Era uma vez (é sempre uma forma apropriada para começar uma triste história) uma doença rara de origem genética denominada atrofia muscular espinal, a mesma que afetou (ou afeta) a bebé Matilde.
Aproximadamente, todos os anos nascem em todo o mundo cerca de 10 mil bebés com esta doença. Esta doença manifesta-se normalmente antes dos seis meses de vida e as crianças ou morrem ou ficam completamente dependentes de respiração arterial antes dos dois anos.
Até que, surpreendentemente, uma empresa comprada, entretanto, pelo gigante farmacêutico Novartis, desenvolveu um medicamento que, supostamente, tem o potencial de curar a doença.
Afinal parece que existem finais felizes. No entanto, este final potencialmente feliz tem um preço: dois milhões de euros por cada criança!
Upps… numa Europa e num mundo em que os sistemas de saúde lutam diariamente com a sobrevivência económica dispensar um medicamento a este preço é um desafio ético extremamente complexo. Pior, qualquer solução encontrada nunca será verdadeiramente ética.
Para piorar um cenário já de si difícil, fomos nos últimos dias surpreendidos por uma notícia verdadeiramente surpreendente: “Farmacêutica sorteia 100 doses do medicamento mais caro do mundo entre crianças”. Desta forma, e somente nos países que ainda não autorizaram o medicamento, a Novartis pretende sortear a vida de 100 bebés.
Assim, se por um lado temos o complexo problema ético de um medicamento “salva-vidas” custar dois milhões de euros o que, uma vez mais, levanta a questão da forma, por muitos considerada abusiva, como é calculado o preço dos medicamentos, por outro, temos a questão tanto sensível de como se escolhe quem vive e quem morre.
A Novartis considerou que a solução eticamente mais legítima seria através de uma forma de lotaria. Assustador.
De facto, existem alguns pontos que importa sublinhar: O Institute for Clinical and Economic Research (ICER), na sua análise custo-efetividade, sugere que o preço justo para o medicamento em causa poderia ser metade do valor actual: ou seja aproximadamente um milhão de euros.
Tendo em consideração toda a política de incentivo à investigação em doenças raras e os fármacos que, eventualmente, estarão já na “pipeline” para a aprovação com custos insustentáveis, teremos, os governos e a indústria, de revisitar a forma como se calcula o preço destes fármacos sem, no entanto, comprometer a investigação da indústria farmacêutica nestas áreas.
Como iremos, governos e nós enquanto sociedade fazer escolhas desta natureza. E aqui, de facto, reside a questão ética essencial. Qualquer solução estará sempre ferida do ponto de vista ético; não existe solução eticamente legítima em escolhas desta natureza. Em situações, e esta foi certamente a primeira de muitas outras, em que o “salvar uma vida” compromete a possibilidade de “salvar muitas vidas” não existem escolhas fáceis. Basta por exemplo atentar no facto que na mesma altura em que foi dispensado o medicamento à bebé Matilde, com o custo de dois milhões de euros, assistíamos a urgências de pediatria fechadas por dificuldades económicas na contratação de médicos pediatras.
Importa assim tentar construir ferramentas que não sendo éticas diminuem os danos éticos deste tipo de escolhas.
Normalmente essas escolhas podem ser feitas usando diferentes critérios para a distribuição de recursos escassos: critérios que maximizam a igualdade entre os diferentes doentes: lotaria ou por ordem de chegada; critérios que atendem à vulnerabilidade de grupos ou doentes: os doentes com situações de maior gravidade ou a priorização por critérios de idade (os mais novos primeiro); critérios que maximizam a utilidade da intervenção: salvar o maior número de vidas; salvar os com melhor prognóstico.
Nem todos estes critérios poderiam ser usados neste caso; de facto nem a ordem de chegada (chegam todos ao mesmo tempo) nem a gravidade nem a idade (são todos gravíssimos e com idades idênticas).
Assim ficamos, para além da solução da lotaria escolhida pela Novartis com duas situações que deveriam ser equacionadas; a primeira relacionada com a possibilidade de salvar o maior número de vidas – se em vez da lotaria fosse usado este critério deveria ser então equacionada a possibilidade de usar o dinheiro desses fármacos para diminuir o custo do medicamento que, em paralelo com a diminuição proposta pelo ICER, já tornaria muito mais fazível a comparticipação do fármaco em alguns países (obviamente que, ao contrário da lotaria, os doentes de países pobres nunca poderiam ter acesso ao medicamento); a segunda proposta seria, e uma vez que o medicamento não cura mas impede a progressão da doença encontrar uma comissão de especialistas que criasse uma lista ordenada por prognóstico, ou seja, aqueles em que a doença progrediu menos e que estão numa fase mais inicial da doença seriam priorizados.
Como referi nenhuma solução é eticamente perfeita, mas alguém terá que escolher.