiciona, mas faz parte e às vezes acontece, mesmo equipas que não querem lutar acabam por cair nessas zonas. Claro que é diferente, é uma pressão diferente. A pressão para ganhar é uma pressão muito melhor do que a pressão de estar ali com a corda no pescoço. Mas é assim, temos de estar prontos para tudo e lutar pelas vitórias para alcançar o objetivo.
Mexe com o teu orgulho como jogador? Vens de um colosso da Turquia.
[risos] Já falei isso com a minha mulher. É uma grande diferença de realidades. Claro que no Fener jogas para ganhares os títulos todos e, de repente, estás numa realidade que é para não cair de divisão. Mas fui eu que quis vir para aqui, foi uma decisão minha, ninguém me forçou a nada, eu queria vir. Portanto, estou completamente satisfeito e sei que vamos conseguir atingir o nosso objetivo, com maior ou menor dificuldade.
Como descreves a convivência com Jorge Jesus na Turquia?
Difícil. Não vou dizer que é um treinador fácil, mas ainda bem que o tive na minha carreira. É um treinador fantástico, mas tens de ter uma personalidade forte para conviver no dia a dia com ele.
Guardas algum momento específico? Seja conversa, seja ensinamento ou o que for.
Não, assim momentos nossos não tenho, não vou estar aqui a inventar. Mas é como digo: tens de ter uma personalidade forte porque ele exige muito de todos e o dia a dia é cansativo. Só assim é que se vê os resultados que ele tem.
Já saíste de lá há uns tempos, mas em março ainda eras o jogador com mais roubos de bola na Liga Conferência. Sempre foste assim ou foi Jesus que te deu esse lado? Não tinha essa ideia quando passaste no Estoril. Se calhar, porque o teu jogo é esteticamente sedutor, não se olha para o trabalho defensivo da mesma maneira.
Eu acho que é mais isso. Sempre tive esta capacidade de roubar algumas bolas, principalmente no meio-campo ofensivo. No Fenerbahçe, ainda na altura do Vítor Pereira, comecei a jogar um bocadinho mais atrás por causa da lesão do Luiz Gustavo, então aí começou a dar-se mais valor aos meus roubos de bola. Mesmo com o Jorge Jesus, com a pressão alta que ele gostava de fazer... é como meterem um peixe na água. O que mais gosto de fazer no futebol é pressão alta, recuperar ali a bola e encontrar os meus colegas. Estava na minha zona de conforto.
Que tal Vítor Pereira?
Gostei, gostei muito.
Diferente de Jesus?
Diferente. Muito mais tranquilo, sim, mas com uma ambição destemida. Foi o que me abriu as portas para o Fenerbahçe, vou estar sempre eternamente grato, ele sabe que eu gosto muito dele. É um grande treinador.
O que mais te impressionou na Turquia?
É completamente diferente. O que mais gostava na Turquia era, de longe, jogar em casa, aquilo é fantástico. Adorava. Eu dizia a todos os meus amigos e familiares: “Têm de vir aqui para ver porque explicar-vos nunca há forma de dizer o que isto é, só vindo cá". Felizmente, muitos conseguiram. É um mundo diferente, era o que mais me encantava, tanto a mim como à minha mulher. Ela adorava ir ao estádio.
Sempre foi assim?
Sempre foi assim. Sempre que jogo em casa, ela está presente.
Como eram os dérbis com o Galatasaray?
Era outro ponto que eu ia tocar. A melhor parte do Fenerbahçe eram os jogos grandes, com o Besiktas e Galatasaray. É o melhor que há no futebol são esses grandes jogos.
O que te parece a Liga Portuguesa? Tens gostado de alguma coisa?
Vou ser sincero, não vejo muito futebol em casa, tento não ver. O futebol já me tira muita energia, então acabo mais por relaxar e tentar abstrair-me, mas, sim, acabo por ver um jogo ou outro. Não sou sportinguista, atenção, mas gosto muito de ver o Sporting. Joga muito bem. É mais isso que faço: quando é para ver futebol, escolho o que vejo, sou muito seletivo. Neste momento, não há que negar, o Sporting é uma equipa que joga muito bem e que dá gosto ver. Quando é para ver, vejo o Sporting.
Imaginas-te a voltar a Portugal nos próximos tempos?
Não penso muito nisso, sinceramente. O que acontecer vai acontecer naturalmente, mas acho que não, acho que não vou voltar a Portugal tão cedo.
O que tens em mente para a carreira nesta fase?
Ainda tenho contrato com o Fener, estou aqui emprestado no Rayo, que tem opção [de compra]. Eu sou um jogador ambicioso, quem me conhece sabe. Se ficar aqui no Rayo, temos de lutar por outros objetivos, como eles sabem que eu quero. Senão volto ao Fener com todo o gosto e lá é lutar por tudo.
Que aprendeste durante estes anos todos que teria sido útil saber quando começaste?
Sempre fui assim, mas cada vez mais sou assim: acreditares em ti, sabes? No início, quando apareci no Merelim e depois assinei o meu primeiro contrato profissional no Braga, eu jogava futebol... não era por jogar, mas jogava pela paixão do jogo. Não pensava muito que ia ser profissional e que ia viver do futebol, então relaxava um bocado. Sempre fui assim. Quando comecei a levar o futebol a sério e soube que era isto que eu queria, tinha de sacrificar umas coisas para obter bons resultados em campo. Pronto, comecei a entender que o futebol era muito mais que um jogo. E aí envolve todo o teu trabalho que as pessoas não veem, isso sim é sacrifício e teres de acreditar em ti, teres força de vontade para fazeres o trabalho diário invisível. Porque fazer uma vez, duas vezes, tudo bem, mas fazer 300 vezes num ano aí é que está o segredo de te manteres num nível elevado.
Falaste na paixão e há muitos jogadores que dizem que a certa altura perdem um bocado essa paixão que sentiam em miúdos...
Sim, claro.
Alguma vez te desanimaste com o futebol?
Não, [perder] a paixão pelo futebol não. Acho que é aí nesse momento que se calhar tens de pensar já noutra coisa. Claro que neste momento, por exemplo, eu não estou a jogar e isso claro que te chateia, não é? A mim põe-me o sangue a ferver. Dá-me vontade de trabalhar mais ainda, para mostrar que sou melhor do que os que estão a jogar. Sempre fui assim na minha vida, na minha carreira, tive alguns altos e baixos, mas, com o meu trabalho, consegui superar tudo. Todas as pessoas que passaram por mim no futebol podem comprovar isso, eu nunca deito a toalha ao chão.
O teu percurso na formação, apesar da passagem nos infantis do FC Porto, é tudo menos habitual. Como vês essa trajetória, essa ausência da academia?
É a tal história que eu dizia, eu levava o futebol muito na desportiva. Quando saí do Porto, lembro-me bem, eu queria era jogar com os meus amigos, não pensava em mais nada. Foi isso, voltei para a beira dos meus amigos, para onde estava feliz e confortável e foi assim até aos 16. Depois, quando conheci uma pessoa que me começou a dar na cabeça, que ainda hoje é como se fosse um pai para mim, o Manuel Baptista, foi aí que comecei a meter na cabeça que era possível e que ia fazer sacrifícios para me tornar quem sou hoje. Ele sabe que lhe estou grato.
O teu estilo não é o jogador mais ou menos formatado que vemos hoje em dia. Vês a ausência da academia como uma lacuna no teu jogo ou até foi o que te permitiu ser diferente?
Sem dúvida que eu sou diferente, mas o que vias, há 10 anos, era diferente. Claro que hoje os miúdos, com 18 anos, parece que são jogadores há anos e anos, foi isso que as academias lhes proporcionam. Ainda bem que o futebol está tão evoluído e que eles têm essas oportunidades para evoluírem e aparecerem já como grandes jogadores. Mas o meu percurso foi o que foi, estou muito feliz, muito grato, vivi a vida como deu e aproveitei com os meus amigos que ainda hoje são grandes amigos. Estou super feliz com o meu percurso.
Sentes que há demasiado controlo no futebol? Passe e receção, passe e receção.
Cada vez mais, cada vez mais parece que se retira a capacidade individual dos jogadores. A meu ver não é bom, porque há talento e o talento tem de se deixar à solta. É o talento que resolve muitos jogos, mas o futebol está muito domina e passa, domina e passa, como dizes, e cada vez mais os treinadores estudam e querem tudo monitorizado. Começa a complicar um bocado as coisas [risos].
Com 17 anos andavas pela 1.ª distrital de Viana do Castelo. Como foram esses tempos?
Fantásticos! Adorava jogar ali, eu era sempre o mais novo da equipa, jogava no meio dos seniores, era fantástico. Jogava, ao sábado, com os juniores na nacional, se não me engano, e ao domingo jogava com os seniores. Na segunda-feira não ia à escola e a minha mãe matava-me. Andava cansado. É como digo: é tudo uma aprendizagem. Acho que até foi aí que dei aquele cliquezinho na minha intensidade de jogo, eu era mesmo molengão nessa altura. Com esse acumular de jogos, parece que a minha intensidade de jogo aumentou para os níveis que toda a gente sabe. É o que tem de ser, adoro o meu percurso.
Depois, com 21 anos, já estavas na Segunda Liga, no SC Braga B e depois cresces com o Estoril. O que correu tão bem por ali?
Há duas coisas que, na minha opinião, ajudaram àquela época memorável: o treinador [Bruno Pinheiro] e o grupo de jogadores que tínhamos. Eram os dois trunfos.
Quando eras criança, havia algum sonho?
Sim, a seleção nacional. Sempre foi o meu objetivo. Nunca pensei "quero jogar aqui, quero jogar ali", nunca tive essas ambições, sempre gostei de ver a seleção, não sei. Sempre que a seleção jogava, era diferente para mim. Acho que é o único sonho que tenho por cumprir.
Nunca estiveste perto?
Não, para ser sincero. Houve uma altura, no Fenerbahçe, que se falou, mas eu tenho noção das coisas e dos jogadores que lá estão. Tem todo o mérito quem está lá.
Quem é que imitavas na rua?
Modric. Sempre gostei muito do Modric, já do tempo do Tottenham. Sempre, sempre. Há um mês joguei contra ele, coisas da vida. Foi incrível. Muitas pessoas mandaram logo mensagem: "Estás a jogar com o teu ídolo". E é verdade, é o que a Liga Espanhola me proporcionou. Era uma das minhas ambições, vir jogar contra eles e provar que sou bom também como eles, sabes, que sou competitivo. Não quero só jogar contra as equipas inferiores. Gosto de jogar contra os melhores para provar a mim que sou do mesmo nível ou perto deles. Eu penso assim o futebol e por isso é que toda a gente sabe que sou competitivo 'pa carago.